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Melancolia - Henriqueta Lisboa


Água negra
negros bordes
poço negro
com flor.

Água turva
densa escuma
turvo limo
com flor.

Noite espessa
sem lanterna
espesso poço
com flor.

sobra, corpo
de serpente
na oferenda
da flor

Risco de morte
violenta,
árdua morte
de asfixia
veneno letal
fatal
quase que puro
suicídio
com uma
lenta
lenta
flor.

Mamãezinha - Henriqueta Lisboa

Mamãezinha, conta,
conta uma história!

Mamãezinha agora
está no fogão
fazendo quitutes
para o seu neném.

Mamãezinha, conta,
conta uma história!

Mamãezinha agora
está no tanque
lavando as roupas
do seu neném.

Conta, Mamãezinha,
conta uma história!

Mamãezinha agora
está no seu sono
cansado, sem sonhos.

Lendas das pedras verdes - Henriqueta Lisboa

– Fernão Dias, Fernão Dias,
deixa a Uiara dormir!

Tem um sabor secular
ressoando dentro da noite,
a voz monótona do índio.

A Serra Resplandecente
fulge ao luar junto à lagoa.
Pela escada de Jacó
sobem e descem estrelas.

– Ai, Serra Resplandecente,
Lagoa Vupabuçu!
Tantos anos de procura
como é que os hei de perder!

– Fernão Dias, Fernão Dias,
deixa a Uiara dormir!

A vida da tribo está
no grande sono da Uiara.
O grande sono da Uiara
reside nos seus cabelos.
Seus cabelos eram de água,
tornaram-se em pedras verdes.

Voz de raça moribunda
Fernão Dias não escuta.

– Sete anos há que deixei
minha terra e meu sossego
em troca de uma esperança
que é meu respiro e bordão.
Da Serra da Mantiqueira
até o Rio Uaimi,
quantos montes, quantos vales
para descer e subir,
que de sombras e emboscadas
antes do raiar do dia!

Vem de mais longe, profunda,
a voz do índio recordando:

– Nas noites de lua cheia
quando a Uiara cantava
branca e linda, emoldurada
pelas ondas dos cabelos,
mais de um valente guerreiro
por ela se suicidava.
Foi então que Macachera
com prudência soube agir,
mandando Uiara dormisse
velada por sentinelas
um sono igual ao da pedra.

– Vós que velais o seu sono,
desembaraçai as armas!
Ah! esse canto escondido,
essa beleza roubada,
esses cabelos que brilham
com viva luz de esmeraldas!
Ser guerreiro, ser valente,
depois dormir para sempre
nos verdes braços da Uiara!

– Fernão Dias, Fernão Dias!
deixa a Uiara dormir!

Assombro - Henriqueta Lisboa



Século de assombro - este século.
De violência em progresso.
E os outros séculos?
Cada ser ao sentir o peso do mundo
não terá dito: século de assombro?
O assombro seca a própria sombra
de tanto secar existência:

Sequidão de corações e mentes
Secura de corpo nos ossos
Legião de cegos e de inaptos
Asfixia de túneis e masmorras
Mantos e esgares de hipocrisia
Sevícia para fins de anuência
Acúmulo de monstros e monturos
— Assombro à cunha.

Porém acima de qualquer assombro
aquele assombro vindo de antanho
para atravessar o século
de ponto a ponta — flecha escusa — e ser
perene assombro dos mortais
— a morte.

O tempo é um fio - Henriqueta Lisboa

O tempo é um fio
bastante frágil
Um fio fino
que à toa escapa.

O tempo é um fio.
Tecei! Tecei!
Rendas de bilro
com gentileza.

Com mais empenho
tranças espessas.
Malhas e redes
com mais astúcia.

O tempo é um fio
que vale muito.

Tranças espessas
carregam frutos.
Malhas e redes
apanham peixes.

O tempo é um fio
por entre os dedos.
Escapa o fio,
perdeu-se o tempo.

Lá vai o tempo
como um farrapo
jogado à toa.

Mas ainda é tempo!

Soltai os potros
aos quatro ventos,
mandai os servos
de um pólo a outro,
vencei escarpas,
voltai com o tempo
que já se foi!...

Matinal - Henriqueta Lisboa

Acorda de madrugada
em lugarejo distante
uma voz terna e confiada:
– Deus é grande.

Nasce das escuras pedras
uma fita de água voante
em que o arco-íris se reflete
– Deus é grande.

As águas límpidas jorram
de banquetas espelhantes:
num desperdício de jóias.
– Deus é grande.

São cabritos, vêm aos saltos
esses meninos ao banho
Como está cheia a cascata!
– Deus é grande.

Jardim - Henriqueta Lisboa

_Menina faceira
de laço de fita
não vás tão bonita
sozinha ao jardim.
Se pensar Beija-Flor
que teu laço é flor,
pelos ares levará
um anel dos teus cabelos.

_Mamãe, não tenha cuidado,
eu sei dar laço bem dado.

_Menina trigueira
de faces vermelhas
no jardim sem teu irmão
não fiques, não.
Se Beija-Flor imagina
que teu rosto é flor,
menina, minha menina,
de certo um beijo te dá.

_Quando ele me der um beijo,
nas minhas mãos estará.

Solidão - Henriqueta Lisboa

Um homem na solidão
– que perene solilóquio! –
fala profundo a si próprio.

Fala a Deus em termos claros
a fluírem das mesmas águas
pela eternidade em curso.

