Balada dos Casais - Affonso Romano de Sant’Anna

Os casais são tão iguais,
por isto se casam
e anunciam nos jornais.
Os casais são tão iguais,
por isto se beijam
fazem filhos, se separam
prometendo
não se casarem jamais.

Os casais são tão iguais,
que além de trocar fraldas,
tirar fotos, acabam se tornando
avós e pais.

Os casais são tão iguais,
que se amam e se insultam
e se matam na realidade
e nos filmes policiais.

Os casais são tão iguais,
que embora jurem um ao outro
amor eterno
sempre querem mais.

Carla Visi e Gilberto Gil - Só chamei porque te amo

Dia de Chuva - Cecília Meireles

As espumas desmanchadas
sobem-me pela janela,
correndo em jogos selvagens
de corça e estrela.

Pastam nuvens no ar cinzento:
bois aéreos, calmos, tristes,
que lavram esquecimento.

Velhos telhados limosos
cobrem palavras, armários,
enfermidades, heroísmos. . .

Quem passa é como um funâmbulo,
equilibrado na lama,
metendo os pés por abismos. . .

Dia tão sem claridade!
só se conhece que existes
pelo pulso dos relógios. . .

Se um morto agora chegasse
àquela porta, e batesse,
com um guarda-chuva escorrendo,
e, com limo pela face,
ali ficasse batendo

-ali ficasse batendo
àquela porta esquecida
sua mão de eternidade. . .

Tão frenético anda o mar
que não se ouviria o morto
bater à porta e chamar. . .

E o pobre ali ficaria
como debaixo da terra,
exposto à surdez do dia.

Pastam nuvens no ar cinzento.
Bois aéreos que trabalham
no arado do esquecimento.

Emily Dickinson

A água se ensina pela sede;
A terra, por oceanos navegados;
O êxtase, pela aflição;
A paz, pelos combates narrados;
O amor, pela cinza da memória
E, pela neve, os pássaros.

Abandonei-me ao Vento - Carlos Nejar

Abandonei-me ao vento. Quem sou, pode
explicar-te o vento que me invade.
E já perdi o nome ao som da morte,
ganhei um outro livre, que me sabe

quando me levantar e o corpo solte
o meu despojo vão. Em toda parte
o vento há-de soprar, onde não cabe
a morte mais. A morte a morte explode.

E os seus fragmentos caem na viração
e o que ela foi na pedra se consome.
Abandonei-me ao vento como um grão.

Sem a opressão dos ganhos, utensílio,
abandonei-me. E assim fiquei conciso,
eterno. Mas o amor guardou meu nome.

Álvaro Bastos

Suas palavras são balões soltos no parque,
pipas alaranjadas que recortam o azul
com cauda de samambaia e serpentina.
São notas musicais que bailam nas nuvens,
Desenhos animados de alucinada correria.
São mapas de piratas, tesouros de turmalina,
Poções de feiticeiras doidas e enternecidas,
Encantos que fazem brotar luas e estrelinhas,
Pegadas das folhas de outono no vento,
Florestas de esmeraldas, fogueiras de rubis.
Falam dos nomes e sobrenomes das fadas,
Apelidos de quando os magos ainda eram guris.
São pequenos sinos que dão risadas delicadas,
Têm o som da chuva que balança os trevos,
São douradas como abelhas carregando mel
e preenchem de sonhos os cinco sentidos.

Emily Dickinson

Ela varre com vassouras multicores
E sai espalhando fiapos,
Ó Dona arrumadeira do crepúsculo,
Volta atrás e espana os lagos:

Deixaste cair novelo de púrpura,
E acolá um fio de âmbar,
Agora, vejam, alastras todo o leste
Com estes trapos de esmeralda!
Inda a brandir vassouras coloridas,
Inda a esvoaçar aventais,
Até que as piaçabas viram estrelas —

E eu me vou, não olho mais.

Dorme, criança, dorme - Fernando Pessoa

Dorme, criança, dorme,
Dorme que eu velarei;
A vida é vaga e informe,
O que não há é rei.
Dorme, criança, dorme,
Que também dormirei.
Bem sei que há grandes sombras
Sobre áleas de esquecer,
Que há passos sobre alfombras
De quem não quer viver;
Mas deixa tudo às sombras,
Vive de não querer.

