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Escuto - Sophia de Mello B. Andresen




Escuto mas não sei
Se o que oiço é silêncio
Ou Deus.

Escuto sem saber se estou ouvindo
O ressoar das planícies do vazio
Ou a consciência atenta
Que nos confins do universo
Me decifra e fita.

Apenas sei que caminho como quem
É olhado amado e conhecido
E por isso em cada gesto ponho
Solenidade e risco.

As imagens transbordam - Sophia de Mello B. Andresen



As imagens transbordam fugitivas.
E estamos nus em frente às coisas vivas.
Que presença jamais pode cumprir
O impulso que há em nós, interminável,
De tudo ser e em cada flor florir?

Para atravessar contigo o deserto do mundo - Sophia de Mello B. Andresen


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento.

Mar - Sophia de Mello B. Andresen



Mar, metade da minha alma é feita de maresia
Pois é pela mesma inquietação e nostalgia,
Que há no vasto clamor da maré cheia,
Que nunca nenhum bem me satisfez.
E é porque as tuas ondas desfeitas pela areia
Mais fortes se levantam outra vez,
Que após cada queda caminho para a vida,
Por uma nova ilusão entontecida.

E se vou dizendo aos astros o meu mal
É porque também tu revoltado e teatral
Fazes soar a tua dor pelas alturas.
E se antes de tudo odeio e fujo
O que é impuro, profano e sujo,
É só porque as tuas ondas são puras.

Quem és tu - Sophia de Mello B. Andresen


Quem és tu que assim vens pela noite adiante,
Pisando o luar branco dos caminhos,
Sob o rumor das folhas inspiradas?

A perfeição nasce do eco dos teus passos,
E a tua presença acorda a plenitude
A que as coisas tinham sido destinadas.

A história da noite é o gesto dos teus braços,
O ardor do vento a tua juventude,
E o teu andar é a beleza das estradas.

A luz oblíqua - Sophia de Mello B. Andresen

A luz oblíqua da tarde
Morre e arde
Nas vidraças

Nas coisas nascem fundas taças
Para a receber,
E ali eu vou beber.

A um canto cismo
Suspensa entre as horas e um abismo

A vibração das coisas cresce.
Cada instante
No seu secreto murmurar é semelhante
A um jardim que verdeja e que floresce.

Poesia - Sophia de Mello B. Andresen



Se todo o ser ao vento abandonamos
E sem medo nem dó nos destruímos,
Se morremos em tudo o que sentimos
E podemos cantar, é porque estamos
Nus em sangue, embalando a própria dor
Em frente às madrugadas do amor.
Quando a manhã brilhar refloriremos
E a alma possuirá esse esplendor
Prometido nas formas que perdemos.

Aqui, deposta enfim a minha imagem,
Tudo o que é jogo e tudo o que é passagem.
No interior das coisas canto nua.

Aqui livre sou eu — eco da lua
E dos jardins, os gestos recebidos
E o tumulto dos gestos pressentidos
Aqui sou eu em tudo quanto amei.

Não pelo meu ser que só atravessei,
Não pelo meu rumor que só perdi,
Não pelos incertos atos que vivi,

Mas por tudo de quanto ressoei
E em cujo amor de amor me eternizei.

As fontes - Sophia de Mello B. Andresen

Um dia quebrarei todas as pontes
Que ligam o meu ser, vivo e total,
À agitação do mundo do irreal,
E calma subirei até às fontes

Irei até às fontes onde mora
A plenitude, o límpido esplendor
Que me foi prometido em cada hora,
E na face incompleta do amor

Irei beber a luz e o amanhecer,
Irei beber a voz dessa promessa
Que às vezes como um voo me atravessa,
E nela cumprirei todo o meu ser.

Sacode as nuvens - Sophia de Mello B. Andresen



Sacode as nuvens que te pousam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Dia do mar no ar - Sophia de Mello B. Andresen

Dia do mar no ar, construído
Com sombras de cavalos e de plumas.

Dia do mar no meu quarto-cubo
Onde os meus gestos sonâmbulos deslizam
Entre o animal e a flor como medusas.

