Nocturno - Fernanda de Castro

Devagar, devagar... A noite dorme
e é preciso acordar sem sobressalto.
Sob um manto de sombra, denso, informe,
o mar adormeceu a sonhar alto.
Devagar, devagar... O rio dorme
sobre um leito de areias e basalto...
Malhada pela neve a serra enorme
parece um tigre a preparar o salto.
E dorme o vale em flor. Dormem as casas.
Nenhum rumor. Nenhum frémito de asas.
Nada perturba a noite bela e calma.
E dormem os rosais, dormem os cravos...
Dormem abelhas sobre o mel dos favos
e dorme, na minha alma, a tua alma.

VÍDEO - Madredeus - Haja o Que Houver

Ausência - Vinícius de Moraes

Eu deixarei que morra
em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres
eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser
tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho
nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite
e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram
os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu,
das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente,
a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.

O Olhar - Manoel de Barros

Ele era um andarilho.
Ele tinha um olhar cheio de sol
de águas
de árvores
de aves.
Ao passar pela Aldeia
Ele sempre me pareceu a liberdade em trapos.
O silêncio honrava a sua vida.

As Vozes Eternas - William Butler Yeats


Oh, doces e perenes Vozes, permaneçam;
Vão até aos guardiões das hostes celestiais
E os ordene que vagueem obedecendo à Tua vontade,
Chamas sob chamas, até o Tempo deixar de existir;
Não tem você ouvido que nossos corações estão cansados,
Que você tem chamado por eles nos pássaros,
no vento sobre as colinas,
Em balançantes galhos nas árvores,
nas marés pela beira-mar?
Oh, doces e perenes Vozes, permaneçam.

O choro da menina - Cecília Meireles

Onde está meu quintal
amarelo e encarnado,
com meninos brincando
de chicote-queimado,
com cigarras nos troncos
e formigas no chão,
e muitas conchas brancas
dentro da minha mão?

E Júlia e Maria
e Amélia onde estão?
Onde está meu anel
e o banquinho quadrado,
e o sabiá na mangueira
e o gato no telhado?
- e a moringa de barro,
e o cheiro do alvo pão?
e tua voz, Pedrina,
sobre o meu coração?
Em que altos balanços
se balançarão?...

Ar livre - Cecília Meireles

A menina translúcida passa.
Vê-se a luz do sol dentro dos seus dedos.
Brilha em sua narina o coral do dia.

Leva o arco-íris em cada fio do cabelo.
Em sua pele, madrepérolas hesitantes
pintam leves alvoradas de neblina.

Evaporam-se-lhe os vestidos, na paisagem.
É apenas o vento que vai levando seu corpo pelas alamedas.
A cada passo, uma flor, a cada movimento, um pássaro.

E quando pára na ponte, as águas todas vão correndo,
em verdes lágrimas para dentro dos seus olhos.

Da Mais Alta Janela da Minha Casa - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)

Da mais alta janela da minha casa
Com um lenço branco digo adeus
Aos meus versos que partem para a Humanidade.

E não estou alegre nem triste.
Esse é o destino dos versos.
Escrevi-os e devo mostrá-los a todos
Porque não posso fazer o contrário
Como a flor não pode esconder a cor,
Nem o rio esconder que corre,
Nem a árvore esconder que dá fruto.

Ei-los que vão já longe
como que na diligência
E eu sem querer sinto pena
Como uma dor no corpo.
Quem sabe quem os terá?
Quem sabe a que mãos irão?

Flor, colheu-me o meu destino para os olhos.
Árvore, arrancaram-me os frutos para as bocas.
Rio, o destino da minha água era não ficar em mim.
Submeto-me e sinto-me quase alegre,
Quase alegre como quem se cansa de estar triste.

Ide, ide de mim!
Passa a árvore e fica dispersa pela Natureza.
Murcha a flor e o seu pó dura sempre.
Corre o rio e entra no mar e a sua água
é sempre a que foi sua.

Passo e fico, como o Universo.

VÍDEO - Nadia's Theme - Perry Botkin, Jr. & Barry De Vorzon

A alma humana - Bernardo Soares (Fernando Pessoa)

A alma humana é um manicômio de caricaturas.
Se uma alma pudesse revelar-se com verdade
E nem houvesse um pudor mais profundo
que todas as vergonhas conhecidas, definidas
Seria, como dizem, da verdade o poço.
Mas um poço sinistro, cheio de ecos vagos,
habitado por vidas ignóbeis,
viscosidades sem vida, lesmas sem ser.
Ranho da subjetividade.
Eis a alma.

FINAL - Alexei Bueno

Fujo, idiota e feliz,
Para o sol, o sol, o sol,
Que ri como um grande atol
De dentes de ouro e de giz!

Fujo, correndo, a alma fora,
Sorrindo, o eleito do dia,
Até chegar aonde mora
A eterna e interna alegria!

Em busca de algo, o futuro,
Que ri porque vai viver
E já boceja a se erguer
Enquanto me olha do escuro

Chegando lá, e escarrando
No que houve antes, e assim
Gargalhando, e vos rasgando,
Vida e versos. Logo: Fim!

O SEU OLHAR ... Arnaldo Antunes

O seu olhar lá fora
o seu olhar no céu
o seu olhar demora
o seu olhar no meu.

O seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu.

Onde a brasa mora
e devora o breu
onde a chuva molha
o que se escondeu.

O seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu.

O seu olhar agora
o seu olhar nasceu
o seu olhar me olha
o seu olhar é seu.

O seu olhar seu olhar melhora
melhora o meu.

MEU SONHO - Cecília Meireles

Parei as águas do meu sonho
para teu rosto se mirar.
Mas só a sombra dos meus olhos
ficou por cima, a procurar...
Os pássaros da madrugada
não têm coragem de cantar,
vendo o meu sonho interminável
e a esperança do meu olhar.
Procurei-te em vão pela terra,
perto do céu, por sobre o mar.
Se não chegas nem pelo sonho,
por que insisto em te imaginar?
Quando vierem fechar meus olhos,
talvez não se deixem fechar.
Talvez pensem que o tempo volta,
e que vens, se o tempo voltar.