Ruínas - Florbela Espanca



Se é sempre Outono o rir das Primaveras,
Castelos, um a um, deixa-os cair…
Que a vida é um constante derruir
De palácios do Reino das Quimeras!

E deixa sobre as ruínas crescer heras,
Deixa-as beijar as pedras e florir!
Que a vida é um contínuo destruir
De palácios do Reino das Quimeras!

Deixa tombar meus rútilos castelos!
Tenho ainda mais sonhos para erguê-los
Mais alto do que as águias pelo ar!

Sonhos que tombam! Derrocada louca!
São como os beijos duma linda boca!
Sonhos!… Deixa-os tombar… Deixa-os tombar.

Gesto Humano - Luís Vaz de Camões



Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.

A doce canção - Cecília Meireles

Pus-me a cantar minha pena
com uma palavra tão doce,
de maneira tão serena,
que até Deus pensou que fosse
felicidade - e não pena.

Anjos de lira dourada
debruçaram-se da altura.
Não houve,no chão, criatura
de que eu não fosse invejada,
pela minha voz tão pura.

Acordei a quem dormia,
fiz suspirarem defuntos.
Um arco íris de alegria
da minha boca se erguia
pondo o sonho e a vida juntos.

O mistério do meu canto,
Deus não soube,tu não viste.
Prodígio imenso do pranto:
-todos perdidos de encanto,
só eu morrendo de triste!

Por assim tão docemente
meu mal transformar em verso,
oxalá Deus não o aumente,
para trazer o universo
de pólo a pólo contente.

Mercedes Sosa - Canción con todos

Tempo do homem - Atahualpa Yupanqui

A partícula cósmica que navega em meu sangue
é um mundo infinito de forças siderais.
Veio a mim através de um longo caminho de milênios
quando, talvez, fui areia para os pés de vento.

Logo, fui madeira, raiz desesperada
fundida no silêncio de um deserto sem água.
Logo, fui caracol quem sabe aonde.
E os mares me deram a primeira palavra.

Depois, a forma humana despejou sobre o mundo
a universal bandeira do músculo e da lágrima.
E brotou a blasfêmia sobre a velha terra
e o açafrão, e o trigo. A árvore e as pradarias.

Então vim à América para nascer um homem
e a mim se juntou o pampa, a selva e a montanha.
Sim, um velho da planície galopou até minha origem
outro me disse histórias em sua flauta de cana.

Eu não estudo as coisas nem pretendo entendê-las
as desconheço, é certo, pois antes vivi nelas
converso com as rochas em meio aos montes
e me dão sua mensagem as raízes secretas.

E assim vou pelo mundo, sem idade nem destino
ao lado de um cosmo que caminha comigo.
Amo a luz e o rio e o caminho, e a estrela.
E floresço em guitarras porque fui a madeira.

HAIKAI - Estrela Ruiz Leminski



engano amigo
tenho a impressão
que a lua vem comigo

Nas cavernas do mar - Yorgos Seferis

Nas cavernas do mar
há uma sede, há um amor
há um êxtase
inabalável como as conchas
que você segura na palma da mão.

Nas cavernas do mar
durante dias contemplei teus olhos,
e não nos conhecemos.


Tradução: Priscila Manhães

HAIKAI - Urhacy Faustino

Os trigais maduros
marcaram de cor dourada
minha pobre infância.

tormenta - Vera Lúcia de Oliveira

 o mar arremessava-se
contra o céu
a espuma rangia
e uns bicos de aves doídas
batiam na alma
batiam na alma

Hilda Hilst

Passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.

Tem nome de ninguém.
Não faz ruído. Não fala.
Mas passa com a sua fina faca.

Fecha feridas, é ungüento.
Mas pode abrir a tua mágoa
Com a sua fina faca.

Estanca ventura e voz
Silêncio e desventura.
Imóvel
Garrote
Algoz
No corpo da tua água passará
Tem passado
Passa com a sua fina faca.

Tom Jobim - Insensatez

HAIKAI - Humberto del Maestro



é quase noitinha
o céu entorna no poente
um copo de vinho

Campo, chinês e sono - Carlos Drummond de Andrade

A João Cabral de Melo Neto

O chinês deitado
no campo. O campo é azul,
roxo também. O campo,
o mundo e todas as coisas
têm ar de um chinês
deitado e que dorme.
Como saber se está sonhando?
O sono é perfeito. Formigas
crescem, estrelas latejam,
Peixes são fluidos.
E árvores dizem qualquer coisa
que não entendes. Há um chinês
dormindo no campo. Há um campo
cheio de sono e antigas confidências.

Debruça-te no ouvido, ouve o murmúrio
do sono em marcha. Ouve a terra, as nuvens.
O campo está dormindo e forma um chinês
de suave rosto inclinado
no vão do tempo.

Deve chamar-se tristeza - Fernando Pessoa


Deve chamar-se tristeza
Isto que não sei que seja
Que me inquieta sem surpresa
Saudade que não deseja.

Sim, tristeza - mas aquela
Que nasce de conhecer
Que ao longe está uma estrela
E ao perto está não a Ter.

