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Tentação em Maio - Adélia Prado

Maio se extingue
e com tal luz
e de tal forma se extingue
que um pecado oculto me sugere:
não olhe porque maio não é seu.
Ninguém se livra de maio.
Encantados todos viram as cabeças:
'Do que é mesmo que falávamos?'
De tua luz eterna, ó maio,
rosa que se fecha sem fanar-se.


Salve Rainha - Adélia Prado

A melancolia ameaça
queria ficar alegre
sem precisar escrever
sem pensar
que labor de abelhas
e voo de borboletas
precisam desse registro.

Chorando seus casamentos,
vejo mulheres que conheci na infância
como crianças felizes.

A vida é assim, Senhor?

Desabam mesmo
pele do rosto e sonhos?
Não é o que anuncio
- já vejo o fim dessas linhas,
isto é um poema, tem ritmo,
obedece a ordem mais alta
e parece me ignorar.
Me acontecem maus sonhos:
a casa só tem uma porta,
casa prisão,
paredes altas, cômodos estreitos.

Chamo pelo homem, ele ja se foi,
quem se volta é um negro,
indiferente.

A criança que se perdera
ou deixei perder-se de mim,
é um menino lobo,
eu a encontro grunhindo,
com um casal velho de negros.
Por que os negros de novo?
Por que este sonho?
Gasto minhas horas em pedir socorro,
esgotando-me, monja extramuros,
em produzir espaços de silêncio
para encontrar Tua voz.
É medo, meu apregoado amor,
uma fita gravada, meu contentamento.
O primeiro santo do Brasil
invocou para um pobre:
"Pos partum, Virgo Inviolata permansisti.
Dei Genitrix intercede pro nobis."

Ó Virgem,
volte à minha alma a alegria,
também eu
estendo a mão a esta esmola.


Agora, ó José - Adélia Prado

É teu destino, ó José,
a esta hora da tarde,
se encostar na parede,
as mãos para trás.
Teu paletó abotoado
de outro frio te guarda,
enfeita com três botões
tua paciência dura.
A mulher que tens, tão histérica,
tão histórica, desanima.

Mas, ó José, o que fazes?

Passeias no quarteirão
o teu passeio maneiro
e olhas assim e pensas,
o modo de olhar tão pálido.
Por improvável não conta

O que tu sentes, José?

O que te salva da vida
é a vida mesma, ó José,
e o que sobre ela está escrito
a rogo de tua fé:

“No meio do caminho tinha uma pedra”
“Tu és pedra e sobre esta pedra”.
A pedra, ó José, a pedra.

Resiste, ó José. Deita, José,
Dorme com tua mulher,
gira a aldraba de ferro pesadíssima.
O reino do céu é semelhante a um homem
como você, José.


O alfabeto no parque - Adélia Prado


Escrevo cartas, bilhetes, lista de compras,
 composição escolar narrando o belo passeio
 à fazenda da vovó que nunca existiu
 porque ela era pobre como Jó.
 Mas escrevo também coisas inexplicáveis:
 quero ser feliz, isto é amarelo.
 E não consigo, isto é dor.

 Vai-te de mim, tristeza, sino gago,
 pessoas dizendo entre soluços:
 «não aguento mais».

 Moro num lugar chamado globo terrestre
 onde se chora mais
 que o volume das águas denominadas mar,
 para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.

 Aqui se passa fome. Aqui se odeia.
 Aqui se é feliz, no meio de invenções miraculosas.

 Imagine que uma dita roda-gigante
 propicia passeios e vertigens entre
 luzes, música, namorados em êxtase.
 Como é bom! De um lado os rapazes.
 Do outro as moças, eu louca para casar
 e dormir com meu marido no quartinho
 de uma casa antiga com soalho de tábua.

 Não há como não pensar na morte,
 entre tantas delícias, querer ser eterno.
 Sou alegre e sou triste, meio a meio.
 Levas tudo a peito, diz a minha mãe,
 dá uma volta, distrai-te, vai ao cinema.

 A mãe não sabe, cinema é como diria o avô:
 «cinema é gente passando.
 Viu uma vez, viu todas.»

 Com perdão da palavra, quero cair na vida.
 Quero ficar no parque, a voz do cantor açucarando a tarde…
 Assim escrevo: tarde. Não a palavra,
 a coisa.



Esplendores - Adélia Prado



Toda a compreensão é poesia,
clarão inaugural que névoa densa
faz parecer velados diamantes.
Em pequenos bocados,
como quem dá comida a criancinhas,
a beleza retém seu vórtice.
São águas de compaixão
e eu sobrevivo.



O retrato - Adélia Prado

Eu quero a fotografia,
os olhos cheios d'água sob as lentes,
caminhando de terno e gravata,
o braço dado com a filha.
Eu quero a cada vez olhar e dizer:
estava chorando. E chorar.
Eu quero a dor do homem na festa de casamento,
seu passo guardado, quando pensou:
a vida é amarga e doce?
Eu quero o que ele viu e aceitou corajoso,
os olhos cheios d'água sob as lentes..


Balé - Adélia Prado

Vem de antes do sol
A luz que em tua pupila me desenha.
Aceito amar-me assim
Refletida no olhar com que me vês.

Ó ventura beijar-te,
espelho que premido não estilhaça
e mais brilha porque chora
e choro de amor radia.


Mulher ao cair da tarde - Adélia Prado

Ó Deus, não me castigue se falo
minha vida foi tão bonita!
Somos humanos,
nossos verbos têm tempos,
não são como o Vosso, eterno.


Roxo - Adélia Prado


Roxo aperta.
Roxo é travoso e estreito.
Roxo é a cordis, vexatório,
Uma doidura pra amanhecer.
A paixão de Jesus é roxa e branca,
Pertinho da alegria.
Roxo é travoso, vai madurecer.
Roxo é bonito e eu gosto.
Gosta dele o amarelo.



O céu roxeia de manhã e de tarde,
Uma rosa vermelha envelhecendo.
Cavalgo caçando o roxo,
Lembrança triste, bonina.
Campeio amor pra roxeamar apaixonada,
O roxo por gosto e sina.