A ponte de Van Gogh - Vinícius de Moraes

O lugar não importa: pode ser o Japão, a Holanda, a campina inglesa.
Mas é absolutamente preciso que seja domingo.
O azul do céu ecoa na esmeralda do rio
E o rio reflete docemente as margens de relva verde-laranja
Dir-se-ia que da mansão da esquerda voou o lençol virginal de miss
Para ser no céu sem mancha a única nuvem.
A calma é velha, de uma velhice sem pátina
As cores são simples, ingênuas
A estação é feliz: o guarda da ponte chegou a pintar
De listas vermelhas o teto de sua casinhola.
E, meu Deus, se não fossem esses diabinhos de pinheiros a fazer caretas
E a pressa com que o homem da charrete vai:
- A pressa de quem atravessou um vago perigo
Tudo estivesse perfeito,
e não me viesse esse medo tolo de a pequena ponte levadiça
Desabe e se molhe o vestido preto de Cristina Georgina Rosseti.
Que vai de umbrela
especialmente para ouvir a prédica do novo pastor da vila.

Oferenda - Roseana Murray

Poesia é o que posso te oferecer
como um pouco de tempo claro
no fundo do tacho
como uma estrela de água

escuta: os pássaros forram a tarde
com seus invisíveis anseios

caminha com cuidado
o chão está armado
em cima de horizontes

tudo pode ruir de repente
essa casa de vento
meu coração

Sombra - Cecília Meireles

Os homens passam pelas ruas misteriosas...

Ouvi ecoarem na noite
A sua loucura e o seu pavor...

Os homens olharam para dentro
E viram mistérios...
Os homens olharam para fora
E viram mistérios...

E foram pelas ruas misteriosas
Debatendo-se como pensamentos
Presos em círculos negros...

Tranquilidade na tarde - Olga Savary



A Liene T. Eiten

Ah, derramar-me líquida sobre o mar
– ser onda indefinidamente –
esperar pela primeira estrela
e dela ser apenas
espelho.

O tempo - Martín Fierro

                         

O Tempo é a Tardança
  daquilo que se Espera.

Tabacaria - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Poema da purificação - Carlos Drummond de Andrade

Depois de tantos combates
o anjo bom matou o anjo mau
e jogou seu corpo no rio.

As águas ficaram tintas
de um sangue que não descorava
e os peixes todos morreram.

Mas uma luz que ninguém soube
dizer de onde tinha vindo
apareceu para clarear o mundo,
e outro anjo pensou a ferida
do anjo batalhador.

Na fazenda - Manoel de Barros

Barulhinho vermelho de cajus
e o riacho passando
nos fundos do quintal...

Dali
se escutavam os ventos com a boca
como um dia ser árvore.

Eu era lutador de jacaré.
As árvores falavam.
Bugre Teotônio bebia marandovás.

Víamos por toda parte cabelos misgalhadinhos de borboletas...

Abriu-se
uma pedra
certa vez:
os musgos
eram frescos...

As plantas
me ensinavam de chão.
Fui aprendendo com o corpo.

Hoje sofro de gorjeios
nos lugares puídos de mim.
Sofro de árvores.

Beethoven - 6th Symphony - Pastoral

Partitura com Lua - Dora Ferreira da Silva



Notação de pássaros
nos fios da rua:
mínimas semínimas pausas.
Sobre o piano rosas estremecem.
Cadências de alma sobressaltam um público
desatento e ao relento ressoam
algumas dissonâncias (tropel de potros
presos numa sala). Mas por acaso em pura sintonia
pássaros refazem a partitura
no heptacorde dos fios da rua.
Ei-la tão plena no dia findo azulado-
a lua soberana e alta
do sono deste outono.

Beija-flor - Eloí Elizabet Bocheco



Beija - flor foi a serra
E assuntou
Foi à flor do manaca,
E se embriagou.

Foi a campina
Beijou
Foi a mata
Se enamorou.

Foi ao deserto
Passou,
Foi a lua entrou.

Foi ao sol
O sol se apagou
Foi ao rio,
O rio se apagou.

Veio me ver
E contou
Entrou no meu sonho,
E ficou.

Sorria - Fernando Py

Sorria.
Você está sendo roubado
todo santo dia.

Não chore.
Haverá sempre alguém
que o explore.

A vida causa transtornos?
Não se importe.
Você desliza suavemente
Para a morte.
 

Poetas - Florbela Espanca


Ai as almas dos poetas
Não as entende ninguém;
São almas de violetas
Que são poetas também.

Andam perdidas na vida,
Como as estrelas no ar;
Sentem o vento gemer
Ouvem as rosas chorar!

Só quem embala no peito
Dores amargas e secretas
É que em noites de luar
Pode entender os poetas.

E eu que arrasto amarguras
Que nunca arrastou ninguém
Tenho alma pra sentir
A dos poetas também!

Raul Seixas - Trem das Sete

HAIKAI - Urhacy Faustino

No extremo vazio
do mais oco, sopro sons:
flauta de bambu.

Versos na tarde - Flora Figueiredo



A lembrança é um barbante.
Uma ponta amarrada no começo da história,
outra, em nosso tornozelo.

Se o fio estica muito, mal dá para continuar.
É a linha da Memória que vai ficando puída,
a da lembrança, não.

Feita de fibra grossa,
não afrouxa até que um anjo venha desatá-la
e a transforme numa corredeira de estrelas.
E quanto mais a corredeira for cumprida,
tanto mais rica há de ter sido a vida.

Aniversário - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos
era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha,
estava certa com uma religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui — ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a umidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje
(e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome,
sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez
com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares,
com melhores desenhos na loiça,
com mais copos,
O aparador com muitas coisas — doces, frutas
o resto na sombra debaixo do alçado
As tias velhas, os primos diferentes,
e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

Pelo horizonte de areias - Cecília Meireles

Pelo horizonte de areias,
reclina-se a voz do canto.
A moça diz muito longe:
"Eu sou a rosa do campo..."

O beduíno para e escuta,
vestido de pensamento,
sozinho entre as margens de ouro
do ar e do deserto imenso.

"Eu sou a rosa do campo..."
E olhando para as ovelhas
sente o chão verde e macio
e flores pelas areias.

"Eu sou a rosa do campo..."
Mas tudo o que ouve e está vendo,
é poeira, apenas, que voa:
o vento da voz ao vento.

A luz oblíqua - Sophia de Mello B. Andresen

A luz oblíqua da tarde
Morre e arde
Nas vidraças

Nas coisas nascem fundas taças
Para a receber,
E ali eu vou beber.

A um canto cismo
Suspensa entre as horas e um abismo

A vibração das coisas cresce.
Cada instante
No seu secreto murmurar é semelhante
A um jardim que verdeja e que floresce.

As Cores De Abril - Vinícius de Moraes

As cores de abril
Os ares de anil
O mundo se abriu em flor
E pássaros mil
Nas flores de abril
Voando e fazendo amor

O canto gentil
De quem bem te viu
Num pranto desolador
Não chora, me ouviu
Que as cores de abril
Não querem saber de dor

Olha quanta beleza
Tudo é pura visão
E a natureza transforma a vida em canção

Sou eu, o poeta, quem diz
Vai e canta, meu irmão
Ser feliz é viver morto de paixão