O muro - Manoel de Barros

O menino contou que o muro da casa dele era
da altura de duas andorinhas.
(Havia um pomar do outro lado do muro.)
Mas o que intrigava mais a nossa atenção
principal
Era a altura do muro
Que seria de duas andorinhas.
Depois o garoto explicou:
Se o muro tivesse dois metros de altura
qualquer ladrão pulava
Mas a altura de duas andorinhas nenhum ladrão
pulava.
Isso era.


Nascimento do Poema - Dora Ferreira da Silva

É preciso que venha de longe
do vento mais antigo
ou da morte
é preciso que venha impreciso
inesperado como a rosa
ou como o riso
o poema inecessário.

É preciso que ferido de amor
entre pombos
ou nas mansas colinas
que o ódio afaga
ele venha
sob o látego da insônia
morto e preservado.

E então desperta
para o rito da forma
lúcida
tranquila:
senhor do duplo reino
coroado
de sóis e luas.



Resumo - Adélia Prado

Gerou os filhos, os netos,
deu à casa o ar de sua graça
e vai morrer de câncer.
O modo como pousa a cabeça para um retrato
é o da que, afinal, aceitou ser dispensável.
Espera, sem uivos, a campa, a tampa, a inscrição:
1906-1970
SAUDADE DOS SEUS, LEONORA


Antes que - Marina Colasanti


Preciso ler um bom poema antes
de dormir
antes que a noite encerre o
diário inventário das lembranças
antes que o sono cale boca e olhar, antes
que o prumo caia
horizontal.
Preciso ler um bom poema antes
que seja tarde
que fique escuro
que chegue o frio.
Ler um bom poema
antes que a morte venha
e escreva o seu.



Interrogação - Emílio Moura


Sozinho, sozinho, perdido na bruma.
Há vozes aflitas que sobem, que sobem.
Mas, sob a rajada ainda há barcos com velas
e há faróis que ninguém sabe de que terras são.

- Senhor, são os remos ou são as ondas
o que dirige o meu barco?
Eu tenho as mãos cansadas
e o barco voa dentro da noite.


Além alma (Uma grande depois) - Paulo Leminski


    Meu coração lá de longe
faz sinal que quer voltar.
   Já no peito trago em bronze:

NÃO TEM VAGA NEM LUGAR.

   Pra que me serve um negócio
que não cessa de bater?
   Mais me parece um relógio
que acaba de enlouquecer.
   Pra que é que eu quero quem chora,
se estou tão bem assim,
   e o vazio que vai lá fora
cai macio dentro de mim?


Prazo de vida - Cecília Meireles


No meio do mundo faz frio,
faz frio no meio do mundo,
muito frio.

Mandei armar o meu navio.
Volveremos ao mar profundo,
meu navio!

No meio das águas faz frio.
Faz frio no meio das águas,
muito frio.

Marinheiro serei sombrio,
por minha provisão de mágoas.
Tão sombrio!

No meio da vida faz frio,
faz frio no meio da vida.
Muito frio.

O universo ficou vazio,
porque a mão do amor foi partida
no vazio.


Amiga minha, hoje no céu a Lua... Vinícius de Moraes

Amiga minha, hoje no céu a Lua
Tem uma face que me lembra a tua
A Lua é sempre assim, ou é teu rosto
Que dorme no céu posto, amiga minha?

Ah, desce do teu nicho, rosto puro
E vem iluminar meu leito escuro.

Astro solitário, ó Sol
Ilumina meu poema da tua claridade matinal
Transfunde-lhe nas veias o éter com o azul
E torna-o simples.


Quietude (Peter Kater & R.Carlos Nakai)

O homem; as viagens - Carlos Drummond de Andrade


O homem, bicho da Terra tão pequeno
chateia-se na Terra
lugar de muita miséria e pouca diversão,
faz um foguete, uma cápsula, um módulo
toca para a Lua
desce cauteloso na Lua
pisa na Lua
planta bandeirola na Lua
experimenta a Lua
coloniza a Lua
civiliza a Lua
humaniza a Lua.


Lua humanizada: tão igual à Terra.
O homem chateia-se na Lua.
Vamos para Marte — ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o homem desce em Marte
pisa em Marte
experimenta
coloniza
civiliza
humaniza Marte com engenho e arte.


Marte humanizado, que lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro — diz o engenho
sofisticado e dócil.
Vamos a Vênus.
O homem põe o pé em Vênus,
vê o visto — é isto?
idem
idem
idem.


O homem funde a cuca se não for a Júpiter
proclamar justiça junto com injustiça
repetir a fossa
repetir o inquieto
repetitório.


Outros planetas restam para outras colônias.
O espaço todo vira Terra-a-terra.
O homem chega ao Sol ou dá uma volta
só para tever?
Não-vê que ele inventa
roupa insiderável de viver no Sol.
Põe o pé e:
mas que chato é o Sol, falso touro
espanhol domado.


