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Tarde - Vinícius de Moraes


Na hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas
Meu espírito te sentiu.
Ele te sentiu imensamente triste
Imensamente sem Deus
Na tragédia da carne desfeita.
Ele te quis, hora sem tempo
porque tu eras a sua imagem,
Sem Deus e sem tempo.
Ele te amou
E te plasmou na visão da manhã e do dia
Na visão de todas as horas
Ó hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas.


Mar - Vinícius de Moraes


Na melancolia de teus olhos
Eu sinto a noite se inclinar
E ouço as cantigas antigas
Do mar.

Nos frios espaços de teus braços
Eu me perco em carícias de água
E durmo escutando em vão
O silêncio.

E anseio em teu misterioso seio
Na atonia das ondas redondas
Náufrago entregue ao fluxo forte
Da morte.


A floresta - Vinícius de Moraes


Sobre o dorso possante do cavalo
Banhado pela luz do sol nascente
Eu penetrei o atalho, na floresta.
Tudo era força ali, tudo era força
Força ascencional da natureza.
A luz que em torvelinhos despenhava
Sobre a coma verdíssima da mata
Pelos claros das árvores entrava
E desenhava a terra de arabescos.
Na vertigem suprema do galope
Pelos ouvidos, doces, perpassavam
Cantos selvagens de aves indolentes.
A branda aragem que do azul descia
E nas folhas das árvores brincava
Trazia à boca um gosto saboroso
De folha verde e nova e seiva bruta.

Vertiginosamente eu caminhava
Bêbado da frescura da montanha
Bebendo o ar estranguladamente.
Às vezes, a mão firme apaziguava
O impulso ardente do animal fogoso
Para ouvir de mais perto o canto suave
De alguma ave de plumagem rica
E após, soltando as rédeas ao cavalo
Ia de novo loucamente à brisa.

De repente parei. Longe, bem longe
Um ruído indeciso, informe ainda
Vinha às vezes, trazido pelo vento.
Apenas branda aragem perpassava
E pelo azul do céu, nenhuma nuvem.

Que seria? De novo caminhando
Mais distinto escutava o estranho ruído
Como que o ronco baixo e surdo e cavo
De um gigante de lenda adormecido.

A cachoeira, Senhor! A cachoeira!
Era ela. Meu Deus, que majestade!
Desmontei. Sobre a borda da montanha
Vendo a água lançando-se em peitadas
Em contorções, em doidos torvelinhos
Sobre o rio dormente e marulhoso
Eu tive a estranha sensação da morte.

Em cima o rio vinha espumejante
Apertando entre as pedras pardacentas
Rápido e se sacudindo em branca espuma.
De repente era o vácuo embaixo, o nada
A queda célere e desamparada
A vertigem do abismo, o horror supremo
A água caindo, apavorada, cega
Como querendo se agarrar nas pedras
Mas caindo, caindo, na voragem
E toda se estilhaçando, espumecente.

Lá fiquei longo tempo sobre a rocha
Ouvindo o grande grito que subia
Cheio, eu também, de gritos interiores.
Lá fiquei, só Deus sabe quanto tempo
Sufocando no peito o sofrimento
Caudal de dor atroz e inapagável
Bem mais forte e selvagem do que a outra.
Feita ela toda de esperança
De não poder sentir a natureza
Com o espírito em Deus que a fez tão bela.

Quando voltei, já vinha o sol mais alto
E alta vinha a tristeza no meu peito.
Eu caminhei. De novo veio o vento
Os pássaros cantaram novamente
De novo o aroma rude da floresta
De novo o vento. Mas eu nada via.
Eu era um ser qualquer que ali andava
Que vinha para o ponto de onde viera
Sem sentido, sem luz, sem esperança
Sobre o dorso cansado de um cavalo.



Azul e branco - Vinícius de Moraes



Concha e cavalo-marinho
Mote de Pedro Nava

I
Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio
Do espaço criado.

Concha e cavalo-marinho.

O mar vos deu em corola
O céu vos imantou
Mas a luz refez o equilíbrio.

Concha e cavalo-marinho.

Vênus anadiômena
Multípede e alada
Os seios azuis
Dando leite à tarde
Viu-vos Eupalinos
No espelho convexo
Da gota que o orvalho
Escorreu da noite
Nos lábios da aurora.

