Humildade - Cecília Meireles

Tanto que fazer!
Livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem,
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.

E os pássaros detrás de grades de chuvas,
e os mortos em redoma de cânfora.

( E uma canção tão bela ! )

Tanto que fazer !
E nunca soubemos quem éramos
nem para quê.

O mar é longe, mas somos nós o vento - Pedro Tamen

O mar é longe, mas somos nós o vento;
e a lembrança que tira, até ser ele,
é doutro e mesmo, é ar da tua boca
onde o silêncio pasce e a noite aceita.
Donde estás, que névoa me perturba
mais que não ver os olhos da manhã
com que tu mesma a vês e te convém?
Cabelos, dedos, sal e a longa pele,
onde se escondem a tua vida os dá;
e é com mãos solenes, fugitivas,
que te recolho viva e me concedo
a hora em que as ondas se confundem
e nada é necessário ao pé do mar.

Manoel de Barros

A lua faz silêncio para os pássaros,
- eu escuto esse escândalo!
Um perfume vermelho me pensou.
(Eu contamino a luz do anoitecer?)
Esses vazios me restritam mais.
Alguns pedaços de mim já são desterro.
......................................
(É a sensatez que aumenta os absurdos?)
De noite bebo água de merenda.
Me mantimento de ventos.
Descomo sem opulências. . .
Desculpe a delicadeza.

Verdes reinos encantados - Cecília Meireles

Seremos ainda românticos
- e entraremos na densa mata,
em busca de flores de prata,
de aéreos, invisíveis cânticos.

Nas pedras, à sombra, sentados,
respiraremos a frescura
dos verdes reinos encantados
das lianas e da fonte pura.

E tão românticos seremos,
de tão magoado romantismo,
que as folhas dos galhos supremos
que se desprenderem no abismo

pousarão na nossa memória
- secas borboletas caídas -
e choraremos sua história,
resumo de todas as vidas.

Adriana Calcanhoto - Canção de novela

Apresentação - Cecília Meireles


Aqui está minha vida — esta areia tão clara
com desenhos de andar dedicados ao vento.

Aqui está minha voz — esta concha vazia,
sombra de som curtindo o seu próprio lamento.

Aqui está minha dor — este coral quebrado,
sobrevivendo ao seu patético momento.

Aqui está minha herança — este mar solitário,
que de um lado era amor e, do outro, esquecimento.

Espera - Roseana Murray

Pintura de Grace Patterson - A Espera

Ando na ponta dos pés
dentro de mim tudo dorme
um sono de areia

as palavras com que me untei
as casas suas paredes
de cal e esquecimento

dormem as pegadas
dos que me tocaram
com pensamentos e sinos

tudo dorme
um sono oblíquo
à espera de um poema.

Manoel de Barros

Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos
ouvem de longe
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho
1 abridor de amanhecer
1 prego que farfalha
1 encolhedor de rios - e
1 esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando 3
fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada.)
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua
incompletude?).

Adélia Prado


É roxo o amor,
de amoras não,
de dor.

Aproveitar o tempo - Álvaro de Campos\Fernando Pessoa


Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo ou de ser!...
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisa,
A poeira de uma estrada involuntária e sozinha,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai a parar,

E estremece, no mesmo movimento que o da terra,
E oscila, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caem os deuses, no chão do Destino.

Pour faire le portrait d'un oiseau

Antes soubesse eu - Hilda Hist



Antes soubesse eu
o que fazer com estrelas na mão.
Se dilacerar-lhes a ponta
ou simplesmente não tocá-las.
Se estão perto cegam meus olhos
Se estão longe as desejo.

Antes soubesse eu
o que fazer com estrelas na mão.

Pôr - do - Sol - J.G.de Araujo Jorge

Pelo vão da janela escancarada
Tenho os olhos pousados no horizonte,
Até que atrás da serra o luar desponte
Na noite só de estrelas pontilhada...

Lá em baixo – como a fita de uma estrada
Sob a arcada mourisca de uma ponte,
As águas cristalinas de uma fonte
São o espelho da tarde iluminada...

Há chilreios na sombra do arvoredo
E no ouvido das árvores, passando,
O vento diz baixinho algum segredo...

Multiplicam-se as sombras nas quebradas
E as nuvens lembram na distância, um bando
De pétalas de luz, ensanguentadas!

A realidade da alma - Victor Hugo

A realidade é a alma
A bem dizer, o rosto é uma máscara
O verdadeiro homem é o que
está debaixo do homem
Mais uma surpresa haveria se
pudesse vê-lo agachado e escondido
debaixo da ilusão que se chama carne...
Não há nada que se pareça
mais com a alma do que a abelha
A abelha vai de flor em flor
como a alma de estrela em estrela
E a abelha produz mel
como a alma produz claridade.

Caio Fernando Abreu


Não, não ofereço perigo algum:
sou quieta como folha de outono
esquecida entre as páginas de um livro,
sou definida e clara como o jarro
com a bacia de ágata no canto do quarto
- se tomada com cuidado,
verto água límpida sobre as mãos
para que se possa refrescar o rosto mas,
se tocada por dedos bruscos
num segundo me estilhaço em cacos,
me esfarelo em poeira dourada.

Canção do Amor Imprevisto - Mário Quintana

Eu sou um homem fechado.
O mundo me tornou egoí­sta e mau.
E minha poesia é um vício triste,
Desesperado e solitário
Que eu faço tudo por abafar.
Mas tu apareceste com tua boca fresca de madrugada,
Com teu passo leve,
Com esses teus cabelos...
E o homem taciturno ficou imóvel,
sem compreender nada, numa alegria atônita...
A súbita alegria de um espantalho inútil
Aonde viessem pousar os passarinhos!

O fazer poético - Alice Ruiz

Como se acaba um poema?
Perguntou a alma
à pena.

Sem intenção,
respondeu
a página em branco

Quando pena
se deposita
sobre pena
página
e alma
estão plenas.

Pássaro - Cecília Meireles


Aquilo que ontem cantava
já não canta.
Morreu de uma flor na boca:
não do espinho na garganta.

Ele amava a água sem sede,
e, em verdade,
tendo asas, fitava o tempo,
livre de necessidade.

Não foi desejo ou imprudência:
não foi nada.
E o dia toca em silêncio
a desventura causada.

Se acaso isso é desventura:
ir-se a vida
sobre uma rosa tão bela,
por uma tênue ferida.