Restam outros sistemas fora
do solar a col-
onizar.
Ao acabarem todos
só resta ao homem
(estará equipado?)
a dificílima dangerosíssima viagem
de si a si mesmo:
pôr o pé no chão
do seu coração
experimentar
colonizar
civilizar
humanizar
o homem
descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
a perene, insuspeitada alegria
de con-viver.



Cansa sentir quando se pensa - Fernando Pessoa


Cansa sentir quando se pensa.
No ar da noite a madrugar
Há uma solidão imensa
Que tem por corpo o frio do ar.

Neste momento insone e triste
Em que não sei quem hei de ser,
Pesa-me o informe real que existe
Na noite antes de amanhecer.

Tudo isto me parece tudo.
E é uma noite a ter um fim
Um negro astral silêncio surdo
E não poder viver assim.

(Tudo isto me parece tudo.
Mas noite, frio, negror sem fim,
Mundo mudo, silêncio mudo -
Ah, nada é isto, nada é assim!)


Ilusão - Sérgio Vaz


Em meu peito corre um rio
Rio que corre em direção ao mar
Mar que deságua em meus sonhos
Sonhos que miram o brilho da luz
Luz que clareia o escuro caminho
Caminho que adverte o destino
Destino que levo comigo
Comigo levo as flores que você plantou
Flores que colhi na primavera
Primavera que trago nas mãos
Mãos que afagam a terra
Terra que sustenta meu corpo
Corpo que dança no espaço
Espaço que limito no coração
Coração que brinca no infinito
Infinito que são seus braços
Braços que são correntes de carne
Carne que acorrenta o espírito
Espírito que é fuga da prisão
Prisão que são as margens do rio
Rio que corre em meu peito
Peito que se liberta da realidade
Que comprime a ilusão.


Fresta - Fernando Pessoa


Em meus momentos escuros
Em que em mim não há ninguém,
E tudo é névoas e muros
Quanto a vida dá ou tem,
Se, um instante, erguendo a fronte
De onde em mim sou aterrado,
Vejo o longínquo horizonte
Cheio de sol posto ou nado
Revivo, existo, conheço,
E, ainda que seja ilusão
O exterior em que me esqueço,
Nada mais quero nem peço.
Entrego-lhe o coração.


Boitempo - Carlos Drummond de Andrade


Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
No gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas,
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.


Destino - Miguel Torga


Acordo como os pássaros cativos,
Com a ária da vida nos ouvidos.
Acordo sem amarras nos sentidos.
Fiéis à sempiterna liberdade...
Nada pode vencer a lealdade
Que juraram à deusa aventureira.
Nem as grades do sono, nem a severidade
Da noite carcereira.

Acordo e recomeço
O canto interrompido:
O desvairado canto
Da ira inquieta...
-O canto que o poeta
Se obrigou a cantar
Antes de ter nascido,
Antes de a sua angústia começar.


A Rua - Mário Quintana


A rua é um rio de passos e de vozes,
um rio terrível que me vai levando,
mas estou só, como se está na infância...
ou quando a morte vai se aproximando...

No ar, agora, que distante aroma?
Decerto eu sem saber pensei em ti...
E um voo de andorinha na distância
É a minha saudade que eu te mando.

Mas tudo, nesse tumultuoso rio,
não fica ao fundo da lembrança
como no seio azul de uma redoma...

Tudo se afasta nessa correnteza
onde uma flor, às vezes, fica presa
e um claro riso sobre as águas dança!


Chorinho - Cecília Meireles


Chorinho de clarineta,
de clarineta de prata,
na úmida noite de lua.

Desce o rio de água preta.
E a perdida serenata
na água trêmula flutua.

Palavra desnecessária:
um leve sopo revela
tudo que é medo e ternura.

Pela noite solitária,
uma criatura apela
para outra criatura.

Não há nada que submeta
o que Deus nos arrebata
segundo a vontade sua...

Ai, choro de clarineta!
Ai, clarineta de prata!
Ai, noite úmida de lua...



Tarde oculta no tempo - Jorge de Lima


O andarilho sem destino reparou então
que seus sapatos tinham a poeira indiferente
de todas as pátrias pitorescas;
e que seus olhos conservavam as noites e os dias
dos climas mais vários do universo;
e que suas mãos se agitaram em adeuses
a milhares de cais sem saudades e amigos;
e que todo o seu corpo tinha conhecido
as mil mulheres que Salomão deixou.
E o andarilho sem destino viu
que não conhecia a Tarde que está oculta no tempo
sem paisagens terrenas, sem turismos, sem povos,
mas com a vastidão infinita onde os horizontes
são as nuvens que fogem.