Concha e cavalo-marinho.

Pálpebras cerradas
Ao poder violeta
Sombras projetadas
Em mansuetude
Sublime colóquio
Da forma com a eternidade.

Concha e cavalo-marinho.

II

Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.

Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.

Concha e cavalo-marinho.

Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos
Que o raio de luz
Cortando transforma
Em claves de sol
E o amor do infinito
Retifica em hastes
Antenas paralelas
Propícias à eterna
Incursão da música.

Concha e cavalo-marinho.

III

Azul... Azul...

Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco

Concha...

e cavalo-marinho.


Sinto-me só como um seixo de praia - Vinícius de Moraes


Sinto-me só como um seixo de praia
Vivendo à busca no cristal das ondas,
Não sei se sou o que não sou. Pressinto
Que a maré vai morar no fundo d’alma.

Calo-me sempre se te escuto vindo
Marulho de incerteza e de agonia;
Há crenças deslizando nos meus traços,
Molhando a estátua do meu sonho antigo.

Declino-me nas frases dos rochedos
Nas pérolas de som do inesquecer
Na incrível sombra da montanha adulta.

E ao me curvar ao peso da memória,
Descubro meu reflexo obscuro
Num soneto de espumas inexatas.



Amiga minha, hoje no céu a Lua... Vinícius de Moraes

Amiga minha, hoje no céu a Lua
Tem uma face que me lembra a tua
A Lua é sempre assim, ou é teu rosto
Que dorme no céu posto, amiga minha?

Ah, desce do teu nicho, rosto puro
E vem iluminar meu leito escuro.

Astro solitário, ó Sol
Ilumina meu poema da tua claridade matinal
Transfunde-lhe nas veias o éter com o azul
E torna-o simples.


A música das almas - Vinícius de Moraes


"Le mal est dans le monde
comme un esclave qui fait monter l’eau."  Claudel

Na manhã infinita as nuvens surgiram
como a loucura numa alma
E o vento como o instinto desceu os braços das árvores
que estrangularam a terra...
Depois veio a claridade, o grande céu, a paz dos campos...
Mas nos caminhos todos choravam
com os rostos levados para o alto
Porque a vida tinha misteriosamente passado na tormenta.



Acontecimento - Vinícius de Moraes


Haverá na face de todos um profundo assombro
E na face de alguns, risos sutis cheios de reserva
Muitos se reunirão em lugares desertos
E falarão em voz baixa em novos possíveis milagres
Como se o milagre tivesse realmente se realizado
Muitos sentirão alegria
Porque deles é o primeiro milagre
Muitos sentirão inveja
E darão o óbolo do fariseu com ares humildes
Muitos não compreenderão
Porque suas inteligências vão somente até os processos
E já existem nos processos tantas dificuldades...
Alguns verão e julgarão com a alma
Outros verão e julgarão com a alma que eles não têm
Ouvirão apenas dizer...
Será belo e será ridículo
Haverá quem mude como os ventos
E haverá quem permaneça na pureza dos rochedos.
No meio de todos eu ouvirei calado e atento, comovido e risonho
Escutando verdades e mentiras
Mas não dizendo nada.
Só a alegria de alguns compreenderem bastará
Porque tudo aconteceu para que eles compreendessem
Que as águas mais turvas contêm às vezes as pérolas mais belas.


O Rio - Vinícius de Moraes

 

Uma gota de chuva
A mais, e o ventre grávido
Estremeceu, da terra.
Através de antigos
Sedimentos, rochas
Ignoradas, ouro
Carvão, ferro e mármore
Um fio cristalino
Distante milênios
Partiu fragilmente
Sequioso de espaço
Em busca de luz.

Um rio nasceu.


O Girassol / Vinícius de Moraes



Sempre que o sol
Pinta de anil
Todo o céu
O girassol
Fica um gentil
Carrossel.

O girassol é o carrossel das abelhas.

Pretas e vermelhas
Ali ficam elas
Brincando, fedelhas
Nas pétalas amarelas.

— Vamos brincar de carrossel, pessoal?

— "Roda, roda, carrossel
Roda, roda, rodador
Vai rodando, dando mel
Vai rodando, dando flor. "

— Marimbondo não pode ir que é bicho mau!

