Mostrando postagens com marcador Manuel Bandeira. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Manuel Bandeira. Mostrar todas as postagens

Tempo Será: - Manuel Bandeira


A Eternidade está longe
(Menos longe que o estirão
Que existe entre o meu desejo
E a palma da minha mão).

Um dia serei feliz?
Sim, mas não há de ser já:
A Eternidade está longe,
Brinca de tempo-será.

Camelôs - Manuel Bandeira

Abençoado seja o camelô dos brinquedos de tostão:
O que vende balõezinhos de cor
O macaquinho que trepa no coqueiro
O cachorrinho que bate com o rabo
Os homenzinhos que jogam box
A perereca verde que de repente dá um pulo que engraçado
E as canetinhas-tinteiro que jamais escreverão coisa alguma.

Alegria das calçadas
Uns falam pelos cotovelos:
– "O cavalheiro chega em casa e diz:
Meu filho, vai buscar um pedaço de banana para eu
acender o charuto. Naturalmente o menino pensará: Papai está malu..."

Outros, coitados, têm a língua atada.

Todos porém sabem mexer nos cordéis com o tino ingênuo de demiurgos
de inutilidades.
E ensinam no tumulto das ruas os mitos heróicos da meninice...
E dão aos homens que passam preocupados ou tristes
uma lição de infância.

Crepúsculo de Outono - Manuel Bandeira

O crepúsculo cai, manso como uma bênção.
Dir-se-á que o rio chora a prisão de seu leito...
As grandes mãos da sombra evangélicas pensam
As feridas que a vida abriu em cada peito.

O outono amarelece e despoja os lariços.
Um corvo passa e grasna, e deixa esparso no ar
O terror augural de encantos e feitiços.
As flores morrem. Toda a relva entra a murchar.

Os pinheiros porém viçam, e serão breve
Todo o verde que a vista espairecendo vejas,
Mais negros sobre a alvura unânime da neve,
Altos e espirituais como flechas de igrejas.

Um sino plange. A sua voz ritma o murmúrio
Do rio, e isso parece a voz da solidão.
E essa voz enche o vale...o horizonte purpúreo...
Consoladora como um divino perdão.

O sol fundiu a neve. A folhagem vermelha
Reponta. Apenas há, nos barrancos retortos,
Flocos, que a luz do poente extática semelha
A um rebanho infeliz de cordeirinhos mortos.

A sombra casa os sons numa grave harmonia.
E tamanha esperança e uma tão grande paz
Avultam do clarão que cinge a serrania,
Como se houvesse aurora e o mar cantando atrás.

Ruço - Manuel Bandeira

Muda e sem trégua
Galopa a névoa, galopa a névoa.

Minha janela desmantelada
Dá para o vale do desalento.
Sombrio vale! Não vejo nada
Senão a névoa que toca o vento.

Lá vão os dias de minha infância
- Imagens rotas que se desmancham:

O vento do largo na praia,
o meu vestidinho de saia,

Aquele corvo, o vôo torvo,
O meu destino, aquele corvo!

O que eu cuidava do mundo mau!
Os ladrões com cara de pau!

As histórias que se faziam sonhar;
E os livros: Simplício olha para o ar,

João Felpudo, Viagem à roda do mundo
Numa casquinha de noz.

A nossa infância, ó minha irmã, tão longe de nós!

Alumbramento - Manuel Bandeira

Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!

Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela... e sinto-a pura...

Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar!

Eu vi o mar! Lírios de espuma
Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...
Vi a licorne alvinitente!...
Vi... vi o rastro do Senhor!...

E vi a Via Láctea ardente...
Vi comunhões... capelas... véus...
Súbito... alucinadamente...

Vi carros triunfais... troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

- Eu vi-a nua... toda nua!

Madrigal melancólico - Manuel Bandeira

O que eu adoro em ti,
Não é a tua beleza.
A beleza, é em nós que ela existe.

A beleza é um conceito.
E a beleza é triste.
Não é triste em si,
Mas pelo que há nela
de fragilidade e de incerteza.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua inteligência.
Não é o teu espírito subtil,
Tão ágil, tão luminoso,
- Ave solta no céu matinal da montanha.
Nem a tua ciência
Do coração dos homens e das coisas.

