Raphael Rabello - "Retrato em branco e preto" (Chico Buarque e Tom Jobim)

Enredo para um tema - Adélia Prado



Ele me amava, mas não tinha dote,
só os cabelos pretíssimos e um beleza
de príncipe de estórias encantadas.
Não tem importância, falou a meu pai,
se é só por isto, espere.
Foi-se com uma bandeira
e ajuntou ouro pra me comprar três vezes.
Na volta me achou casada com D. Cristóvão.
Estimo que sejam felizes, disse.
O melhor do amor é sua memória, disse meu pai.
Demoraste tanto, que...disse D. Cristóvão.
Só eu não disse nada,
nem antes, nem depois.


Canção quase melancólica - Cecília Meireles

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.

Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?

Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.



Solidão - Mia Couto


Aproximo-me da noite
 o silêncio abre os seus panos escuros
 e as coisas escorrem
 por óleo frio e espesso

 Esta deveria ser a hora
 em que me recolheria
 como um poente
 no bater do teu peito
 mas a solidão
 entra pelos meus vidros
 e nas suas enlutadas mãos
 solto o meu delírio

 É então que surges
 com teus passos de menina
 os teus sonhos arrumados
 como duas tranças nas tuas costas
 guiando-me por corredores infinitos
 e regressando aos espelhos
 onde a vida te encarou

 Mas os ruídos da noite
 trazem a sua esponja silenciosa
 e sem luz e sem tinta
 o meu sonho resigna

 Longe
 os homens afundam-se
 com o caju que fermenta
 e a onda da madrugada
 demora-se de encontro
 às rochas do tempo 


Última Página - Olavo Bilac


Primavera. Um sorriso aberto em tudo. Os ramos
Numa palpitação de flores e de ninhos.
Doirava o sol de outubro a areia dos caminhos
(Lembras-te, Rosa?) e ao sol de outubro nos amamos.

Verão. (Lembras-te Dulce?) À beira-mar, sozinhos,
Tentou-nos o pecado: olhaste-me... e pecamos;
E o outono desfolhava os roseirais vizinhos,
Ó Laura, a vez primeira em que nos abraçamos...

Veio o inverno. Porém, sentada em meus joelhos,
Nua, presos aos meus os teus lábios vermelhos,
(Lembras-te, Branca?) ardia a tua carne em flor...

Carne, que queres mais? Coração, que mais queres?
Passas as estações e passam as mulheres...
E eu tenho amado tanto! e não conheço o Amor!


Mar - Vinícius de Moraes


Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.


Não vás tão docilmente - Dylan Thomas


Não vás tão docilmente nessa noite linda;
Que a velhice arda e brade ao término do dia;
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Embora o sábio entenda que a treva é bem-vinda
Quando a palavra já perdeu toda a magia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O justo, à última onda, ao entrever, ainda,
Seus débeis dons dançando ao verde da baía,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

O louco que, a sorrir, sofreia o sol e brinda,
Sem saber que o feriu com a sua ousadia,
Não vai tão docilmente nessa noite linda.

O grave, quase cego, ao vislumbrar o fim da
Aurora astral que o seu olhar incendiaria,
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.

Assim, meu pai, do alto que nos deslinda
Me abençoa ou maldiz. Rogo-te todavia:
Não vás tão docilmente nessa noite linda.
Clama, clama contra o apagar da luz que finda.


tradução: Augusto de Campos


Eterno - Carlos Drummond de Andrade


E como ficou chato ser moderno.
Agora serei eterno.

Eterno! Eterno!
O Padre Eterno,
a vida eterna,
o fogo eterno.

(Le silence éternel de ces espaces infinis m'effraie.)

— O que é eterno, Yayá Lindinha?
— Ingrato! é o amor que te tenho.

Eternalidade eternite eternaltivamente
eternuávamos
eternissíssimo
A cada instante se criam novas categorias do eterno.