— Besouro é muito pesado!

— Borboleta tem que fingir de borboleta na
entrada!

— Dona Cigarra fica tocando seu realejo!

— "Roda, roda, carrossel
Gira, gira, girassol
Redondinho como o céu
Marelinho como o sol".

E o girassol vai girando dia afora . . .

O girassol é o carrossel das abelhas.


Sonetinho a Portinari - Vinícius de Moraes

O pintor pequeno
O grande pintor
Ruim como um veneno
Bom como uma flor

Vi-o da Inglaterra
Uma tarde, vi-o
No ermo, vadio
Brodósqui onde a terra

É cor de pintura
Muito louro, vi-o
Dentro da moldura

De um quadro de aurora
O olhar azul frio:
- Lá ia ele embora...



Minha mãe, diz a santa Teresa ... Vinícius de Moraes


Minha mãe, diz a santa Teresa que quando eu morrer
Eu quero ir para o céu.
Fala com são Francisco também, providencia
Conta minha infância, quando como o tempo
Em que você falava com a gente uma porção de histórias
São Francisco é meu amigo, ele compreende
Santa Teresa é boazinha, ela sabe
Diz a eles que eu cantava antes de falar, que eu mentia
Que tinha visto Nossa Senhora para os garotos da Ilha e eles acreditavam
Para são Francisco você adota o tom simples
Para santa Teresa você adota o tom franco
Vai logo dizendo, fala que eu já li o Inferno de Dante
Que eu já sei como é e como já sei não preciso mais ir
Eles compreendem, eles são bonzinhos
Eles sabem que você está exagerando mas dão o desconto
Para são Francisco diz que eu sei cantar e que eu sou poeta
Para santa Teresa diz que eu sei umas anedotas de padre
Que a gente pode ficar conversando os três
Dando miolo de pão aos passarinhos
Fazendo improviso e graça com são Tomás de Aquino
Se for preciso diz francamente que eu não presto
Mas que eu quero ir pro céu
Que o purgatório é muito úmido, e o inferno
Tem Lucrécia e uma porção de mulheres para mexer comigo
Diz que eu rne comporto, que eu só quero
É estar com eles falando poesia
Discutindo Rimbaud e tocando violão em noite de lua cheia
Não diz que eu sou formado, nem que eu sou laureado
Nem que vim pra Oxford, nem que trabalhei para o governo
Diz só que eu não quero perder minha poesia nem minha tristeza
Que eu quero ver meu amigo Rainer Maria Rilke
Que eu quero ficar deitado pensando enquanto eles rezam.


Fim - Vinícius de Moraes

Será que cheguei ao fim de todos os caminhos
E só resta a possibilidade de permanecer?
Será a Verdade apenas um incentivo à caminhada
Ou será ela a própria caminhada?
Terão mentido os que surgiram da treva e gritaram - Espírito!
E gritaram - Coragem!
Rasgarei as mãos nas pedras da enorme muralha
Que fecha tudo à libertação?
Lançarei meu corpo à vala comum dos falidos
Ou cairei lutando contra o impossível que antolha-me os passos
Apenas pela glória de tombar lutando?

Será que eu cheguei ao fim de todos os caminhos...
Ao fim de todos os caminhos?



Soneto de maior amor - Vinícius de Moraes


Maior amor nem mais estranho existe
Que o meu, que não sossega a coisa amada
E quando a sente alegre, fica triste
E se a vê descontente, dá risada.

E que só fica em paz se lhe resiste
O amado coração, e que se agrada
Mais da eterna aventura em que persiste
Que de uma vida mal aventurada.

Louco amor meu, que quando toca, fere
E quando fere vibra, mas prefere
Ferir a fenecer - e vive a esmo

Fiel à sua lei de cada instante
Desassombrado, doido, delirante
Numa paixão de tudo e de si mesmo.



Allegro - Vinícius de Moraes


Sente como vibra
Doidamente em nós
Um vento feroz
Estorcendo a fibra

Dos caules informes
E as plantas carnívoras
De bocas enormes
Lutam contra as víboras

E os rios soturnos
Ouve como vazam
A água corrompida

E as sombras se casam
Nos raios noturnos
Da lua perdida.


