Orquestra Sanfônica - Seleção de São João

Profundamente - Manuel Bandeira


Quando ontem adormeci
Na noite de São João
Havia alegria e rumor
Estrondos de bombas luzes de Bengala
Vozes, cantigas e risos
Ao pé das fogueiras acesas.

No meio da noite despertei
Não ouvi mais vozes nem risos
Apenas balões
Passavam, errantes

Silenciosamente
Apenas de vez em quando
O ruído de um bonde
Cortava o silêncio
Como um túnel.
Onde estavam os que há pouco
Dançavam
Cantavam
E riam
Ao pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindo
Estavam todos deitados
Dormindo
Profundamente.

   *
Quando eu tinha seis anos
Não pude ver o fim da festa de São João
Porque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo
Minha avó
Meu avô
Totônio Rodrigues
Tomásia
Rosa
Onde estão todos eles?

— Estão todos dormindo
Estão todos deitados
Dormindo
Profundamente.


A curva dos teus olhos - Paul Éluard


A curva dos teus olhos dá a volta ao meu peito
É uma dança de roda e de doçura.
Berço nocturno e auréola do tempo,
Se já não sei tudo o que vivi
É que os teus olhos não me viram sempre.

Folhas do dia e musgos do orvalho,
Hastes de brisas, sorrisos de perfume,
Asas de luz cobrindo o mundo inteiro,
Barcos de céu e barcos do mar,
Caçadores dos sons e nascentes das cores.

Perfume esparso de um manancial de auroras
Abandonado sobre a palha dos astros,
Como o dia depende da inocência
O mundo inteiro depende dos teus olhos
E todo o meu sangue corre no teu olhar.


Uma fotografia aérea - Ferreira Gullar


I
Eu devo ter ouvido aquela tarde
um avião passar sobre a cidade
aberta como a palma da mão
entre palmeiras
e mangues
vazando no mar o sangue de seus rios
as horas
do dia tropical
aquela tarde vazando seus esgotos seus mortos
seus jardins
eu devo ter ouvido
aquela tarde
em meu quarto?
na sala? no terraço
ao lado do quintal?
o avião passar sobre a cidade
geograficamente
desdobrada
em si mesma
e escondida
debaixo dos telhados lá embaixo sob
as folhas
lá embaixo no escuro
sonoro do capim dentro
do verde quente
do capim
junto à noite da terra entre
formigas (minha
vida!) nos cabelos
do ventre e morno
do corpo por dentro na usina
da vida
em cada corpo em cada
habitante
dentro
de cada coisa
clamando em cada casa
a cidade
sob o calor da tarde
quando o avião passou

II
eu devo ter ouvido no meu quarto
um barulho cortar outros barulhos
no alarido da época
rolando
por cima do telhado
eu
devo ter ouvido
(sem ouvir)
o ronco do motor enquanto lia
e ouvia
a conversa da família na varanda
dentro daquela tarde
que era clara
e para sempre perdida
que era clara
e para sempre
em meu corpo
a clamar
(entre zunidos
de serras entre gritos
na rua
entre latidos
de cães
no balcão da quitanda
no açúcar já-noite das laranjas
no sol fechado
e podre
àquela hora
dos legumes que ficaram sem vender
no sistema de cheiros e negócios
do nosso Mercado Velho
– o ronco do avião)


III
eu devo ter ouvido
seu barulho atolou-se no tijuco
da Camboa na febre
do Alagado resvalou
nas platibandas sujas
nas paredes de louça
penetrou nos quartos entre redes
fedendo a gente
entre retratos
nos espelhos
onde a tarde dançava iluminada
Seu barulho
era também a tarde (um avião) que passava
ali
como eu
passava à margem do Bacanga
em São Luís do Maranhão
no norte
do Brasil
sob as nuvens

IV
eu devo ter ouvido
ou mesmo visto
o avião como um pássaro
branco
romper o céu
veloz voando sobre as cores da ilha
num relance passar
no ângulo da janela
como um fato qualquer
eu devo ter ouvido esse avião
que às três e dez de uma tarde
há trinta anos
fotografou nossa cidade


V
meu rosto agora
sobrevoa
sem barulho
essa fotografia aérea
Aqui está
num papel
a cidade que houve
(e não me ouve)
com suas águas e seus mangues
aqui está
(no papel)
uma tarde que houve
com suas ruas e casas
uma tarde
com seus espelhos
e vozes (voadas
na poeira)
uma tarde que houve numa cidade
aqui está
no papel que (se quisermos) podemos rasgar


Madrugada - Octavio Paz


Os lábios e as mãos do vento
o coração da água
um eucalipto
o acampamento das nuvens
a vida que nasce cada dia
a morte que nasce cada vida

Esfrego as pálpebras:
o céu anda na terra.

Como a noite é longa! - Fernando Pessoa

Como a noite é longa!
Toda a noite é assim...
Senta-te, ama, perto
Do leito onde esperto.
Vem p’r’ao pé de mim...

Amei tanta coisa...
Hoje nada existe.
Aqui ao pé da cama
Canta-me, minha ama,
Uma canção triste.

Era uma princesa
Que amou... Já não sei...
Como estou esquecido!
Canta-me ao ouvido
E adormecerei...

Que é feito de tudo?
Que fiz eu de mim?
Deixa-me dormir,

Dormir a sorrir
E seja isto o fim.

Taryn Szpilman - Azul da Cor do Mar

A você, com amor - Vinícius de Moraes


O amor é o murmúrio da terra
quando as estrelas se apagam
e os ventos da aurora vagam
no nascimento do dia...
O ridente abandono,
a rútila alegria
dos lábios, da fonte
e da onda que arremete
do mar...