Eterna é a flor que se fana
se soube florir
é o menino recém-nascido
antes que lhe dêem nome
e lhe comuniquem o sentimento do efêmero
é o gesto de enlaçar e beijar
na visita do amor às almas
eterno é tudo aquilo que vive uma fração de segundo
mas com tamanha intensidade que se petrifica e nenhuma
[força o resgata
é minha mãe em mim que a estou pensando
de tanto que a perdi de não pensá-la
é o que se pensa em nós se estamos loucos
é tudo que passou, porque passou
é tudo que não passa, pois não houve
eternas as palavras, eternos os pensamentos; e
[passageiras as obras.
Eterno, mas até quando? é esse marulho em nós de um
[mar profundo.
Naufragamos sem praia; e na solidão dos botos
[afundamos.
É tentação a vertigem; e também a pirueta dos ébrios.
Eternos! Eternos, miseravelmente.
O relógio no pulso é nosso confidente.

Mas eu não quero ser senão eterno.
Que os séculos apodreçam e não reste mais do que uma
[essência
ou nem isso.
E que eu desapareça mas fique este chão varrido onde
[pousou uma sombra
e que não fique o chão nem fique a sombra
mas que a precisão urgente de ser eterno bóie como uma
[esponja no caos
e entre oceanos de nada
gere um ritmo.


Ofício - Maria Esther Maciel

Escrever
a água
da palavra mar
o voo
da palavra ave
o rio
da palavra margem
o olho
da palavra imagem
o oco
da palavra nada.


Bliss - Quiet Letters

Visitas - Octavio Paz

Através da noite urbana de pedra e seca
o campo entra no meu quarto.
Estende braços verdes com pulseiras de pássaros,
com fivelas de folhas.
Leva um rio à mão.
O céu do campo também entra,
com o seu cesto de jóias acabadas de cortar.
E o mar senta-se ao meu lado,
estende a sua cauda branquíssima no solo.
No silêncio brota uma árvore de música.
Na árvore pendem todas as palavras formosas
que brilham, amadurecem e caem.
Na minha testa, uma caverna onde mora um relâmpago...
Porém, tudo se povoou com asas.
Diz-me: é deveras o campo que vem de tão longe,
ou és tu, são os sonhos que sonhas ao meu lado?


Poema dos Dons - Jorge Luís Borges

Graças quero dar ao divino
labirinto de efeitos e causas
pela diversidade das criaturas
que formam este singular universo,
pela razão, que não deixará de sonhar
com um plano para o labirinto,
pela face de Helena e a perseverança de Ulisses,
pelo amor, que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade,
pelo firme diamante e água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Ângelo Silésio,
por Schopenhauer,
que talvez decifrou o universo,
pelo fulgor do fogo,
que nenhum ser humano pode olhar sem assombro antigo,
pelo mogno, o cedro, o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa
que prodigaliza cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que na planície fustigam os animais e a alva,
pela manhã em Montevidéu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que no crepúsculo disseram
de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islã que abarcou
mil e uma noites,
por aquele outro sonho do inferno,
da torre do fogo que purifica
e das esferas gloriosas,
por Swedenborg,
que conversava com os anjos nas ruas de Londres.
pelos rios secretos e imemoriais
que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxônios,
pelo mar, que é um deserto resplandecente
e uma cifra de coisas que não sabemos
e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha, pelo ouro que reluz nos versos,
pelo inverno épico,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelos prismas de cristal e o peso de bronze,
pelas raias do tigre,
pelas altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a Epístola Moral
e cujo nome, como ele houvera preferido, ignoramos,
por Sêneca e Lucano de Córdoba,
que antes do espanhol escreveram
toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal do eucalipto,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo hábito,
que nos repete e nos confirma como um espelho,
pela manhã, que nos proporciona a ilusão de um começo,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins
ou numa velha espada,
por Whitmann e Francisco de Assis, 
que já escreveram o poema,
pelo fato de que o poema é inesgotável
e se confunde com a soma das criaturas
e jamais chegará ao último verso
e varia segundo os homens,
por Francisco Haslam, que pediu perdão aos filhos
por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sono,.
pelo sono e pela morte,
esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.


A menina e a fruta - Adélia Prado


Um dia apanhando goiabas com a menina,
ela baixou o galho e disse pro ar
- inconsciente de que me ensinava -
"goiaba é uma fruta abençoada".
Seu movimento e rosto iluminados
agitaram no ar poeira e Espírito:
O Reino é dentro de nós,
Deus nos habita.
Não há como escapar à fome da alegria!




