À esperança - Julio Cortázar

Estica tuas perninhas enluvadas, esperança hirta.
Acendo um fósforo: esquenta-te. É suficiente para ti.
Depois contemplaremos nossos rostos
e pensaremos: como
mudou.

Acreditávamos
um no outro. Vê, não se deve.
Estica tuas maõzinhas frias, esperança.

Fazer o quê, o fósforo se apaga.

Veranico - Mário Quintana

Está marcando meio-dia nos olhos dos gatos.
As sombras esconderam-se debaixo da barriga dos cavalos
A cidadezinha sonolenta...A tarde
Avança, lentamente, com o casco coberto de poeira
Como uma tartaruga...
O poema empaca.O poeta adormece
De chatice...
A vida continua, indiferente.

Auto-apresentação - Elias José


Sou o poeta João,
Cheio de sonhos e pesadelos
E medos e coragem.
Tenho os olhos abertos, espertos
Para olhar o céu, o mar, a montanha
E todas as cores que a vida tem.
Tantos me tocam as cores da natureza
Como os olhos das garotas.

Tenho os ouvidos atentos
para a música, os ruídos todos
e a sonoridade dos sorrisos
e dos nomes de mulher.

Com os íntimos ou escrevendo
Sou falante, elétrico como um grilo.
Quando enfrento o desconhecido
Sou caracol encolhido em minha casca-casa.

Sou alegre e sou triste,
Sou poeta em projeto.
Acho que o poeta é um cara-de-pau
Que se joga todo sem redes,
Sem máscaras e sem olhos escuros.
É um ser que bota fogo no gelo
E espera um incêndio amazônico.

Para isso vivo e me preparo
Como só tenho quinze anos,
Estou ainda atiçando chispas.
Se uma chamazinha explodir,
Se um verde minúsculo brotar
Do azul do meu poema,
Se o diálogo quebrar a indiferença,
Valeu.

Sivuca - Feira de Mangaio

HAIKAI - Yeda Prates Bernis



Camisas alegres
gangorram agosto
no varal.

Versos na tarde - Adalgisa Nery



Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranqüilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.

Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.

Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.

Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença.

Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.


Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.

A queimada - Lêdo Ivo

Queime tudo o que puder :
as cartas de amor
as contas telefônicas
o rol de roupas sujas
as escrituras e certidões
as inconfidências dos confrades ressentidos
a confissão interrompida
o poema erótico que ratifica a impotência
e anuncia a arteriosclerose
os recortes antigos e as fotografias amareladas.

Não deixe aos herdeiros esfaimados
nenhuma herança de papel.

Seja como os lobos : more num covil
e só mostre à canalha das ruas os seus dentes afiados.
Viva e morra fechado como um caracol.
Diga sempre não à escória eletrônica.

Destrua os poemas inacabados, os rascunhos,
as variantes e os fragmentos
que provocam o orgasmo tardio dos filólogos e escoliastas.
Não deixe aos catadores do lixo literário nenhuma migalha.
Não confie a ninguém o seu segredo.
A verdade não pode ser dita.


HAIKAI - Alice Ruiz

pitanga temporã
brilha no inverno
a cor do verão

Arraste-me - Henri Michaux



Arraste-me numa caravela,
Numa velha e doce caravela,
Na roda de proa, ou se venta, na espuma,
E me faça naufragar, lá longe, longe.

Na atrelagem de uma outra época.
No aveludado engodo da neve.
No fôlego daqueles cães reunidos.
Na tropa extenuada das folhas mortas.

Arraste-me sem me quebrar, aos beijos,
Sobre os tapetes de palmas e seus sorrisos,
Nos corredores dos ossos longos, e das articulações.

Arraste-me, ou antes sepulte-me.

Leo Gandelman - Amargura

Nádia Dantas



pousa em seus olhos
iluminados de sol
todos os sonhos

Os caramujos - Manoel de Barros

Há um comportamento de eternidade nos caramujos.
Para subir os barrancos de um rio, eles percorrem um
dia inteiro até chegar amanhã.
O próprio anoitecer faz parte de haver beleza nos
caramujos.
Eles carregam com paciência o início do mundo.
No geral os caramujos têm uma voz desconformada
por dentro.
Talvez porque tenham a boca trôpega.
Suas verdades podem não ser.
Desde quando a infância nos praticava na beira do rio
Nunca mais deixei de saber que esses pequenos
moluscos
Ajudam as árvores a crescer.
E achei que esta história só caberia no impossível.
Mas não; ela cabe aqui também.

Trem sujo da Leopoldina - Solano Trindade

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
pra dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Piiiii

estação de Caxias
de novo a dizer
de novo a correr
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome
Vigário Geral
Lucas
Cordovil
Brás de Pina
Penha Circular
Estação da Penha
Olaria
Ramos
Bom Sucesso
Carlos Chagas
Triagem, Mauá
trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Tantas caras tristes
querendo chegar
em algum destino
em algum lugar

Trem sujo da Leopoldina
correndo correndo
parece dizer
tem gente com fome
tem gente com fome
tem gente com fome

Só nas estações
quando vai parando
lentamente começa a dizer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer
se tem gente com fome
dá de comer

Mas o freio do ar
todo autoritário
manda o trem calar
Psiuuuuuuuuuu

Mahatma Gandhi

Se eu pudesse deixar algum presente a você,
deixaria aceso o sentimento de amar
a vida dos seres humanos.
A consciência de aprender
tudo o que foi ensinado pelo tempo afora.
Lembraria os erros que foram cometidos
para que não mais se repetissem.
A capacidade de escolher novos rumos.
Deixaria para você, se pudesse,
o respeito àquilo que é indispensável.
Além do pão, o trabalho.
Além do trabalho, a ação.
E, quando tudo mais faltasse, um segredo:
o de buscar no interior de si mesmo
a resposta e a força para encontrar a saída.

Caetano Veloso - Cajuína