HAIKAI - Alice Ruiz

Silêncio de folhas
Bananeira secando
À beira da estrada

Canção para ninar mulher - Carlos Drummond de Andrade



Olha o bicho preto
Que vem lá de longe
Olha e fica quietinha.

Olha a lua nascendo
Atrás daquela porta.
Tem um gato, um passarinho,
Um anel de brilhante,
Todos três para você.

Dorme que eu te dou
Um vestido, um país,
Te dou... ah isso não dou não.

Dorme que o gatuno
De olho de vidro
E smoking furtado
Subiu na parede
Para te espiar.

Dorme devagar.
(...)
Dorme na Argentina,
Dorme na Alemanha
Ou no Maranhão,
Dorme bem dormido...

Leonard Cohen - Dance Me to the End Of Love

Os poemas - Mário Quintana

 

Poemas nas pontas dos pés,
que nem os sente o papel...
Poemas de assombração
sumindo
pelos desvãos da alma...
Poemas que dançam,
rindo
que nem crianças...
Poemas de pé de pilão,
um baque
no coração.
E aqueles que desmoronam
- lentamente -
sobre um caixão!

Embalo da Canção - Cecília Meireles

Que a voz adormeça
que cante a canção!
Nem o céu floresça
nem floresça o chão.

(Só - minha cabeça,
só - meu coração.
Solidão)

Que não alvoreça
nova ocasião!
Que o tempo se esqueça
de recordação!

(Nem minha cabeça,
nem meu coração.
Solidão!)

Luiz Melodia e Escola de Música da Rocinha - Cruel

Sou Negro - Solano Trindade

Sou negro
meus avós foram queimados
pelo sol da África
minh'alma recebeu o batismo dos tambores
atabaques, gongôs e agogôs
Contaram-me que meus avós
vieram de Loanda
como mercadoria de baixo preço
plantaram cana pro senhor de engenho novo
e fundaram o primeiro Maracatu

Depois meu avô brigou como um danado
nas terras de Zumbi
Era valente como quê
Na capoeira ou na faca
escreveu não leu
o pau comeu
Não foi um pai João
humilde e manso
Mesmo vovó
não foi de brincadeira
Na guerra dos Malês
ela se destacou

Na minh`alma ficou
o samba
o batuque
o bamboleio
e o desejo de libertação...

Saudação a Palmares - Castro Alves

Nos altos cerros erguido
Ninho d'águias atrevido,
Salve! — País do bandido!
Salve! — Pátria do jaguar!
Verde serra onde os palmares
— Como indianos cocares —
No azul dos colúmbios ares
Desfraldam-se em mole arfar! ...

Salve! Região dos valentes
Onde os ecos estridentes
Mandam aos plainos trementes
Os gritos do caçador!
E ao longe os latidos soam...
E as trompas da caça atroam...
E os corvos negros revoam
Sobre o campo abrasador! ...

Palmares! a ti meu grito!
A ti, barca de granito,
Que no soçobro infinito
Abriste a vela ao trovão.
E provocaste a rajada,
Solta a flâmula agitada
Aos uivos da marujada
Nas ondas da escravidão!

De bravos soberbo estádio,
Das liberdades paládio,
Pegaste o punho do gládio,
E olhaste rindo pra o val:
"Descei de cada horizonte...
Senhores! Eis-me de fronte!"
E riste... O riso de um monte!
E a ironia... de um chacal!...

Cantem Eunucos devassos
Dos reis os marmóreos paços;
E beijem os férreos laços,
Que não ousam sacudir ...
Eu canto a beleza tua,
Caçadora seminua!...
Em cuja perna flutua
Ruiva a pele de um tapir.

Crioula! o teu seio escuro
Nunca deste ao beijo impuro!
Luzidio, firme, duro,
Guardaste pra um nobre amor.
Negra Diana selvagem,
Que escutas sob a ramagem
As vozes — que traz a aragem
Do teu rijo caçador! ...

Salve, Amazona guerreira!
Que nas rochas da clareira,
— Aos urros da cachoeira —
Sabes bater e lutar...
Salve! — nos cerros erguido —
Ninho, onde em sono atrevido,
Dorme o condor... e o bandido!...
A liberdade... e o jaguar!

Canção do Mestiço - Francisco José Tenreiro

Mestiço!
Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como que se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no meu peito uma alma grande
uma alma fita de adição
como 1 e 1 são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei...
e muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor!...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...

Quando amo a negra
sou negro

Pois é

Lágrima de preta - António Gedeão

Encontrei uma preta
que estava a chorar,
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

Nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

Cantiga - Álvares de Azevedo

Em um castelo doirado
Dorme encantada donzela;
Nasceu – e vive dormindo
- dorme tudo junto dela.

Adormeceu-a sonhando
Um feiticeiro condão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração.

Dorme a lâmpada argentina
Defronte do leito seu:
Noite a noite a lua triste
Dorme pálida no céu.

Voam os sonhos errantes
Do leito sob o dossel,
E suspiram no alaúde
As notas do menestrel.

E no castelo , sozinha,
Dorme encantada donzela:
Nasceu – e vive dormindo
- dorme tudo junto dela.

Dormem cheirosas abrindo
As roseiras em botão,
E dormem no seio dela
As rosas do coração!