Dia do mar no ar, dia alto
Onde os meus gestos são gaivotas que se perdem
Rolando sobre as ondas, sobre as nuvens.

Casa - Sophia de Mello B. Andresen

A antiga casa que os ventos rodearam
Com suas noites de espanto e de prodígio
Onde os anjos vermelhos batalharam

A antiga casa de Inverno em cujos vidros
Os ramos nus e negros se cruzaram
Sobre o íman dum céu lunar e frio

Permanece presente como um reino
E atravessa meus sonhos como um rio.

A noite e a casa - Sophia de Mello B. Andresen

A noite reúne a casa e o seu silêncio
Desde o alicerce desde o fundamento
Até a flor imóvel
Apenas se houve bater o relógio do tempo

A noite reúne a casa a seu destino

Nada agora se dispersa se divide
Tudo está como o cipreste atento

O vazio caminha em seus espaços vivos.

A fonte - Sophia de Mello B. Andresen

Com voz nascente a fonte nos convida
A renascermos incessantemente
Na luz do antigo sol nu e recente
E no sussurro da noite primitiva.

Procelária - Sophia de Mello B. Andresen

É vista quando há vento e grande vaga
Ela faz o ninho no rolar da fúria
E voa firme e certa como bala

As suas asas empresta à tempestade
Quando os leões do mar rugem nas grutas
Sobre os abismos passa e vai em frente

Ela não busca a rocha o cabo o cais
Mas faz da insegurança a sua força
E do risco de morrer seu alimento

Por isso me parece a imagem justa
Para quem vive e canta no mau tempo.

Flores - Sophia de Mello B. Andresen



Era preciso agradecer às flores
Terem guardado em si,
Límpida e pura,
Aquela promessa antiga
De uma manhã futura.

A paz sem vencedor e sem vencidos - Sophia de Mello B. Andresen



Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos
A paz sem vencedor e sem vencidos
Que o tempo que nos deste seja um novo
Recomeço de esperança e de justiça.
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Erguei o nosso ser à transparência
Para podermos ler melhor a vida
Para entendermos vosso mandamento
Para que venha a nós o vosso reino
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Fazei Senhor que a paz seja de todos
Dai-nos a paz que nasce da verdade
Dai-nos a paz que nasce da justiça
Dai-nos a paz chamada liberdade
Dai-nos Senhor a paz que vos pedimos

A paz sem vencedor e sem vencidos

Em todos os jardins - Sophia de Mello B. Andresen

Em todos os jardins hei-de florir,
Em todos beberei a lua cheia,
Quando enfim no meu fim eu possuir
Todas as praias onde o mar ondeia.

Um dia serei eu o mar e a areia,
A tudo quanto existe me hei-de unir,
E o meu sangue arrasta em cada veia
Esse abraço que um dia se há-de abrir.

Então receberei no meu desejo
Todo o fogo que habita na floresta
Conhecido por mim como num beijo.

Então serei o ritmo das paisagens,
A secreta abundância dessa festa
Que eu via prometida nas imagens.

Praia - Sophia de Mello B. Andresen



Os pinheiros gemem quando passa o vento
O sol bate no chão e as pedras ardem

Longe caminham os deuses fantásticos do mar
Brancos de sal e brilhantes como peixes

Pássaros selvagens de repente,
atirados contra a luz como pedradas
Sobem e morrem no céu verticalmente
E o seu corpo é tomado nos espaços.

As ondas marram quebrando contra a luz
A sua fronte ornada de colunas

E uma antiquíssima nostalgia de ser mastro
baloiça nos pinheiros.

Fundo do mar - Sophia de Mello B. Andresen

No fundo do mar há brancos pavores,
Onde as plantas são animais
E os animais são flores.

Mundo silencioso que não atinge
A agitação das ondas.
Abrem-se rindo conchas redondas,
Baloiça o cavalo-marinho.
Um polvo avança
No desalinho
Dos seus mil braços,
Uma flor dança,
Sem ruído vibram os espaços.

Sobre a areia o tempo poisa
Leve como um lenço.

Mas por mais bela que seja cada coisa
Tem um monstro em si suspenso.

Cantata de paz - Sophia de Mello B. Andresen

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.