O que eu adoro em ti,
Não é a tua graça musical,
Sucessiva e renovada a cada momento,
Graça aérea como o teu próprio pensamento,
Graça que perturba e que satisfaz.

O que eu adoro em ti,
Não é a mãe que já perdi.
Não é a irmã que já perdi.
E meu pai.

O que eu adoro em tua natureza,
Não é o profundo instinto maternal
Em teu flanco aberto como uma ferida.
Nem a tua pureza. Nem a tua impureza.
O que eu adoro em ti - lastima-me e consola-me!
O que eu adoro em ti, é a vida.

Os Sinos - Manuel Bandeira

Sino de Belém,
Sino da paixão...

Sino de Belém,
Sino da paixão...

Sino do Bonfim!...
Sino do Bonfim!...

Sino de Belém, pelos que ainda vêm!
Sino de Belém, bate bem-bem-bem.

Sino da paixão, pelos que ainda vão!
Sino da paixão, bate bão-bão-bão.

Sino do Bonfim, por que chora assim?...

Sino de Belém, que graça ele tem!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.

Sino da paixão. - pela minha irmã!
Sino da paixão. - pela minha mãe!

Sino do Bonfim, que vai ser de mim?...

Sino de Belém, como soa bem!
Sino de Belém bate bem-bem-bem.

Sino da paixão... Por meu pai?...-Não! Não!
Sino da paixão bate bão-bão-bão.
Sino do Bonfim, baterás por mim?...

Sino de Belém,
Sino da paixão...
Sino da paixão, pelo meu irmão...

Sino da paixão,
Sino do Bonfim...
Sino do Bonfim, ai de mim, por mim!

Sino de Belém, que graça ele tem!

Acalanto de John Talbot - Manuel Bandeira

Dorme, meu filhinho,
Dorme sossegado.
Dorme, que a teu lado
Cantarei baixinho.
O dia não tarda...
Vai amanhecer:
Como é frio o ar!
O anjinho da guarda
Que o Senhor te deu,
Pode adormecer,
Pode descansar.
Que te guardo eu.

Unidade - Manuel Bandeira

Minh’alma estava naquele instante
Fora de mim longe muito longe

Chegaste
E desde logo foi verão
O verão com as suas palmas
os seus mormaços
os seus ventos de sôfrega mocidade
Debalde os teus afagos
insinuavam quebranto e molície
Era como uma seta de fogo

Foi então que minh’alma veio vindo
Veio vindo de muito longe
Veio vindo
Para de súbito entrar-me violenta
e sacudir-me todo
No momento fugaz da unidade.

Cotovia - Manuel Bandeira

— Alô, cotovia!
Aonde voaste,
Por onde andaste,
Que saudades me deixaste?

— Andei onde deu o vento.
Onde foi meu pensamento
Em sítios, que nunca viste,
De um país que não existe . . .
Voltei, te trouxe a alegria.

— Muito contas, cotovia!
E que outras terras distantes
Visitaste? Dize ao triste.

— Líbia ardente, Cítia fria,
Europa, França, Bahia . . .

— E esqueceste Pernambuco,
Distraída?

— Voei ao Recife, no Cais
Pousei na Rua da Aurora.

— Aurora da minha vida
Que os anos não trazem mais!

— Os anos não, nem os dias,
Que isso cabe às cotovias.
Meu bico é bem pequenino
Para o bem que é deste mundo:
Se enche com uma gota de água.
Mas sei torcer o destino,
Sei no espaço de um segundo
Limpar o pesar mais fundo.
Voei ao Recife, e dos longes
Das distâncias, aonde alcança
Só a asa da cotovia,
— Do mais remoto e perempto
Dos teus dias de criança
Te trouxe a extinta esperança,
Trouxe a perdida alegria.

Andorinha - Manuel Bandeira

Andorinha lá fora está dizendo:
- "Passei o dia à toa, à toa!"

Andorinha, andorinha, minha cantiga é mais triste!
Passei a vida à toa, à toa...

