Como nuvens pelo céu - Fernando Pessoa


Como nuvens pelo céu
Passam por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transforma?
Que coisa inútil me dói?


Resíduo - Carlos Drummond de Andrade


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.



Helena Kolody


Algo que falta
Puxa as raízes,
Sobe caules,
Rebenta em flores,
No intenso impulso
De ir mais além.

Tom Jobim - Falando de Amor (MPB4 e Quarteto em Cy)

O fim da noite - Vasco Graça Moura


ela guardava os sentimentos
como um animal ferido que se agarra
à vida por de dentro

e a vai perdendo devagar
enquanto sangra e sofre
emudecendo.

então beijavas-lhe
os seus próprios gemidos, a sua
desolada liberdade, o que no seu

olhar se enevoava.
não lhe peças mais nada,
não lhe digas

mais nada, mas não deixes
que a noite tome conta dela e
dite as suas leis.


Lua depois da chuva - Cecília Meireles


Olha a chuva molha a luva
cada gota de água
como um bago de uva

A chuva lava a rua
a viúva leva o guarda chuva e a luva

olha a chuva molha a luva
e o guarda-chuva da viúva

vai a chuva e chega a lua
lua de chuva.

A Partida - Dante Milano


Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.

Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.

Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.

Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.


Êxtase - Victor Hugo


Eu estava só perto do rio, numa noite estrelada .
Não havia nuvens nos céus, em oceanos sem véus.
Meus olhos mergulharam mais longe que o mundo real.
E bosques, e montes, e toda a natureza,
Parecia interrogar-se num sussurro confuso
Rio de oceanos, os fogos do céu.
E estrelas d'ouro, legiões infinitas,
Em voz alta, em voz baixa, com mil harmonias,
Dizendo, enquanto inclinavam suas coroas de fogo;
E os rios azuis que nada governa e nunca param,
Dizendo, enquanto a cristas de suas espumas dobravam :
- É o Senhor, o Senhor Deus!


O verbo - Fernando Py


o verbo
preexiste
às areias do tempo

o verbo
perfaz o mundo
em seus números

o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo

o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra

o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz

o verbo
mal se conquista
- a doma é acerba

o verbo
se averba


Maurice Ravel La Valse

O homem sempre é mais forte - Carlos Nejar


O vento faz seu caminho
onde o sol desemboca o mar,
onde a terra tarja o vinho,
onde a noite é seu lagar.

O vento faz seu caminho
onde os mortos vão deitar
e a noite move moinho,
move outra noite no mar.

 O vento faz seu caminho
e pássaros vão pousar
na floração dos moinhos
que amadurecem o mar.

 O vento faz seu caminho
onde há sede de plantar,
onde a semente é destino
que um sulco não pode dar.
  
  

O homem sempre é mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.

 No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.
  
Por mais que a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.

Saudade - Gilka Machado


De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?

De quem é esta saudade,
de quem?

Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...

E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...

De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?


O canto da juriti - Cassiano Ricardo


Eu ia andando pelo caminho
em pleno sertão, o cafezal tinha ficado lá longe . . .
Foi quando escutei o seu canto
que me pareceu o soluço sem fim da distância . . .


A ânsia de tudo o que é longo como as palmeiras.
A saudade de tudo o que é comprido como os rios . .
O lamento de tudo o que é roxo como a tarde ...
O choro de tudo o que fica chorando por estar longe ...
bem longe.


Canção do dia de sempre - Mário Quintana


Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...

Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...

E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...

E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.

Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.

Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!

E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas.


Reinauguração - Carlos Drummond de Andrade

Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmistificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza,
a exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.

Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.



      

A eternidade - Arthur Rimbaud


Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.

Minha alma imortal,
Cumpre a tua jura
Seja o sol estival
Ou a noite pura.

Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então...

— Jamais a esperança.
Sem movimento.
Ciência e paciência,
O suplício é lento.

Que venha a manhã,
Com brasas de satã,
O dever
É vosso ardor.

Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.


Poemas de Dezembro - Carlos Drummond de Andrade


Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.

Uma vez mais se constrói
a aérea casa da esperança
nela reluzem alfaias
de sonho e de amor: aliança.


Fazer da areia, terra e água uma canção
Depois, moldar de vento a flauta
que há de espalhar esta canção
Por fim tecer de amor lábios e dedos
que a flauta animarão
E a flauta, sem nada mais que puro som
envolverá o sonho da canção
por todo o sempre, neste mundo.

Quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
Que sonho, que mistério, que oração?
Amor.



O relógio - Charles Baudelaire


Relógio! Divindade sinistra, horrível, impassível,
Cujo dedo nos ameaça e nos diz: Recorda!
As vibrantes dores no teu coração cheio de terror
Cessarão brevemente como num alvo;

O Prazer vaporoso fugirá para o horizonte
Tal como uma sílfide para o fundo do corredor;
Cada instante te devora um pedaço da delícia
Acordada a cada homem para toda a sua estância.

Três mil seiscentas vezes por hora, o Segundo
Murmura: Recorda! Rápido, com a sua voz
De insecto, agora diz: Eu sou antanho,
E eu bombeei a tua vida com a minha tromba imunda!

Remember! Recorda! Pródigo! Esto memor!
(A minha garganta de metal fala todas as línguas.)
Os minutos, morte brincalhona, são gangas
Que não se podem deixar sem extrair o ouro!

Recorda! Que o tempo é um jogador ávido
Que ganha sem batota! A todo o custo! É a lei.
O dia declina; a noite aumenta: Recorda!
O abismo tem sempre sede; a clepsidra se esvazia.

Logo soará a hora em que o Divino Azar,
Onde a augusta Virtude, a tua esposa ainda virgem,
Onde o Arrependimento (oh, o último refúgio!)
Onde tudo te dirá: Morre, velho fraco! É muito tarde!