A estrada não trilhada - Robert Frost

 Num bosque, em pleno outono, a estrada bifurcou-se,
 mas, sendo um só, só um caminho eu tomaria.
 Assim, por longo tempo eu ali me detive,
 e um deles observei até um longe declive
 no qual, dobrando, desaparecia…

Porém tomei o outro, igualmente viável,
 e tendo mesmo um atrativo especial,
 pois mais ramos possuía e talvez mais capim,
 embora, quanto a isso, o caminhar, no fim,
 os tivesse marcado por igual.

E ambos, nessa manhã, jaziam recobertos
 de folhas que nenhum pisar enegrecera.
 O primeiro deixei, oh, para um outro dia!
 E, intuindo que um caminho outro caminho gera,
 duvidei se algum dia eu voltaria.

Isto eu hei de contar mais tarde, num suspiro,
 nalgum tempo ou lugar desta jornada extensa:
 a estrada divergiu naquele bosque – e eu
 segui pela que mais ínvia me pareceu,
 e foi o que fez toda a diferença.


Esse despojamento - Henriqueta Lisboa


Esse despojamento
 esse amargo esplendor.
 Beleza em sombra
 sacrifício incruento.

 A mão sem jóias
 descarnada
 na pureza das veias.
 A voz por um fio
 desnuda
 na palavra sem gesto.

 O escuro em torno
 e a lucidez
 violenta lucidez terrível
 batida de encontro ao rosto
 como uma ofensa física.

 Na imensidade sem pouso,
 olhos duros
 de pássaro.


Sade - Cherish The Day - Official - 1993

mar azul - Ferreira Gullar

mar azul marco azul
mar azul marco azul barco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul
mar azul marco azul barco azul arco azul ar azul

 

Crepúsculo - David Mourão-Ferreira


É quando um espelho, no quarto, 
se enfastia; 
Quando a noite se destaca 
da cortina; 
Quando a carne tem o travo 
da saliva, 
e a saliva sabe a carne 
dissolvida; 
Quando a força de vontade 
ressuscita; 
Quando o pé sobre o sapato 
se equilibra... 
E quando às sete da tarde 
morre o dia 
que dentro de nossas almas 
se ilumina, 
com luz lívida, a palavra 
despedida.

 

Aprendizado - Ferreira Gullar

Do mesmo modo que te abriste à alegria
abre-te agora ao sofrimento
que é fruto dela
e seu avesso ardente.

Do mesmo modo
que da alegria foste
ao fundo
e te perdeste nela
e te achaste
nessa perda
deixa que a dor se exerça agora
sem mentiras
nem desculpas
e em tua carne vaporize
toda ilusão

que a vida só consome
o que a alimenta.


Aproveita o dia - Walt Whitman

Não deixes que termine 
sem teres crescido um pouco.
Sem teres sido feliz, 
sem teres alimentado teus sonhos.
Não te deixes vencer pelo desalento.
Não permitas que alguém te negue 
o direito de expressar-te, 
que é quase um dever.
Não abandones tua ânsia
de fazer de tua vida algo extraordinário.
Não deixes de crer
que as palavras e as poesias sim 
podem mudar o mundo.
Porque passe o que passar, 
nossa essência continuará intacta.
Somos seres humanos cheios de paixão.
A vida é deserto e oásis.
Nos derruba, nos lastima, nos ensina,
nos converte em protagonistas 
de nossa própria história.
Ainda que o vento sopre contra, 
a poderosa obra continua,
tu podes trocar uma estrofe.
Não deixes nunca de sonhar,
porque só nos sonhos 
pode ser livre o homem.
Não caias no pior dos erros: o silêncio.
A maioria vive num silêncio espantoso.
Não te resignes, e nem fujas.
Valorize a beleza das coisas simples,
se pode fazer poesia bela, 
sobre as pequenas coisas.
Não atraiçoes tuas crenças.
Todos necessitamos de aceitação,
mas não podemos remar contra nós mesmos.
Isso transforma a vida em um inferno.
Desfruta o pânico que provoca 
ter a vida toda a diante.
Procures vivê-la intensamente 
sem mediocridades.
Pensa que em ti está o futuro,
e encara a tarefa com orgulho e sem medo.
Aprendes com quem pode ensinar-te
as experiências daqueles que nos precederam.
Não permitas que a vida 
se passe sem teres vivido…


Os olhos das crianças - Sidónio Muralha


Atrás dos muros altos com garrafas partidas
bem atrás das grades de silêncio imposto
as crianças de olhos de espanto e de medo transidas
as crianças vendidas alugadas perseguidas
olham os poetas com lágrimas no rosto.


