Príncipe - Ana Hatherly

Príncipe:
 Era de noite quando eu bati à tua porta
 e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
 e não me conheceste.
 Era de noite
 são mil e umas
 as noites em que bato à tua porta
 e tu vens abrir
 e não me reconheces
 porque eu jamais bato à tua porta.
 Contudo
 quando eu batia à tua porta
 e tu vieste abrir
 os teus olhos de repente
 viram-me
 pela primeira vez
 como sempre de cada vez é a primeira
 a derradeira
 instância do momento de eu surgir
 e tu veres-me.
 Era de noite quando eu bati à tua porta
 e tu vieste abrir
 e viste-me
 como um náufrago sussurrando qualquer coisa
 que ninguém compreendeu.
 Mas era de noite
 e por isso
 tu soubeste que era eu
 e vieste abrir-te
 na escuridão da tua casa.
 Ah era de noite
 e de súbito tudo era apenas
 lábios pálpebras intumescências
 cobrindo o corpo de flutuantes volteios
 de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
 Beijava os teus olhos por dentro
 beijava os teus olhos pensados
 beijava-te pensando
 e estendia a mão sobre o meu pensamento
 corria para ti
 minha praia jamais alcançada
 impossibilidade desejada
 de apenas poder pensar-te.

 São mil e umas
 as noites em que não bato à tua porta
 e vens abrir-me. 



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