Nem tudo é dias de sol - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)


... Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
-Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E quando haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...


Coisas do Coração - Afonso Estebanez


Se as pedras não sabem do instinto da flor
que sabem as sombras do instinto de mim
se pedras não guardam memória de amor
nem guardam princípios ou meios do fim?

Quem tem a certeza de algum porventura
se a brisa nem diz quando vem ao jardim,
se cá dentro d’alma há essa doce ternura
de guizos ou mantras ou sons de flautim?

Se eu mesmo não sei o que foi a ventura
dos tempos perdidos do amor em motim,
que entendem os dias de minha aventura
se a aurora só chega em finais de festim?

Se a água das nuvens não sabe da altura
e cai como o arco-íris do céu de carmim,
que sabe o teu pranto da minha candura
que cai das alturas bem dentro de mim?


Pensamentos que reúnem um tema - Adalgisa Nery

Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranquilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.

Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.

Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.

Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença.

Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.

Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.


Estão todas as verdades à espera em todas as coisas - Walt Whitman

 Estão todas as verdades
 à espera em todas as coisas:
 não apressam o próprio nascimento
 nem a ele se opõem,
 não carecem do fórceps do obstetra,
 e para mim a menos significante
 é grande como todas.
 (Que pode haver de maior ou menor
 que um toque?)

 Sermões e lógicas jamais convencem
 o peso da noite cala bem mais
 fundo em minha alma.

 (Só o que se prova
 a qualquer homem ou mulher,
 é que é;
 só o que ninguém pode negar,
 é que é.)

 Um minuto e uma gota de mim
 tranquilizam o meu cérebro:
 eu acredito que torrões de barro
 podem vir a ser lâmpadas e amantes,
 que um manual de manuais é a carne
 de um homem ou mulher,
 e que num ápice ou numa flor
 está o sentimento de um pelo outro,
 e hão-de ramificar-se ao infinito
 a começar daí
 até que essa lição venha a ser de todos,
 e um e todos nos possam deleitar
 e nós a eles.



Amar - Marília Pêra (Carlos Drummond de Andrade)

Legado - Carlos Drummond de Andrade


Que lembrança darei ao país que me deu
tudo que lembro e sei, tudo quanto senti?
Na noite do sem-fim, breve o tempo esqueceu
minha incerta medalha, e a meu nome se ri.

E mereço esperar mais do que os outros, eu?
Tu não me enganas, mundo, e não te engano a ti.
Esses monstros atuais, não os cativa Orfeu,
a vagar, taciturno, entre o talvez e o se.

Não deixarei de mim nenhum canto radioso,
uma voz matinal palpitando na bruma
e que arranque de alguém seu mais secreto espinho.

De tudo quanto foi meu passo caprichoso
na vida, restará, pois o resto se esfuma,
uma pedra que havia em meio do caminho.



Leda Nagle entrevista Carlos Drummond de Andrade

Boa Noite! - Cecília Meireles


Ó noite, ó noite, ó noite!

Luar e primavera
E os telhados cobrindo
Sonhos que a vida gera!

Subo por essas horas
Solidária e sincera,
E encontro, exausta e pura,
Minha alma que me espera.



Caetano Veloso - Un caballero de fina estampa

Canção de Amor da Jovem Louca - Sylvia Plath

 Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro
 Ergo as pálpebras e tudo volta a renascer
 (Acho que te criei no interior da minha mente)

 Saem valsando as estrelas, vermelhas e azuis,
 Entra a galope a arbitrária escuridão:
 Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

 Enfeitiçaste-me, em sonhos, para a cama,
 Cantaste-me para a loucura; beijaste-me para a insanidade.
 (Acho que te criei no interior de minha mente)

 Tomba Deus das alturas; abranda-se o fogo do inferno:
 Retiram-se os serafins e os homens de Satã:
 Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro.

 Imaginei que voltarias como prometeste
 Envelheço, porém, e esqueço-me do teu nome.
 (Acho que te criei no interior de minha mente)

 Deveria, em teu lugar, ter amado um falcão
 Pelo menos, com a primavera, retornam com estrondo
 Cerro os olhos e cai morto o mundo inteiro:
 (Acho que te criei no interior de minha mente.)




É preciso - Ivo Barroso


É preciso ser duro
como a pedra que parte
como a parte da pedra
que penetra a parede
e a parte

Como a rede que não vaza
como o vaso que não quebra
como a pedra que fende
o paredão da casa

E é preciso ser fraco
é preciso ter siso
e simulacro. É preciso
todos os dias vencer
os deuses pigmeus/golias

É preciso ter cara
e ter coragem

É cada vez mais raro
quem assim reage

É preciso ser duro
como o murro
como o muro
e é preciso ser doce
como se anteparo
de vidro
o muro fosse

É cada vez mais raro
ser duro e doce
cada vez mais torpe
ser apenas duro
cada vez mais nulo
ser apenas doce
cada vez mais duro
ser o muro e a nuvem
como se um só fossem.


O sol e a menina - Elias José


Hoje muito cedo,
o sol saiu.
A menina não acordou
e o sol sumiu.

Depois, mais tarde,
o sol voltou.
A menina deu sorriso
e o sol ficou.

Depois do meio-dia,
o sol esquentou.
A menina olhou pro céu
e o sol se encantou.

Hoje, muito tarde,
o sol se escondeu.
Ficou vendo a menina
e de partir se esqueceu.


Raio de Sol - Fiama Hassa P. Brandão,

Raio de Sol na ombreira da porta,
na trave da cadeira, vindo da gelosia,
peço-te para amanhã voltares
mais arqueado pela esfericidade da Terra,
um raio não decididamente recto
cravado no meu tórax côncavo,
mas no meu coração curvo como um globo.


Sonhar - Helena Kolody

Sonhar é transportar-nos em asas de ouro e aço
Aos páramos azuis da luz e da harmonia;
É ambicionar o céu; é dominar o espaço,
Num vôo poderoso e audaz da fantasia.

Fugir ao mundo vil, tão vil que, sem cansaço,
Engana, e menospreza, e zomba, e calunia;
Encastelar-se, enfim, no deslumbrante paço,
De um sonho puro e bom, de paz e de alegria.

É ver no lago um mar, nas nuvens um castelo,
Na luz de um pirilampo um sol pequeno e belo;
É alçar, constantemente, o olhar ao céu profundo.

Sonhar é ter ideal na inglória lida:
Tão grande que não cabe inteiro nesta vida,
Tão puro que não vive em plagas deste mundo.


Fui Sabendo de Mim - Mia Couto


Fui sabendo de mim
por aquilo que perdia

pedaços que saíram de mim
com o mistério de serem poucos
e valerem só quando os perdia

fui ficando
por umbrais
aquém do passo
que nunca ousei

eu vi
a árvore morta
e soube que mentia


A eternidade - Arthur Rimbaud


De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Como o sol que cai.

Alma sentinela,
Ensina-me o jogo
Da noite que gela
E do dia em fogo.

Das lides humanas,
Das palmas e vaias,
Já te desenganas
E no ar te espraias.

De outra nenhuma,
Brasas de cetim,
O Dever se esfuma
Sem dizer: enfim.

Lá não há esperança
E não há futuro.
Ciência e paciência,
Suplício seguro.

De novo me invade.
Quem? – A Eternidade.
É o mar que se vai
Com o sol que cai.


O Rio - Vinícius de Moraes

 

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu.