Depois da chuva - Miguel Torga

Abre a janela, e olha!
Tudo o que vires é teu.
A seiva que lutou em cada folha,
E a fé que teve medo e se perdeu.
Abre a janela, e colhe!
É o que quiser a tua mão atenta:
Água barrenta,
Água que molhe,
Água que mate a sede...
Abre a janela, quanto mais não seja
Para que haja um sorriso na parede!



O que te faz feliz? - Arnaldo Antunes

A lua, a praia, o mar, a rua, a saia, amar...
Um doce, uma dança, um beijo...
Ou é a goiabada com queijo?

Afinal, o que te faz feliz?

Chocolate, paixão, acordar cedo, dormir tarde.
Arroz com feijão, matar a saudade!
O aumento, a casa, o carro que você sempre quis...
Ou são os sonhos que te fazem feliz?
Um filme, um dia, uma semana.
Um bem, um biquíni, a grama!
Dormir na rede, matar a sede, ler...
Ou viver um romance?

O que faz você feliz?

Um lápis, uma letra, uma conversa boa.
Um cafuné, café com leite, rir à toa...
Um pássaro, ser dono do seu próprio nariz!
Ou será um choro que te faz feliz?
A causa, a pausa, o sorvete.
Sentir o vento, esquecer o tempo!
O sal, o sol, um som, o ar...
A pessoa ou o lugar?

Agora me diz,
O que te faz feliz?

O Duplo - Affonso Romano de Sant’Anna,

Debaixo de minha mesa
tem sempre um cão faminto
-que me alimenta a tristeza.
Debaixo de minha cama
tem sempre um fantasma vivo
-que perturba quem me ama.

Debaixo de minha pele
alguém me olha esquisito
-pensando que eu sou ele.

Debaixo de minha escrita
há sangue em lugar de tinta
-e alguém calado que grita.

Chico Buarque - Piruetas

Colar de Carolina - Cecília Meireles

Com seu colar de coral,
Carolina
corre por entre as colunas
da colina.
O colar de Carolina
colore o colo de cal,
torna corada a menina.
E o sol, vendo aquela cor
do colar de Carolina,
põe coroas de coral
nas colunas da colina.

O cavalinho branco – Cecília Meireles

À tarde, o cavalinho branco
está muito cansado:

mas há um pedacinho do campo
onde sempre é feriado..

O cavalo sacode a crina
loura e comprida

e nas verdes ervas atira
sua branca vida.

Seu relincho estremece as raízes
e ele ensina aos ventos

a alegria de sentir livres
seus movimentos.

Trabalhou todo o dia, tanto!
Desde a madrugada!

Descansa entre as flores, cavalinho branco,
de crina dourada.

Sonhos da menina - Cecília Meireles


A flor com que a menina sonha
está no sonho?
ou na fronha?

Sonho risonho:
O vento sozinho
no seu carrinho.

De que tamanho
seria o rebanho?

A vizinha
apanha a sombrinha
de teia de aranha...
Na lua há um ninho
de passarinho.

A lua com que a menina sonha
é o linho do sonho
ou a lua de fronha?


Em busca do amor - Florbela Espanca


O meu destino disse-me a chorar:
"Pela estrada da vida vai andando,
E, aos que vires, interrogando
Acerca do amor, que hás de encontrar."

Fui pela estrada a rir e a cantar,
As contas do meu sonho desfiando...
E noite e dia, à chuva e ao luar,
Fui sempre caminhando e perguntando...

Mesmo a um velho eu perguntei: "Velhinho,
Viste o Amor acaso em teu caminho?"
E o velho estremeceu... olhou... e riu...

Agora pela estrada, já cansados,
Voltam todos pra trás desanimados...
E eu paro a murmurar: "Ninguém o viu!..."

Viver não tem cura - Paulo Leminski

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo, tudo, tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura.

O vaga-lume - Carlos Rodrigues Brandão

A vela do lume dessa ave mínima
ilumina a noite
tre-me-lu-zen-te.
E o desejo vago
de ser vaga-lume
e a luz reluzente
de seu barco errante
sem ilha e sem rumo
acende um luzeiro
assim ... de repente
de luz e de espanto
na alma da gente.

Enquanto morrem as rosas... Manuel Bandeira

Morre a tarde. Erra no ar a divina fragrância.
Fora, a mortiça luz dos crepúsculos arde.
Nas árvores, no oceano e no azul da distância
Morre a tarde...
Morrem as rosas. Minhas pálpebras se molham
No pranto das desesperanças dolorosas.
Sobre a mesa, pétala a pétala, se esfolham,
Morrem as rosas...
Morre o teu sonho?... Neste instante o pensamento
Acabrunha o meu ser como um pesar medonho.
Ah, por que temo assim? Dize: neste momento
Morre o teu sonho?

Versos escritos n'água - Manuel Bandeira

Os poucos versos que aí vão,
Em lugar de outros é que os ponho.
Tu que me lês, deixo ao teu sonho
Imaginar como serão.