Se me é negado o amor - Rabindranath Tagore



Se me é negado o amor, por que, então, amanhece;
por que sussurra o vento do sul entre as folhas recém nascidas?
Se me é negado o amor, por que, então,
A noite entristece com nostálgico silêncio as estrelas?
E por que este desatinado coração continua,
Esperançado e louco, olhando o mar infinito?

Burca - Raquel Naveira

Há uma mulher por dentro da burca,
Estranha veste que envolve o corpo
Como um capuz,
Um casulo,
Um enorme grão.

A mulher por dentro da burca
Espia o mundo
Por uma janela quadriculada,
Vê sem ser vista,
Boca calada.

A mulher por dentro da burca
Busca a estrada,
A repisada trilha dos camelos
Rumo ao oásis,
Mas seu caminho se bifurca
Entre o amor e a morte.

A mulher por dentro da burca
É vulcão,
Em suas mãos,
Em sua nuca,
Escorre larva quente;
Gota de fogo é o seu coração.

A mulher por dentro da burca
Tem algo de verme,
De serpente,
De pássaro,
É feita de neblina
A sua face triste.

Por dentro da burca
O medo sufoca,
A mulher segue a procissão
Com passos lentos,
Não permaneceria imóvel
Assistindo a procissão passar.

Por dentro da burca
A opressão enforca,
A mulher,
De costas viradas ao sol,
Enxerga sua sombra.

Por dentro da burca
A louca caminha pela praia,
A maré alta apagará suas pegadas.

A burca azulada como o céu
Torna a mulher
Invisível.

Jean Sibelius, Valse Triste (orch.Herbert von Karajan)

Dedicatória - Cassiano Ricardo

Ao claro tempo, ao tempo
das metamorfoses,
não havia horizonte
na alegria do ser
e do acontecer.

Havia a graça aérea
com que as coisas brincavam
de ser e de não ser,
no jardim da matéria.

Hoje uma coisa passa
a ser outra coisa;
nascem anjos sem asa
dentro do dicionário;
um monstro, um dragão
em lugar de um canário.
Não pela alegria
da metamorfose.
Mas por deformação
de cada deformação
de cada ser, ou flor,
em sua geometria.

Clarice Lispector

Cada pedaço de mim
sabe o inferno que é ser
sol em noites de chuva,
ser cor nos cinzas dos edifícios,
ser luz na escuridão das manhãs.

Cada todo de ti sabe a delícia
que é ser flor nas asas do vento,
ser cristal nos olhos das fadas,
ser azul no fundo do mar.

Cada suspiro de nós sabe
a angústia que é ser só um
na multidão dos dias,
ser muito na pobreza da esquina,
ser ninguém na roda da vida.

Enquanto isso os relógios se vão,
e veem aqueles que sabem
o que é apenas ser na
ausência do nada.

Chico Buarque - Guido Rita - Funeral de um lavrador

O lavrador - Cassiano Ricardo

A tua mão é dura como casca de árvore.
Ríspida e grossa como um cacto.

Teu aperto de mão machuca a mão celeste,
de tão agreste — e naturalmente por falta de tacto.
A tua mão sabe o segredo
da lua e da floresta em seu explícito contacto
com as leis ocultas da germinação.

Mão monstruosa, de tão áspera,
incapaz de qualquer carícia, órfã de sutileza,
indiferente ao cetim e ao veludo.

Mão colorida,
em que moram os meses
com veias que mais parecem cipós encordoados;
com o dorso coberto de musgo
e em cuja palma, e em forma de M (que não quer dizer
morte)
se encontram, ainda, os sinais fundos
dos quatro rios que existiram no paraíso terreal.

Mão aumentada pela santidade do trabalho.
Suja de terra e enorme, mas principalmente enorme
como a estar sempre num primeiro plano
na sucessão das coisas — frutos, árvores, lavouras —
que saem dela ao fim de cada ano.

Se Cristo regressar, ó lavrador, não é preciso que lhe
mostres,
como eu, as feridas do corpo e do pensamento.
Nem as condecorações faiscantes que os outros ostentam
no peito.
Mostra-lhe a mão calejada.

Mostra-lhe a mão calejada,
enorme, a escorrer seiva, sol e orvalho.
E os anjos virão vê-la e por vê-la tão grossa e tão dura
farão com que na palma de tua mão nasçam lírios.
E a exibirão no céu, como um objeto desconhecido,
rústico e maltratado.

E Deus colocará uma foice de prata
em tua mão grossa, ríspida, acostumada ao trato da
terra terrível
e te dirá:
Trabalharás agora no meu campo
orvalhado de estrelas.
E dormirás sob a árvore da noite.

Poema para gatos - Artur da Távola

Silêncio,
eis a tarefa
de todos os gatos.
Poucos sabem perscrutar
(talvez ninguém em plenitude)
o grau de solidão necessária
ao saber auto suficiente
para ser felino e doméstico
em sua tarefa de monge
guardião do inextricável
em quem o homem não percebe
a metafísica natural,
recolhimento
saber
sensualidade
e aceitação.

Roteiro - Sidónio Muralha

Parar. Parar não paro.
Esquecer. Esquecer não esqueço.
Se carácter custa caro
pago o preço.

Pago embora seja raro.
Mas homem não tem avesso
e o peso da pedra eu comparo
à força do arremesso.

Um rio, só se fôr claro.
Correr, sim, mas sem tropeço.
Mas se tropeçar não paro
- não paro nem mereço.

E que ninguém me dê amparo
nem me pergunte se padeço.
Não sou nem serei avaro
- se carácter custa caro
pago o preço.