Infância - João Cabral de Melo Neto


sobre o lado ímpar da memória
o anjo da guarda esqueceu
perguntas que não se respondem

Seriam hélices aviões locomotivas
timidamente precocidade
balões cativos
si bemol?

Mas meus dez anos indiferentes
rodaram mais uma vez nos mesmos
intermináveis carrosséis.



A mão - Carlos Drummond de Andrade


Entre o cafezal e o sonho
o garoto pinta uma estrela dourada
na parede da capela,
e nada mais resiste à mão pintora.
A mão cresce e pinta
o que não é para ser pintado mas sofrido.
A mão está sempre compondo
módul-murmurando
o que escapou à fadiga da Criação
e revê ensaios de formas
e corrige o oblíquo pelo aéreo
e semeia margaridinhas de bem-querer no baú dos vencidos
A mão cresce mais e faz
do mundo-como-se-repete o mundo que  telequeremos.
A mão sabe a cor da cor
e com ela veste o nu e o invisível.
Tudo tem explicação porque tudo tem (nova) cor.
Tudo existe porque foi pintado à feição de laranja mágica
não para aplacar a sede dos companheiros,
principalmente para aguçá-la
até o limite do sentimento da terra domícilio do homem.

Entre o sonho e o cafezal
entre guerra e paz
entre mártires, ofendidos,
músicos, jangadas, pandorgas,
entre os roceiros mecanizados de Israel,
a memória de Giotto e o aroma primeiro do Brasil
entre o amor e o ofício
eis que a mão decide:
Todos os meninos, ainda os mais desgraçados,
sejam vertiginosamente felizes
como feliz é o retrato
múltiplo verde-róseo em duas gerações
da criança que balança como flor no cosmo
e torna humilde, serviçal e doméstica a mão excedente
em seu poder de encantação.

Agora há uma verdade sem angústia
mesmo no estar-angustiado.
O que era dor é flor, conhecimento
plástico do mundo.
E por assim haver disposto o essencial,
deixando o resto aos doutores de Bizâncio,
bruscamente se cala
e voa para nunca-mais
a mão infinita
a mão-de-olhos-azuis de Candido Portinari.





A noite será devagar - Charles Bukowski,



bem, aqui estou eu
de novo
ouvindo as boas e velhas
músicas
de novo,
sentindo tristeza,
a boa
tristeza
à moda antiga
em que as lágrimas
não chegam
a sair.
bom.
ouço mais um pouco.

a mente pode
consumir quantidades
mágicas de
memória
enquanto a noite se
desdobra
noite adentro,
enquanto outro charuto
é acesso,
como se pode ficar
terrivelmente amuado
quando velhas
músicas seguem-se
uma às
outras,
rostos são
lembradas,
rostos jovens,
como fatias novas de uma
maçã,
estão mortos
agora,
quase todos
eles
mortos
agora.

a aparente
beleza e
a aparente bravura,
se foram.

sentado aqui
permitindo que meus
melhores sentidos
sejam diluídos pela
melancolia,
um homem
velho,
lembrando
de novo,
olhando de cima
a baixo o bar imaginário
cheio de assentos
vazios,
pensando naquela
criança com os loucos
olhos
vermelhos
que sentava lá
enchendo o copo e
enchendo e enchendo e
enchendo
de novo
ao ponto da
imbecilidade,
agora lembrando,
ouvindo
de novo,
permitindo a idiotice
entrar
de novo,
somos todos
idiotas para sempre
idiotizados
para sempre.
alegremente.
agora.




Casa na Chuva - Eugénio de Andrade


A chuva, outra vez sobre as oliveiras.
Não sei por que voltou esta tarde
Se minha mãe já se foi embora,
Já não vem à varanda para a ver cair,
Já não levanta os olhos da costura
Para perguntar: Ouves?
Oiço, mãe, é outra vez a chuva,
A chuva sobre o teu rosto.



Desejo - Murilo Mendes


 Obscura vida
O que te peço
É que reveles teus desígnios
Obscura vida
Que sejas transparente
E concisa
Como por exemplo a morte
- Clara esperança.