A tentação - Murilo Mendes

Diante do crucifixo
Eu paro pálido tremendo
“ Já que és o verdadeiro filho de Deus
Desprega a humanidade desta cruz".

Identificação - Helena Kolody

Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
Jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
E percorri o espaço no sopro do vento;
Marulhei na corrente inquietadora dos rios,
Penetrei a nudez milenária das montanhas;
Desci ao vácuo silencioso dos abismos;
Circulei a seiva das plantas,
Ardi no olhar das feras,
Palpitei nas asas das pombas;
Fui sublime n'alma do homem bom
E desprezível no coração do mesquinho;
Inebriei-me da alegria do venturoso;
E deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.



Nada encontrei mais doloroso,
Mais eloquente,
Mais grandioso
Do que a tragédia cotidiana
Escrita em cada vida humana.

Elegia 4 - Cecília Meireles

Escuto a chuva batendo nas folhas, pingo a pingo.
Mas há um caminho de sol entre as nuvens escuras.
E as cigarras sobre as resinas continuam cantando.

Tu percorrerias o céu com teus olhos nevoentos,
e calcularias o sol de amanhã,
e a sorte oculta de cada planta.

E amanhã descerias toda coberta de branco,
brilharias à luz como o sal e a cânfora,
tomarias na mão os frutos do limoeiro, tão verdes,
e entre o veludo da vinha, verias armar-se o cristal dos bagos.

E olharias o sol subindo ao céu com asas de fogo.
Tuas mãos e a terra secariam bruscamente.
Em teu rosto, como no chão,
haveria flores vermelhas abertas.

Dentro do teu coração, porém,
estavam as fontes frescas, sussurrando.
E os canteiros viam-te passar
como a nuvem mais branca do dia.

Bachiana Brasileira Nº 2 de Villa - Lobos

A Dança e a Alma - Carlos Drummond de Andrade

A dança? Não é movimento,
súbito gesto musical.
É concentração, num momento,
da humana graça natural.
No solo não, no éter pairamos,
nele amaríamos ficar.
A dança – não vento nos ramos:
seiva, força, perene estar.
Um estar entre céu e chão,
novo domínio conquistado,
onde busque nossa paixão
libertar-se por todo lado...
Onde a alma possa descrever
suas mais divinas parábolas
sem fugir à forma do ser,
por sobre o mistério das fábulas.

As mãos - Manuel Alegre

Com mãos se faz a paz se faz a guerra.
Com mãos tudo se faz e se desfaz.
Com mãos se faz o poema – e são de terra.
Com mãos se faz a guerra – e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedras estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

La corda .. Romance On Violin

Canção da Pipa - Manuel Bandeira


Voa, pequena pipa, voa,
Eleva-te com vontade aos ares
Empina, pequena coisa azul, empina,
Sobre a nossa catacumba de casas!

Se nós te seguramos pela linha
Tu te manténs nos ares
Escravo dos sete ventos
A levantar-te os obrigarás.

E nós ficamos a teus pés!
Voa, voa, pequeno ancestral
De nossos grandes aeroplanos
Olha ao teu redor para saudá-los!

ÍMPAR OU ÍMPAR - Paulo Leminski

Pouco rimo tanto com faz.
Rimo logo ando com quando,
mirando menos com mais.
Rimo, rimas, miras, rimos,
como se todos rimássemos,
como se todos nós ríssemos,
se amar (rimar) fosse fácil.

Vida, coisa pra ser dita,
como é fita este fado que me mata.
Mal o digo, já meu siso se conflita
com a cisma que, infinita, me dilata.

Na noite que me desconhece - Fernando Pessoa


Na noite que me desconhece
O luar vago, transparece
Da lua ainda por haver.
Sonho. Não sei o que me esquece,
Nem sei o que prefiro ser.
Hora intermédia entre o que passa,
Que névoa incógnita esvoaça
Entre o que sinto e o que sou?
A brisa alheiamento abraça.
Durmo. Não sei quem é que estou.

Dói-me tudo por não ser nada.
Da grande noite. embainhada
Ninguém tira a conclusão.
Coração, queres?
Tudo enfada. Antes só sintas, coração.

Soneto da separação - Vinícius de Moraes

De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se espuma
E das mãos espalmadas fez-se espanto

De repente da calma fez-se o vento
Que dos olhos desfez a última chama
E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama

De repente não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante
E de sozinho o que se fez contente

Fez-se do amigo próximo o distante
Fez-se da vida uma aventura errante
De repente não mais que de repente.

Alento - Caio Fernando Abreu

Quando mais nada houver,
eu me erguerei cantando,
saudando a vida
com meu corpo de cavalo jovem.

E numa louca corrida
entregarei meu ser ao ser do Tempo
e a minha voz à doce voz do vento.

Despojado do que já não há
solto no vazio do que ainda não veio,
minha boca cantará
cantos de alívio pelo que se foi,
cantos de espera pelo que há de vir.

Escorreu o dia como areia,
ficou a poesia amordaçada.
Mas a lua na madrugada,
pondo-lhe uma caneta
entre os dedos ordenou:
-Toda poesia deverá ser liberada!!
E então fez-se verbo
da palavra aprisionada!
A voz da poesia ocordou o dia,
e assustou a passarada!

RESPOSTA AO TEMPO

O tempo - Olavo Bilac

Sou o Tempo que passa, que passa,
Sem princípio, sem fim, sem medida!
Vou levando a Ventura e a Desgraça,
Vou levando as vaidades da Vida!

A correr, de segundo em segundo,
Vou formando os minutos que correm...
Formo as horas que passam no mundo,
Formo os anos que nascem e morrem.

Ninguém pode evitar os meus danos...
Vou correndo sereno e constante:
Desse modo, de cem em cem anos,
Formo um século, e passo adiante.

Trabalhai, porque a vida é pequena,
E não há para o Tempo demoras!
Não gasteis os minutos sem pena!
Não façais pouco caso das horas!

Astor Piazzolla - Libertango

Clarice Lispector



Meu tema é o instante?
Meu tema de vida.
Procuro estar a par dele,
divido-me milhares de vezes
em tantas vezes quanto os
instantes que decorrem,
fragmentária que sou e
precários os momentos -
só me comprometo com vida
que nasça com o tempo e
com ele cresça: só no tempo
há espaço para mim.