Gilberto Gil - Não Chore Mais (No Woman, No Cry)

Fernando Pessoa

Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência,
E não pouca
Maravilha do inconsciente!
Em sonho, sonhos criei.
E o mundo atônito sente
Como é belo o que lhe dei.

Indivisíveis - Mário Quintana

O meu primeiro amor e eu sentávamos numa pedra
Que havia num terreno baldio entre as nossas casas.
Falávamos de coisas bobas,
Isto é, que a gente achava bobas
Como qualquer troca de confidências entre crianças de cinco anos.

Crianças...
Parecia que entre um e outro nem havia ainda separação de sexos
A não ser o azul imenso dos olhos dela,
Olhos que eu não encontrava em ninguém mais,
Nem no cachorro e no gato da casa,
Que tinham apenas a mesma fidelidade sem compromisso
E a mesma animal - ou celestial - inocência,
Porque o azul dos olhos dela tornava mais azul o céu:
Não, não importava as coisas bobas que diséssemos.
Éramos um desejo de estar perto, tão perto
Que não havia ali apenas duas encantadas criaturas
Mas um único amor sentado sobre uma tosca pedra,
Enquanto a gente grande passava, caçoava, ria-se, não sabia
Que eles levariam procurando uma coisa assim por toda a sua vida...

A lua no cinema - Paulo Leminski

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!

Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.

A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
- Amanheça, por favor!

Boneca de pano - Jorge de Lima

Boneca de pano dos olhos de conta,
Vestido de chita,
Cabelo de fita,
Cheinha de lã

De dia, de noite, os olhos abertos
Olhando os bonecos que sabem falar,
Soldados de chumbo que sabem marchar,
Calungas de mala que sabem pular.
Boneca de pano que cai, não se quebra,
Que custa um tostão.

Boneca de pano das meninas infelizes,
Que são guias de aleijados, que apanham
Pontas de cigarros, que mendigam nas esquinas,
Coitadas!

Boneca de pano de rosto parado
Como essas meninas.
Boneca sujinha, cheinha de lã.
Os olhos de conta caíram.
Ceguinha rolou na sarjeta.
O homem do lixo a levou, coberta de lama,
Nuinha assim como quis Nosso Senhor.

Emma Shapplin - Cuor Senza Sangue

O peixe que ri - Fernando Paixão

Nado na água
Quase nada
vejo
no nado.

Só a água do rio
rola
enrola a areia
do fundo.

Quase nada
vejo a água
cada pedra
um olho.

A água
na pele nado em nada
do mundo

e rio.

Havia um menino - Fernando Pessoa

Havia um menino,
que tinha um chapéu
para pôr na cabeça
por causa do sol.

Em vez de um gatinho
tinha um caracol.
Tinha o caracol
dentro de um chapéu;
fazia-lhe cócegas
no alto da cabeça.

Por isso ele andava
depressa, depressa
p´ra ver se chegava
a casa e tirava
o tal caracol
do chapéu, saindo
de lá e caindo
o tal caracol.

Mas era, afinal,
impossível tal,
nem fazia mal
nem vê-lo, nem tê-lo:
porque o caracol
era do cabelo.

Quadrilha - Manuel Bandeira

Roda, ciranda,
Por aí fora,
Chegou a hora
De cirandar!
Na tarde clara
Vinde ligeiras,
Ó companheiras,
Rir e dançar!

Moças que dançam
Nas horas breves
Dos sonhos leves,
Na doce idade
Das ilusões,
Guardam lembrança,
Boa lembrança
Da mocidade
Nos corações.

Roda ,ciranda,
Como essas belas,
Gratas estrelas
Dos nossos céus!
Vamos, em rondas
Precipitadas,
Como levadas
Nas asas dos véus!

Moças que dançam
Nas horas leves
Dos sonhos breves,
Na doce idade
Das ilusões,
Guardam lembrança,
Boa lembrança
Da mocidade
Nos corações.

Banzo - Menotti Del Picchia

E por que deixou na areia do Congo
a aldeia de palmas;
e porque seus ídolos negros
não fazem mais feitiços;
e porque o homem branco o enganou com missangas
e atulhou o porão do navio negreiro
com seu desespero covarde;
e porque não vê mais de ânfora ao ombro
a imagem do conga nas águas do Kuango,
ele fica na porta da senzala
de mão no queixo e cachimbo na boca,
varado de angústia,
olhando o horizonte,
calado, dormente,
pensando,
sofrendo,
chorando.
morrendo.

HAIKAI - Maria Valéria

na flor de romã
minúsculo helicóptero
beija-flor da manhã

Noturno - Mário Quintana


Tudo ficou mais leve no escuro da casa.
As escadas pararam de repente no ar
Mas os anjos sonâmbulos continuam
subindo os degraus truncados.
Atravessando o espelho como se entrassem
numa outra sala
O sonho vai devorando os sapatos
Os pés da cama
O tempo
Vovó resmunga qualquer coisa no fim
do século passado.

Moça e soldado - Carlos Drummond de Andrade

Meus olhos espiam
a rua que passa.

Passam mulheres,
passam soldados.
Moça bonita foi feita para
namorar.
Soldado barbudo foi feito para
brigar.

Meus olhos espiam
as pernas que passam.
Nem todas são grossas…
Meus olhos espiam.
Passam soldados.
... mas todas são pernas.
Meus olhos espiam.
Tambores, clarins
e pernas que passam.
Meus olhos espiam
espiam espiam
soldados que marcham
moças bonitas
soldados barbudos
…para namorar,
para brigar.
Só eu não brigo.
Só eu não namoro.

Diana Krall - Fly Me To The Moon

Canção meio acordada - Mário Quintana

Laranja! Grita o pregoeiro.
Que alto no ar suspensa!
Lua de ouro entre o nevoeiro
Do sono que se esgarçou.

Laranja! grita o pregoeiro.
Laranja que salta e voa.
Laranja que vais rolando
Contra o cristal da manhã!

Mas o cristal da manhã
Fica além dos horizontes...
Tantos montes... tantas pontes...
(De frio soluçam as fontes...)

Porém fiquei, não sei como,
Sob os arcos da manhã.
(Os gatos moles do sono
Rolam laranjas de lã.)