Olham os poetas as crianças das vielas
mas não pedem cançonetas mas não pedem baladas
o que elas pedem é que gritemos por elas
as crianças sem livros sem ternura sem janelas
as crianças dos versos que são como pedradas.

Noite de Abril - Sophia de Mello B. Andresen


Hoje, noite de Abril sem lua,
A minha rua
É outra rua.

Talvez por ser mais que nenhuma escura
E bailar o vento leste,
A noite de hoje veste
As coisas conhecidas de aventura.

Uma rua nova destruiu a rua do costume.
Como se sempre nela houvesse este perfume
De Vento leste e Primavera,
A sombra dos muros espera
Alguém que ela conhece.
E às vezes o silêncio estremece
Como se fosse a hora de passar alguém
Que só hoje não vem.


NO ALTO MAR - Sophia de Mello Breyner Andresen


No alto mar
A luz escorre
Lisa sobre a água.
Planície infinita
Que ninguém habita.

O Sol brilha enorme
Sem que ninguém forme
Gestos na sua luz.

Livre e verde a água ondula
Graça que não modula
O sonho de ninguém.

São claros e vastos os espaços
Onde baloiça o vento
E ninguém nunca de delícia ou de tormento
Abre neles os seus braços.


Poemas de Abril - Sidónio Muralha

O barco era belo
rasgaram-lhe as velas,
intrusos cuspiram
no seu tombadilho
e o homem sem barco
seguiu pela estrada
com ondas redondas
rolando nos pés.

Gastou os sapatos
de tanto horizonte,
quis beijar a vida
ninguém o deixou,
quis comer, quis beber,
disseram que não,
sentiu-se doente
mas não tinha cama.

Soprou temporais
no sangue, nas veias,
e todo o seu corpo
foi fúria e foi quilha,
cercaram-no logo
com altos rochedos
e o homem sem barco
teve que evitá-los.

Na estrada sem nada
dos tristes humanos
com pernas-farrapos
o homem lá vai,
sem eira nem beira
de bolsos vazios
com os olhos ocos
marejados de mar.



Sentimento do mundo - Carlos Drummond de Andrade


Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desafiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais que a noite.


Charles Bukowski

Há um pássaro azul
no meu coração que quer sair
mas eu sou demasiado duro para ele,
e digo, fica aí dentro,
não vou deixar ninguém ver-te.
Há um pássaro azul
no meu coração que quer sair
mas eu sou demasiado esperto,
só o deixo sair à noite
por vezes quando todos estão a dormir.
digo-lhe, eu sei que estás aí,
por isso não estejas triste.
Depois, coloco-o de volta,
mas ele canta um pouco lá dentro,
não o deixei morrer de todo
e dormimos juntos assim
com o nosso pacto secreto
e é bom o suficiente
para fazer um homem chorar,
mas eu não choro,
e tu?


Sinfonia para pressa e presságio - Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Sôo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.

Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Paisagem da alma - Rubem Alves

 
A alma é uma paisagem.
As paisagens da alma não
podem ser comunicadas.
Quanto mais fundo entramos
nas paisagens da alma,
mais silenciosos ficamos.

 

Guimarães Rosa


A moça atrás da vidraça
espia o moço passar.
O moço nem viu a moça,
ele é de outro lugar.

O que a moça quer ouvir
o moço sabe contar:
ah, se ele a visse agora,
bem que havia de parar.

Atrás da vidraça, a moça
deixa o peito suspirar.
O moço passou depressa,
ou a vida devagar?




Libera Me - Carlos Queirós

Livrai-me, Senhor,
De tudo o que for
Vazio de amor.

Que nunca me espere
Quem bem me não quer
(Homem ou mulher).

Livrai-me também
De quem me detém
E graça não tem,

E mais de quem não
Possui nem um grão
De imaginação.