Canção - Cecília Meireles


Quero um dia para chorar.
Mas a vida vai tão depressa!
– e é preciso deixar contida
a tristeza, para que a vida,
que acaba quando mal começa,
tenha tempo de se acabar.

Não quero amor, não quero amar...
Não quero nenhuma promessa
nem mesmo para ser cumprida.
Não quero a esperança partida,
nem nada de quanto regressa.
Quero um dia para chorar.

Quero um dia para chorar.
Dia de desprender-me dessa
aventura mal-entendida
sobre os espelhos sem saída
em que jaz minha face impressa.
Chorar sem protesto. Chorar.


Relógio - Oswald de Andrade


As coisas vão
As coisas vêm
As coisas vão
As coisas
Vão e vêm
Não em vão
As horas
Vão e vêm
Não em vão

Bill Douglas - Lake Isle of Innisfree

Abracemos a noite - Cecília Meireles

Abracemos a noite
Que chega do abismo,
Instruída e calada.

Em seu peito de treva
Descansemos a alma
Tão desesperada

Contemplemos a noite
Vestida de sombra,
De tempo adornada.

Tão maternal e estranha,
Tão simples, tão deusa,
Fácil e inviolada,

Que a varanda remota
De um negro horizonte
Prolonga, admirada.

Abracemos a noite
Que tece e destece
A frágil escada.

Não Digas Nada! - Fernando Pessoa



Não digas nada!
Nem mesmo a verdade
Há tanta suavidade em nada se dizer
E tudo se entender —
Tudo metade
De sentir e de ver...
Não digas nada
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda essa viagem
Até onde quis
Ser quem me agrada...
Mas ali fui feliz
Não digas nada.

A menina - Ezra Pound


A árvore penetrou minhas mãos,
A seiva ascendeu pelos meus braços,
A árvore cresceu-me no peito-
Para baixo,
Os ramos crescem fora de mim, como braços.

Árvore és tu,
Musgo és tu,
Tu és violetas com o vento acima delas.
Uma criança – tão alta – és tu,
E tudo isso é loucura para o mundo.


Poema XXXIV - James Joyce


Durma agora, durma agora
fala meu inquieto coração
a voz chora: "durma agora"
É se faz ouvir no meu coração.

A voz do vento
se ouve na porta
Oh durma, para esperar a primavera
que está chorando: "Durma agora".

Meu beijo trará a paz
E aquietará o coração
Durma agora em paz.
Oh inquieto coração.


Tradução Eric Ponty

HAIKAI - Millôr Fernandes



A esta hora
E o dia
Inda lá fora

Porcupine Tree: Stars Die

Um Homem com uma dor - Paulo Leminski



Um homem com uma dor
é muito mais elegante
caminha assim de lado
como se chegando atrasado
andasse mais adiante

carrega o peso da dor
como se portasse medalhas
uma coroa um milhão de dólares
ou coisa que os valha

ópios édens analgésicos
não me toquem nessa dor
ela é tudo que me sobra
sofrer, vai ser minha última obra.


Pelo sonho é que vamos - Sebastião da Gama


Pelo sonho é que vamos,
comovidos e mudos.

Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos.
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e ao que é do dia a dia.

Chegamos? Não chegamos?
- Partimos. Vamos. Somos.

Ocaso - Helena Figueiredo


Os passos da tarde saltam as pedras.
o cinzento oblíquo das sombras...

Na cortina rendada,
a santidade de uma ténue luz,
pontos acabados de bordar,
vozes de criança e passarada,
retalhos de oiro,
num castelo de soufflé.

Alguns anjos verdes, na orla do muro.

Depois,
o cerrar dos olhos,
sorver o momento…

O quadro explodirá para sempre,
no riso do mar.

Estou sentado sobre a minha mala - Mário Quintana


Estou sentado sobre a minha mala
No velho bergantim desmantelado...
Quanto tempo, meu Deus, malbaratado
Em tanta inútil, misteriosa escala!

Joguei a minha bússola quebrada
Às águas fundas... E afinal sem norte,
Como o velho Sindbad de alma cansada
Eu nada mais desejo, nem a morte...

Delícia de ficar deitado ao fundo
Do barco, a vos olhar, velas paradas!
Se em toda parte é sempre o Fim do Mundo

Pra que partir? Sempre se chega, enfim...
Pra que seguir empós das alvoradas
Se, por si mesmas, elas vêm a mim?

O Desvendado - Adalgisa Nery

O que há além dos veleiros perdidos no silêncio das esperas,
Além do azul parado atrás do horizonte?

O que há atrás de cada impulso, de cada gesto cortado,
Além do que existe e não sabemos procurar?

O que há além da ternura
Acomodada na procura incerta do prazer,
Na aceitação que vem pelo cansaço e o desamor?

O que há além de cada mundo que somos?
O que há além da imensidão dos vazios
Multiplicados na orla de cada minuto?

Exílio alargando-se na vida para o termo da morte.


Gênese - Emílio Moura


Há sempre uma hora,
uma hora densa,
uma hora inesperada,
em que a paisagem mais inocente
tem o fulgor de um fiat.
O tempo sonha que é espaço,
o espaço sonha que é tempo,
a realidade se compenetra de sua irrealidade.
O homem repensa o mundo.
O mundo se recompõe em sua nostalgia de Deus.

Ontem - Carlos Drummond de Andrade

Até hoje perplexo
ante o que murchou
e não eram pétalas.

De como este banco
não reteve forma,
cor ou lembrança.

Nem esta árvore
balança o galho
que balançava.

Tudo foi breve
e definitivo.
Eis está gravado

não no ar, em mim,
que por minha vez
escrevo, dissipo.

Cantiga de roda - Helena Kolody



Ao som de ingênua cantiga,
Gira, ligeira, uma roda.

Bailam cabelos de linho,
Brilha a cantiga nos olhos,
Saltam, leves, os pezinhos.

Os grandes cedros antigos,
Também, se põem a bailar:
Cantam os ramos no ar,
Dançam as sombras no chão.

SHOWTIME - POEM

O mundo é grande - Carlos Drummond de Andrade


O mundo é grande e cabe
nesta janela sobre o mar.
O mar é grande e cabe
na cama e no colchão de amar.
O amor é grande e cabe
no breve espaço de beijar.

O fazer poético - Alice Ruiz

Como se acaba um poema?
Perguntou a alma
à pena.

Sem intenção,
respondeu
a página em branco.

Quando pena
se deposita
sobre pena
página
e alma
estão plenas.