Seja o que for, é o que tenho.
Tudo mais é tudo só.
E eu deixo ir o pó que apanho
De entre as mãos ricas de pó.


A vã pergunta - Vinícius de Moraes

Esta jovem pensativa, de olhos cor de mel
e de longas pestanas penumbrosas
Que está sentada junto àquele jovem triste
de largos ombros e rosto magro
É ela a amada dele e é ele o amado dela
e é a vida a sombra trágica dos seus gestos?

Este trem veloz cheio de homens indiferentes
e mulheres cansadas e crianças dormindo
Que atravessa esta paisagem desolada
de árvores esparsas em montes descarnados
É ele o movimento e é ela a fuga
e são eles o destino fugitivo das coisas?

Que dizem os lábios murmurantes dele
aos olhos desesperados dela?
Que pronunciam os lábios desesperados dela
aos olhos lacrimejantes dele?
Que pedem os olhos lacrimejantes dele
à paisagem fugindo?
Não são eles apenas uma só mocidade para o tempo
e um só tempo para a eternidade?
Não são seus sonhos um só impulso para o amor
e os seus suspiros um só anseio para a pureza?

Por que este transtorno de faces
e esta consumição de olhares como para nunca mais?
Não é um casto beijo isso que boia aos lábios dele
como um excedimento da sua alma?
Não é uma carícia isso que freme nas mãos dela
como um arroubo da sua inocência ?
Por que os sinos plangendo do fundo das consolações
como as vozes de aviso dos faróis perdidos?
É bem o amor essa insatisfação das esperanças?

Ruço - Manuel Bandeira

Muda e sem trégua
Galopa a névoa, galopa a névoa.

Minha janela desmantelada
Dá para o vale do desalento.
Sombrio vale! Não vejo nada
Senão a névoa que toca o vento.

Lá vão os dias de minha infância
- Imagens rotas que se desmancham:

O vento do largo na praia,
o meu vestidinho de saia,

Aquele corvo, o vôo torvo,
O meu destino, aquele corvo!

O que eu cuidava do mundo mau!
Os ladrões com cara de pau!

As histórias que se faziam sonhar;
E os livros: Simplício olha para o ar,

João Felpudo, Viagem à roda do mundo
Numa casquinha de noz.

A nossa infância, ó minha irmã, tão longe de nós!

Stan Getz - Autumn Leaves

Pela flor amarela viajaremos - Cecília Meireles



Pela flor amarela viajaremos:
afastaremos as nuvens espessas
e as florestas de espinhos.

Pela flor amarela, vamos e voltamos,
por escadas escuras, corredores estreitos,
falando a desconhecidos.

Onde está, dizei-nos, a flor amarela?
Era minha? era vossa? era do seu próprio instante,
era sua, cativa por algum caçador floral?

Pela flor amarela atravessaremos a pedra,
o vidro, o metal, as palavras.
Atravessaremos o coração, como quem se mata.

Atravessaremos um novo mar desconhecido,
correremos Áfricas e Ásias, pólo e trópico,
e jogaremos nossa vida entre as estrelas.

A flor amarela está guardada em si mesma,
seu perfume, sob mil pétalas tranqüilas,
seu pólen resguardado contra o vão descobrimento.

A avenida das lágrimas - Olavo Bilac

A um Poeta morto

Quando a primeira vez a harmonia secreta
De uma lira acordou, gemendo, a terra inteira,
- Dentro do coração do primeiro poeta
Desabrochou a flor da lágrima primeira.

E o poeta sentiu os olhos rasos de água;
Subiu-lhe à boca, ansioso, o primeiro queixume:
Tinha nascido a flor da Paixão e da Mágoa,
Que possui, como a rosa, espinhos e perfume.

E na terra, por onde o sonhador passava,
Ia a roxa corola espalhando as sementes:
De modo que, a brilhar, pelo solo ficava
Uma vegetação de lágrimas ardentes.

Foi assim que se fez a Via Dolorosa,
A avenida ensombrada e triste da Saudade,
Onde se arrasta, à noite, a procissão chorosa
Dos órgãos do carinho e da felicidade.

Recalcando no peito os gritos e os soluços,
Tu conheceste bem essa longa avenida,
- Tu que, chorando em vão, te esfalfaste, de bruços,
Para, infeliz, galgar o Calvário da Vida.

Teu pé também deixou um sinal neste solo;
Também por este solo arrastaste o teu manto...
E, ó Musa, a harpa infeliz que sustinhas ao colo,
Passou para outras mãos, molhou-se de outro pranto.

Mas tua alma ficou, livre da desventura,
Docemente sonhando, às delícias da lua:
Entre as flores, agora, uma outra flor fulgura,
Guardando na corola uma lembrança tua...

O aroma dessa flor, que o teu martírio encerra,
Se imortalizará, pelas almas disperso:
- Porque purificou a torpeza da terra
Quem deixou sobre a terra uma lágrima e um verso.

Jardim - Roseana Murray

Infinito é o jardim
das delicadezas,
semeado desde
o primeiro dia do mundo.

Há que alimentá-lo,
hora por hora,
com palavras e gestos
e pedaços de alma.

Há que ser incansável
jardineiro:
para este jardim
cada sorriso é um sol.