O amor é a memória
que o tempo não mata,
a canção bem-amada
feliz e absurda...

E a música inaudível...


O silêncio que treme
e parece ocupar
o coração que freme
quando a melodia
do canto de um pássaro
parece ficar...

O amor é Deus em plenitude
a infinita medida
das dádivas que vêm
com o sol e com a chuva
seja na montanha
seja na planura
a chuva que corre
e o tesouro armazenado
no fim do arco-íris.

Nos salões do sonho - Mário Quintana


Mas vocês não repararam, não?!
Nos salões do sonho nunca há espelhos...
Por quê?
Será porque somos tão nós mesmos
Que dispensamos o vão testemunho dos reflexos?
Ou, então
- e aqui começa um arrepio -
Seremos acaso tão outros?
Tão outros mesmos que não suportaríamos a visão daquilo,
Daquela coisa que nos estivesse olhando fixamente do outro lado,
Se espelhos houvesse!
Ninguém pode saber... Só o diria
Mas nada diz,
Por motivos que só ele conhece,
O misterioso Cenarista dos Sonhos!


A física do susto - Cassiano Ricardo


O espelho caiu a parede.
Caiu com ele o meu rosto.
Com o meu rosto a minha sede.
Com a minha sede eu desgosto.
O meu desgosto de olhar,
no espelho caído, o meu rosto.

Canto de mim mesmo - Walt Whitman

Esta manhã, antes do alvorecer,
subi numa colina para admirar o céu povoado,
E disse à minha alma: 
Quando abraçarmos esses mundos
e o conhecimento e o prazer que encerram,
estaremos finalmente fartos e satisfeitos?
E minha alma disse:
Não, uma vez alcançados esses mundos
prosseguiremos no caminho.


Prospecção - Miguel Torga

Não são pepitas de oiro que procuro.
Oiro dentro de mim, terra singela!
Busco apenas aquela
Universal riqueza
Do homem que revolve a solidão:
O tesoiro sagrado
De nenhuma certeza,
Soterrado
Por mil certezas de aluvião.
Cavo,
Lavo,
Peneiro,
Mas só quero a fortuna
De me encontrar.
Poeta antes dos versos
E sede antes da fonte.
Puro como um deserto.
Inteiramente nu e descoberto.


Antielegia Etérea - Carlos Nejar


Na medida em que caem
os frutos, caem os homens,
caem as folhas, o sol cai
para o alto com as estrelas.
E eu, como um tronco
envelhecendo, vou ficando
oco por dentro e começo
a ser ocupado pelos passarinhos.
Começo a ser passarinho
no tronco. Até que o musgo
no céu me torne eterno.


Olhando o mar, sonho sem ter de quê - Fernando Pessoa

Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, 'star em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há pouco ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?



Objeto Sujeito - Paulo Leminski


você nunca vai saber
quanto custa uma saudade
o peso agudo no peito
de carregar uma cidade
pelo lado de dentro
como fazer de um verso
um objeto sujeito
como passar do presente
para o pretérito perfeito
nunca saber direito

você nunca vai saber
o que vem depois de sábado
quem sabe um século
muito mais lindo e mais sábio
quem sabe apenas
mais um domingo

você nunca vai saber
e isso é sabedoria
nada que valha a pena
a passagem pra Pasárgada
Xanadu ou Shangrilá
quem sabe a chave
de um poema
e olha lá



Eu escrevi um poema triste - Mário Quintana

Eu escrevi um poema triste
E belo, apenas da sua tristeza.
Não vem de ti essa tristeza
Mas das mudanças do Tempo,
Que ora nos traz esperanças
Ora nos dá incerteza...
Nem importa, ao velho Tempo,
Que sejas fiel ou infiel...

Eu fico, junto à correnteza,
Olhando as horas tão breves...
E das cartas que me escreves
Faço barcos de papel!


Canção Amiga - Milton Nascimento

Poema esquisito - Adélia Prado


Dói-me a cabeça aos trinta e nove anos.
Não é hábito. É rarissimamente que ela dói.
Ninguém tem culpa. Meu pai, minha mãe descansaram seus fardos,
não existe mais o modo
de eles terem seus olhos sobre mim.
Mãe, ô mãe, ô pai, meu pai. Onde estão escondidos?
É dentro de mim que eles estão.
Não fiz mausoléu pra eles, pus os dois no chão.
Nasceu lá, porque quis, um pé de saudade roxa,
que abunda nos cemitérios.
Quem plantou foi o vento, a água da chuva.
Quem vai matar é o sol.
Passou finados não fui lá, aniversário também não.
Pra quê, se pra chorar qualquer lugar me cabe?
É de tanto lembrá-los que eu não vou.
Ôôôô pai
Ôôôô mãe
Dentro de mim eles respondem
tenazes e duros
porque o zelo do espírito é sem meiguices:
Ôôôôi fia.


O som do relógio - Fernando Pessoa


O som do relógio
Tem a alma por fora,
Só ele é a noite
E a noite se ignora.

Não sei que distância
Vai de som a som
Soando, no tique,
Do taque do som.

Mas oiço de noite
A sua presença
Sem ter onde acoite
Meu ser sem ser.

Parece dizer
Sempre a mesma coisa
Como o que se senta
E se não repousa.


Guilherme de Almeida

de pó
Deus o fez.
Mas ele, em vez
de se conformar,
quis ser sol, e ser mar,
e ser céu... Ser tudo, enfim.
Mas nada pôde! E foi assim
que se pôs a chorar de furor...
Mas ah! foi sobre sua própria dor
que as lágrimas tristes rolaram. E o pó,
molhado, ficou sendo lodo - e lodo só!