Neles porás tua tristeza
Ou bem teu júbilo, e, talvez,
Lhes acharás, tu que me lês,
Alguma sombra de beleza...

Quem os ouviu não os amou.
Meus pobres versos comovidos!
Por isso fiquem esquecidos
Onde o mau vento os atirou.

Soneto dos vinte anos - Lêdo Ivo


Que o tempo passe, vendo-me ficar
no lugar em que estou, sentindo a vida
nascer em mim, sempre desconhecida
de mim, que a procurei sem a encontrar.

Passem rios, estrelas, que o passar
é ficar sempre, mesmo se é esquecida
a dor de ao vento vê-los na descida
para a morte sem fim que os quer tragar.

Que eu mesmo, sendo humano, também passe
mas que não morra nunca este momento
em que eu me fiz de amor e de ventura.

Fez-me a vida talvez para que amasse
e eu a fiz, entre o sonho e o pensamento,
trazendo a aurora para a noite escura.


Tudo, todos e o todo - Carlos Rodrigues Brandão

Somos feitos de barro e do fogo
e por isso somos o desejo e o amor.
Fomos feitos de terra e de água
e assim somos eternos como a vida
e somos passageiros como a flor.
Somos a luz a sombra, o claro, a escuridão
a memória de deus, a história e a poesia.
Somos o espaço e o tempo, a casa e a janela
e a noite e o dia, e o sol e o céu e o chão.
Somos o silêncio e o som da vida.
O estudo, a lembrança e o esquecimento.
Somos o medo e o abandono.
A espera somos nós e somos a esperança.
Pois não somos mais e nem menos do que o todo
e nem somos menos e nem mais que tudo.
Somos o perene e o momento, a pedra e o vento
a energia e a paz, a vida criada e o criador.
Somos o mundo que sente, e irmãos da vida
somos a aventura de ser vida e sentimento.
E assim em cada ave que voa há nossa alma,
e em cada ave que morre, a nossa dor.

Navegar - Walt Whitman

Ó, partir para o mar, navegar num navio!
Deixar este chão, terra firme, tediosa,
Deixar a enfadonha mesmice das ruas,
Das calçadas e casas,
Deixar-te, ó sólida terra, ó terra imóvel,
E embarcar num navio.
Navegar, navegar, navegar!

Ó, ser-me a vida agora um poema de júbilos novos!
E dançar, bater palmas, saltar, exultar,
E pular, e rolar, flutuar!
Ser marujo do mundo inteiro,
A caminho de todos os portos,
Ser o próprio navio -
(vede as velas que eu iço
Ao sol e ao ar) -
Ser um ágil navio, enfunado, ligeiro,
Cheio de ricas palavras, de júbilos cheio!

E toda a noite a chuva veio - Fernando Pessoa


E toda a noite a chuva veio
E toda a noite não parou,
E toda a noite o meu anseio
No som da chuva triste e cheio
Sem repousar se demorou.
E toda a noite ouvi o vento
Por sobre a chuva irreal soprar
E toda a noite o pensamento
Não me deixou um só momento
Como uma maldição do ar.

E toda a noite não dormida
Ouvi bater meu coração
Na garganta da minha vida.

Balada para un loco - Astor Piazzolla e Amelita Baltar

Passeio - Cecília Meireles

Quem me leva adormecida
por dentro do campo fresco,
quando as estrelas e os grilos
palpitam ao mesmo tempo?
O céu dorme na montanha,
o mar flutua em si mesmo,
o tempo que vai passando
filtra a sombra nas areias.
Quem me leva adormecida
sobre o perfume das plantas,
quando, no fundos rios
a água é nova a cada instante?
Não há palavras nem rostos:
eu mesma não me estou vendo.
Alguém me tirou do corpo,
fez-me nome, unicamente,
nome, para que as perguntas
me chamem, com vozes tristes,
e eu não me esqueça de tudo
se houver um dia seguinte.
O céu roda para oeste:
as pontes vão para as águas.
O vento é um silêncio inquieto
com perspectivas de barcos.
Quem me leva adormecida
pelas dunas, pelas nuvens,
com este som inesquecível
do pensamento no escuro?

Delicadeza - Roseana Murray

A alma é invisível
um anjo é invisível
o vento é invisível
o pensamente é invisível
e no entanto
com delicadeza
se pode enxergar a alma
se pode adivinhar o anjo
se pode sentir o vento
se pode mudar o mundo com alguns
pensamentos...

É preciso não esquecer nada - Cecília Meireles

É preciso não esquecer nada:
nem a torneira aberta nem o fogo aceso,
nem o sorriso para os infelizes
nem a oração de cada instante.
É preciso não esquecer de ver a nova borboleta
nem o céu de sempre.
O que é preciso é esquecer o nosso rosto,
o nosso nome, o som da nossa voz, o ritmo do nosso pulso.
O que é preciso esquecer é o dia carregado de atos,
a idéia de recompensa e de glória.
O que é preciso é ser como se já não fôssemos,
vigiados pelos próprios olhos
severos conosco, pois o resto não nos pertence.