HAIKAI - Carlos Seabra

pássaro tenor
afina a garganta
ao sol se pôr

A Moça e o Trem - João Cabral de Melo Neto

O trem de ferro
passa no campo
entre telégrafos.
Sem poder fugir
sem poder voar
sem poder sonhar
sem poder ser telégrafo.

A moça na janela
vê o trem correr
ouve o tempo passar.
O tempo é tanto
que se pode ouvir
e ela o escuta passar
como se outro trem.

Cresce o oculto
elástico dos gestos:
a moça vê a planta crescer
sente a terra rodar:
que o tempo é tanto
que se deixa ver.

Soneto de julho - Ruy Espinheira Filho

É muito tarde para não te amar.
Tudo o que ouço é o sopro do teu nome.
O que sinto é teu corpo, que consome
— presente, ausente — o meu corpo. Luar

em que me abraso, morro: teu olhar
ofuscando memórias, onde some
um mundo, e outro se ergue. Sede, fome
e esperança. Ah, para não te amar

é tão tarde que tudo é já distância,
que só respiro este luar que me arde,
este sopro sem praias do teu nome,

esta pedra em que pulsa e medra a ânsia
e esta aura, enfim, em que me envolve (é tarde!)
o que és — presente, ausente — e me consome.

Soneto - John Keats

Quando fico a pensar poder deixar de ser
antes que a minha pena haja tudo traçado,
antes que em algum livro ainda possa colher
dos grãos que semeei o fruto sazonado;

quando vejo na noite os astros a brilhar
- vasto e obscuro Universo, impenetrável mundo! -
quando penso que nunca hei de poder traçar
sua imagem com arte e em sentido profundo;

quando sinto a fugaz beleza de alguma hora
que não verei jamais – como doce miragem –
turva-se a minha mente, e a alma em silêncio chora

um impulsivo amor. E a sós, me sinto à margem
do imenso mundo, e anseio imergir a alma em nada
até que a glória e o amor me deem a hora sonhada!

A Carlos Drummond de Andrade - João Cabral de Melo Neto


Não há guarda-chuva
 contra o poema
 subindo de regiões onde tudo é surpresa
 como uma flor mesmo num canteiro.

Não há guarda-chuva
 contra o amor
 que mastiga e cospe como qualquer boca,
 que tritura como um desastre.

Não há guarda-chuva
 contra o tédio:
 o tédio das quatro paredes, das quatro
 estações, dos quatro pontos cardeais.

Não há guarda-chuva
 contra o mundo
 cada dia devorado nos jornais
 sob as espécies de papel e tinta.

Não há guarda-chuva
 contra o tempo,
 rio fluindo sob a casa, correnteza
 carregando os dias, os cabelos.


O gol - Ferreira Gullar


A esfera desce
Do espaço
Veloz
Ele a apara
No peito
E a pára
No ar

Depois
Com o joelho
A dispõe a meia altura
Onde
Iluminada
A esfera
Espera
O chute que
Num relâmpago
A dispara
Na direção
Do nosso
Coração.

Pão nosso - Ivo Barroso

Amanhã nosso pão terá pedra — e o comeremos.
Ao parti-lo, amanhã, nosso pão será de pedra
e o comeremos.
Ao se partir em dois, o pão que a nossa fome espera,
será pedra,
e o comeremos.

Pois aceitar é o que estamos
fazendo neste dia, pois aceitar
é o que viemos fazendo nos dias
que antecederam mais um, que é este dia;
pois aceitar é o que vamos fazendo sem sentir
como quem come a pedra em vez do pão
pensando o pão.
Partindo-o, partiremos um seixo apenas.
Um seixo, afinal, que em vez de atirá-lo
— comeremos.

Nelson Freire - Dança do Índio Branco

Bucólica Nostálgica - Adélia Prado

Ao entardecer no mato, a casa entre
bananeiras, pés de manjericão e cravo-santo,
aparece dourada. Dentro dela, agachados,
na porta da rua, sentados no fogão, ou aí mesmo,
rápidos como se fossem ao Êxodo, comem
feijão com arroz, taioba, ora-pro-nobis,
muitas vezes abóbora.
Depois, café na canequinha e pito.
O que um homem precisa pra falar,
entre enxada e sono: Louvado seja Deus!

Estate - Joao Gilberto

O rei do mar - Cecília Meireles



Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...
Tempo que navegaremos
não se pode calcular.
Vimos as Plêiades. Vemos
agora a Estrela Polar.
Muitas velas. Muitos remos.
Curta vida. Longo mar.

Por água brava ou serena
deixamos nosso cantar,
vendo a voz como é pequena
sobre o comprimento do ar.
Se alguém ouvir, temos pena:
só cantamos para o mar...

Nem tormenta nem tormento
nos poderia parar.
(Muitas velas. Muitos remos.
Âncora é outro falar...)
Andamos entre água e vento
procurando o rei do mar. ..

A mão enorme - Jorge de Lima

Dentro da noite, da tempestade,
a nau misteriosa lá vai.
O tempo passa, a maré cresce,
O vento uiva.
A nau misteriosa lá vai.
Acima dela
que mão é essa maior que o mar?
Mão de piloto?
Mão de quem é?
A nau mergulha,
o mar é escuro,
o tempo passa.
Acima da nau
a mão enorme
sangrando está.
A nau lá vai.
O mar transborda,
as terras somem,
caem estrelas.
A nau lá vai.
Acima dela
a mão eterna
lá está.

Meu jardim - Cyro de Mattos

Ontem o girassol
brilhou de sol a sol.
Hoje a borboleta
brincou com a violeta
e a operosa abelha
beijou a rosa vermelha.

Amanhã a magnólia
vai contar a história
do Reizim Valentim
e seu cavalo Bandolim.
Coisas coloridas assim
acontecem em meu jardim.