As Cores de Abril - Vinícius de Moraes

 As cores de abril
Os ares de anil
O mundo se abriu em flor
E pássaros mil
Nas flores de abril
Voando e fazendo amor

O canto gentil
De quem bem te viu
Num pranto desolador
Não chora, me ouviu
Que as cores de abril
Não querem saber de dor

Olha quanta beleza
Tudo é pura visão
E a natureza transforma a vida em canção

Sou eu, o poeta, quem diz
Vai e canta, meu irmão
Ser feliz é viver morto de paixão.


A Terra Prometida - Vinícius de Moraes

Poder dormir
Poder morar
Poder sair
Poder chegar
Poder viver
Bem devagar
E depois de partir poder voltar
E dizer: este aqui é o meu lugar
E poder assistir ao entardecer
E saber que vai ver o sol raiar
E ter amor e dar amor
E receber amor até não poder mais
E sem querer nenhum poder
Poder viver feliz pra se morrer em paz.


Os acrobatas - Vinícius de Moraes


Subamos!
Subamos acima
Subamos além, subamos
Acima do além, subamos!
Com a posse física dos braços
Inelutavelmente galgaremos
O grande mar de estrelas
Através de milênios de luz.

Subamos!

Como dois atletas
O rosto petrificado
No pálido sorriso do esforço
Subamos acima
Com a posse física dos braços
E os músculos desmesurados
Na calma convulsa da ascensão.

Oh, acima
Mais longe que tudo
Além, mais longe que acima do além!
Como dois acrobatas
Subamos, lentíssimos
Lá onde o infinito
De tão infinito
Nem mais nome tem.

Subamos!
Tensos
Pela corda luminosa
Que pende invisível
E cujos nós são astros
Queimando nas mãos
Subamos à tona
Do grande mar de estrelas
Onde dorme a noite.

Subamos!
Tu e eu, herméticos
As nádegas duras
A carótida nodosa
Na fibra do pescoço
Os pés agudos em ponta.
Como no espasmo.

E quando
Lá, acima
Além, mais longe que acima do além
Adiante do véu de Betelgeuse
Depois do país de Altair
Sobre o cérebro de Deus.

Num último impulso
Libertados do espírito
Despojados da carne
Nós nos possuiremos.
E morreremos
Morreremos alto, imensamente
Imensamente alto.


Antes que a angústia desça é preciso partir... - Vinícius de Moraes

Antes que a angústia desça é preciso partir
Não importa para onde, não importa para longe de quem
Ó como o mesmo céu sufoca e a mesma ventura mata!

Abandonar o corpo gasto de sol e a alma gasta de sono
Raspar os velhos sapatos na branca soleira da casa do tédio
E surgir como um animal morno de silencioso passo.

Nada a conhecer... Sim, são verdes as montanhas
E quanta vaga expiação deixam os livros no pensamento
E acima de tudo existe Deus serenamente inacessível.

Mas viver, ah, viver é doloroso, é incompreensível
Não se sabe quando!... não se sabe nunca... e quando sabe-se
É para receber o golpe mortal da tragédia no mais fundo.


O tempo nos parques - Vinícius de Moraes


O tempo nos parques é íntimo, inadiável, imparticipante, imarcescível.
Medita nas altas frondes, na última palma da palmeira
Na grande pedra intacta, o tempo nos parques.

O tempo nos parques cisma no olhar cego dos lagos
Dorme nas furnas, isola-se nos quiosques
Oculta-se no torso muscular dos fícus, o tempo nos parques.

O tempo nos parques gera o silêncio do piar dos pássaros
Do passar dos passos, da cor que se move ao longe.

É alto, antigo, presciente o tempo nos parques
É incorruptível; o prenúncio de uma aragem
A agonia de uma folha, o abrir-se de uma flor
Deixam um frêmito no espaço do tempo nos parques.

O tempo nos parques envolve de redomas invisíveis
Os que se amam; eterniza os anseios, petrifica
Os gestos, anestesia os sonhos, o tempo nos parques.

Nos homens dormentes, nas pontes que fogem, na franja
Dos chorões, na cúpula azul o tempo perdura
Nos parques; e a pequenina cutia surpreende
A imobilidade anterior desse tempo no mundo
Porque imóvel, elementar, autêntico, profundo
É o tempo nos parques.