Figurinhas II - Cecília Meireles

Onde está meu quintal
amarelo e encarnado,
com meninos brincando
de chicote-queimado,
com cigarras nos troncos
e formigas no chão,
e muitas conchas brancas
dentro da minha mão?

E Júlia e Maria
e Amélia onde estão?

Onde está meu anel
e o banquinho quadrado
e o sabiá na mangueira
e o gato no telhado?

- a moringa de barro,
e o cheiro do alvo pão?
E a tua voz, Pedrina,
sobre meu coração?
Em que altos balanços
se balançarão?...

O retrato fiel - Gilka Machado

Não creias nos meus retratos,
nenhum deles me revela,
ai, não me julgues assim!

Minha cara verdadeira
fugiu às penas do corpo,
ficou isenta da vida.

Toda minha faceirice
e minha vaidade toda
estão na sonora face;

naquela que não foi vista
e que paira, levitando,
em meio a um mundo de cegos.

Os meus retratos são vários
e neles não terás nunca
o meu rosto de poesia.

Não olhes os meus retratos,
nem me suponhas em mim.

Crying in the Rain - Art Garfunkel

Fragmento de marfim - Rainer Maria Rilke

Manso pastor que sobrevive
delicadamente em seu posto
carregando no encosto
retalhos de ovelha.
Manso pastor que sobrevive
em marfim amarelado
ao jogo do pastoreado.
Teu rebanho abolido,
como tu, perdura
na lenta melancolia
de tua atenciosa figura
que resume no infinito
a treva de pastagens duras.

Além de mim - Olga Savary

Além de mim, quero apenas
essa tranqüilidade de campos de flores
e este gesto impreciso
recompondo a infância.

Além de mim
– e entre mim e meu deserto –
quero apenas silêncio,
cúmplice absoluto do meu verso,
tecendo a teia do vestígio
com cuidado de aranha.

Assovio - Cecília Meireles

Ninguém abra a sua porta
para ver que aconteceu:
saí­mos de braço dado,
a noite escura mais eu.

Ela não sabe o meu rumo,
eu não lhe pergunto o seu:
não posso perder mais nada,
se o que houve já se perdeu.

Vou pelo braço da noite,
levando tudo que é meu:
- a dor que os homens me deram.
e a canção que Deus me deu.

Nádia Dantas


música na tarde
o canto e encanto dos pássaros
anunciam paz.

Despertar - Helena Kolody

Deteve o passo
e tombou
na água funda e misteriosa.

Na outra margem,
acordou
do pesadelo da vida.

Contusão - Sylvia Plath

A cor invade o lugar, púrpura baça.
O resto do corpo está todo pálido,
Cor de pérola.

Numa fenda de rocha
O mar suga obsessivamente,
Uma cavidade o âmago de todo o mar.

Do tamanho de uma mosca,
A marca do destino
Rasteja muro abaixo.

O coração se fecha.
O mar reflui,
Os espelhos são cobertos.

Magnificat - Álvaro de Campos (F.Pessoa)




Quando é que passará esta noite interna, o universo,
E eu, a minha alma, terei o meu dia?
Quando é que despertarei de estar acordado?
Não sei. O sol brilha alto,
Impossível de fitar.
As estrelas pestanejam frio,
Impossíveis de contar.
O coração pulsa alheio,
Impossível de escutar.
Quando é que passará este drama sem teatro,
Ou este teatro sem drama,
E recolherei a casa?
Onde? Como? Quando?
Gato que me fitas com olhos de vida, que tens lá no fundo?
É esse! É esse!
Esse mandará como Josué parar o sol e eu acordarei;
E então será dia.
Sorri, dormindo, minha alma!
Sorri, minha alma, será dia !

Canção de ninar - Helena Kolody

(para uma criança da favela)

Criança, és fio d'água
Triste desde a fonte.
Humilde plantinha
Nascido em monturo:
Quanta ausência mora
Nesse olhar escuro!

Recosta a cabeça
Na minha cantiga
Deixa que te envolva,
Que te beije e embale.

Canção na janela - Lya Luft

Há pouco emergi
da mornidão do sono.
Pensei flutuar:
onde termina minha vida
e começa o mar?
Tudo ao meu redor são dois
cristais reverberando.

Meu destino me contempla
indagador:
nesta imensidão
sou um capim perfumado
que balança, a um tempo
susto e chamamento
-pronta para me desfazer
em outra alma.