Fala com tremor na voz
para que relvas e musgos
a palavra testemunhem.

Fala com os ventos diversos
para que a mensagem levem
aos ouvidos do horizonte.

Fala com o penhor das rochas
para que as estrelas o ouçam
desde a pedra em que se assenta:

“Da pedra da solidão
hei de levantar um templo.”

Louvação de Daniel - Henriqueta Lisboa

Como és belo, ó Daniel
dos bíblicos arcanos
aos vagares do pouco
de Congonhas do Campo.

Sob o céu constelado,
pela chuva batido,
prisioneiro da pedra
como dantes cativo,
todavia talhado
para sobrançarias.

Príncipe em terra estranha,
como outrora imperaste
sobre reis, por teu ânimo
e donaire de porte,
pela divina graça
permaneces magnífico
para as eternidades.

Mais que aos outros profetas
o Aleijadinho amou-te,
recompondo-te a essência
na harmonia do todo.
Dentre os blocos de pedra
pelo rolar dos tempos
receberás o orvalho
da estrela. Sol e azul
te saudarão primeiro.
Pássaros da distância
com preferência clara
pousarão no teu ombro.

Leão que outrora domaste
(mas com que destemor
numa esteita caverna!)
com submissa volúpia
bebe-te hoje os olhares
aos reflexos da lua.

Pensativa cabeça
sem orgulho, que sábia
posição escolheste
para ser e não ser!
Decifrador de enigmas
pelos designíos do alto,
que em ti mesmo encontravas
as raízes da vida.

Não foi em vão, Daniel,
que salvaste Susana,
cavalheiro perfeito
pelas dobras do manto.

Giro em torno de ti,
Daniel, desapareço.
Prenunciando o Messias
continuas de pedra
pelas noites e os dias
passageiros e eternos.

Noturno - Henriqueta Lisboa

Meu pensamento em febre
é uma lâmpada acesa
a incendiar a noite.

Meus desejos irrequietos,
à hora em que não há socorro,

dançam livres como libélulas
em redor do fogo.

Pomar - Henriqueta Lisboa

Menino - madruga
o pomar não foge!
(pitangas maduras
dão água na boca.)

Menino descalço
não olha onde pisa.
Trepa pelas árvores
agarrando pêssegos.
(Pêssegos macios
como paina e flor.
Dentadas de gosto!)

Menino, cuidado,
jabuticabeiras
novinhas em folha
não aguentam peso.

Rebrilham cem olhos
agrupados, negros.
E as frutas estalam
- espuma de vidro -
nos lábios de rosa.
Menino guloso!

Menino guloso,
ontem vi um figo
mesmo que um veludo,
redondo, polpudo,
e disse: este é meu!
Meu figo onde está?

-Passarinho comeu,
passarinho comeu...

Serenidade - Henriqueta Lisboa

Há muito tempo, Vida, prometeste
trazer ao meu caminho uma doida alegria
feita de espírito e de chama,
uma alegria transbordante, assim como esse
alvo clarão que se irradia
da orla festiva das enseadas,
e entre reflexos de ouro se derrama
do cântaro das madrugadas.

Eu, que nasci para um destino manso
de coisas suaves, silenciosas, imprecisas,
e que fico tão bem neste obscuro remanso
onde apenas se infiltra um perfume de brisas,
imagino a tremer: que seria de mim
se essa alegria
esplêndida, algum dia,
houvesse surpreendido a minha inexperiência!...

A vida me iludiu, mas foi sábia na essência.

Minha alegria deveria ser assim:
Pequenina doçura delicada,
gota de orvalho em pétala de flor,
sempre serena lâmpada velada
que me diluísse as brumas do interior.

Sempre serena lâmpada velada,
símbolo do meu sonho predileto...
Se amanhã tu penderes do meu teto
aureolando minha última ilusão,
- para que eu viva em teu amor e em tua paz,
deixa um rastro de sombra pelo chão...
É nesta sombra que hei de me esconder
quando sentir a falta que me faz
a outra alegria que não pude ter!

Esta é a graça - Henriqueta Lisboa

Esta é a graça dos pássaros:
cantam enquanto esperam.
E nem ao menos sabem o que esperam.

Será porventura a morte, o amor?
Talvez a noite com nova estrela,
a pátina de ouro do tempo,
alguma cousa de precário
assim como para o soldado a paz?

Com grave mistério de reposteiros
um augúrio dimana, incessante,
do marulho das fontes sob pedras,
do bulício das samambaias no horto.

No ladrido dos cães à vista da lua,
acima do desejo e da fome,
pervaga um longo desespero
em busca de tangente inefável.

O mesmo silencio da madrugada
prenuncia, sem dúvida, um evento
que já não é o grito da aurora
ao macular de sangue a túnica.

E minha voz perdura neste concerto
com a vibração e o temor de um violino
pronto a estalar em holocausto
as próprias cordas demasiado tensas.

Tempestade - Henriqueta Lisboa

- Menino, vem para dentro,
Olha a chuva lá na serra,
Olha como vem o vento!
- Ah! Como a chuva é bonita

E como o vento é valente!
- Não sejas doido, menino,
Esse vento te carrega,
Essa chuva te derrete!

- Eu não sou feito de açúcar
Para derreter na chuva.
Eu tenho força nas pernas
Para lutar contra o vento!

E enquanto o vento soprava
E enquanto a chuva caía,
Que nem um pinto molhado,
Teimoso como ele só:

- Gosto de chuva com vento,
Gosto de vento com chuva!