Pneumotórax - Manuel Bandeira


Febre, hemoptise, dispnéia e suores noturnos.
A vida inteira que podia ter sido e que não foi.
Tosse, tosse, tosse.

Mandou chamar o médico:
- Diga trinta e três.
- Trinta e três ... trinta e três ... trinta e três...
- Respire.

(...)

- O senhor tem uma escavação no pulmão esquerdo
[e o pulmão direito infiltrado.
- Então, doutor, não é possível tentar
[o pneumotórax?
- Não. A única coisa a fazer é tocar
[um tango argentino.

Epígrafe - Manuel Bandeira



Sou bem-nascido. Menino,
Fui, como os demais, feliz.
Depois, veio o mau destino
E fez de mim o que quis.

Veio o mau gênio da vida,
Rompeu em meu coração,
Levou tudo de vencida,
Rugiu como um furacão,

Turbou, partiu, abateu,
Queimou sem razão nem dó –
Ah, que dor!
Magoado e só,
– Só! – meu coração ardeu:

Ardeu em gritos dementes
Na sua paixão sombria...
E dessas horas ardentes
Ficou esta cinza fria.

– Esta pouca cinza fria...


Ruço - Manuel Bandeira

Muda e sem trégua
Galopa a névoa, galopa a névoa.

Minha janela desmantelada
Dá para o vale do desalento.
Sombrio vale! Não vejo nada
Senão a névoa que toca o vento.

Lá vão os dias de minha infância
- Imagens rotas que se desmancham:

O vento do largo na praia,
o meu vestidinho de saia,

Aquele corvo, o voo torvo,
O meu destino, aquele corvo!

O que eu cuidava do mundo mau!
Os ladrões com cara de pau!

As histórias que se faziam sonhar;
E os livros: Simplício olha para o ar,

João Felpudo, Viagem à roda do mundo
Numa casquinha de noz.

A nossa infância, ó minha irmã, tão longe de nós!

Quadrilha - Manuel Bandeira

Roda, ciranda,
Por aí fora,
Chegou a hora
De cirandar!
Na tarde clara
Vinde ligeiras,
Ó companheiras,
Rir e dançar!

Moças que dançam
Nas horas breves
Dos sonhos leves,
Na doce idade
Das ilusões,
Guardam lembrança,
Boa lembrança
Da mocidade
Nos corações.

Roda ,ciranda,
Como essas belas,
Gratas estrelas
Dos nossos céus!
Vamos, em rondas
Precipitadas,
Como levadas
Nas asas dos véus!

Moças que dançam
Nas horas leves
Dos sonhos breves,
Na doce idade
Das ilusões,
Guardam lembrança,
Boa lembrança
Da mocidade
Nos corações.

Irene no céu - Manuel Bandeira

Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.

Imagino Irene entrando no céu:
- Com licença, meu branco.
E São Pedro, bonachão:
- Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.

O impossível carinho - Manuel Bandeira

Escuta, eu não quero contar-te o meu desejo
Quero apenas contar-te a minha ternura
Ah se em troca de tanta felicidade que me dás
Eu te pudesse repor
- Eu soubesse repor -
No coração despedaçado
As mais puras alegrias de tua infância!

Auto-retrato - Manuel Bandeira

Provinciano que nunca soube
Escolher bem uma gravata;
Pernambucano a quem repugna
A faca do pernambucano;
Poeta ruim que na arte da prosa
Envelheceu na infância da arte,
E até mesmo escrevendo crônicas
Ficou cronista de província;
Arquiteto falhado, músico
Falhado (engoliu um dia
Um piano, mas o teclado
Ficou de fora); sem família,
Religião ou filosofia;
Mal tendo a inquietação de espírito
Que vem do sobrenatural,
E em matéria de profissão
Um tísico profissional.

Noite morta - Manuel Bandeira

Noite morta.
Junto ao poste de iluminação
Os sapos engolem mosquitos.

Ninguém passa na estrada.
Nem um bêbado.

No entanto há seguramente por ela
uma procissão de sombras.
Sombras de todos os que passaram.
Os que ainda vivem e os que já morreram.

O córrego chora.
A voz da noite . . .

(Não desta noite, mas de outra maior).