Poda da amendoeira - Gabriela Mistral

A amendoeira eu podo e o céu vejo
com as minhas mãos enfim purificadas,
como se apalpam as faces amadas
com o semblante enlevado do desejo.

Como crio na estrofe mais sincera
em que o meu sangue vivo há de correr,
preparo o coração pra receber
o sangue imenso que há na Primavera.

Dá o meu peito à árvore o seu latido
e escuta o tronco, na seiva escondido,
meu coração como um cinzel profundo.

Os que me amavam julgam-me perdida
e é só o meu peito, aí sustido
na amendoeira, a minha entrega ao mundo.

Crepuscular - Fernando Py

O vento frio
de beira-mar
me envolve qual
diáfano abraço
e no arrepio
sinto meu corpo
todo encolher-se
aos grãos de sal
de úmido gosto
e já se esvai
de mim o dentro
e os lábios sinto
secos ao ar
e me estremeço
à aura marinha
e me reduzo
à só matéria
e denso desço
à noite em mim
enrodilhado
na areia inerte
e já me aqueço
volvido ao centro
branco do Nada.


Yes - Soon

Ao Sol - Dora Ferreira da Silva

Naufragas na noite
em pompas de luz e imensidade
todo germe palpita na semente
e da nova manhã ressurges
clara divindade
nua a carnação sob o manto escarlate.

As chuvas - H. Dobal



Nas mãos do vento as chuvas amorosas
vinham cair nos campos de dezembro,
e de repente a vida rebentava
na força muda que as sementes guardam.

Nas ramas verdes rebentava a luz
e a doçura do tempo transformava
a terra e o gado na pastagem tenra,
na alegria dos rios renovados.

Cheiro de mato e de currais suspensos
no ar que os dedos do inverno vão tecendo
mais uma vez nos campos de dezembro.

E nos trovões a tarde acalentada,
cantigas de viver que a chuva traz
numa clara certeza repetida.

Os sinais - Lêdo Ivo

Saibam quantos vivem
neste mundo imenso:
Deus nao cheira a incenso.
É no estrume fresco
e na alga viscosa
que devemos ver
os sinais divinos
com os olhos de quando
éramos meninos.


HAIKAI - Mary Leiko Terada

Girando em cores
Sobe a bolha de sabão
– Gritos também sobem.

As nuvens e os sonhos - Mário Quintana



Ah! Essas esculturas de gaze do vento,
Sempre errantes entre o céu e a terra,
Como nos sonhos dos homens.

Alumbramento - Manuel Bandeira

Eu vi os céus! Eu vi os céus!
Oh, essa angélica brancura
Sem tristes pejos e sem véus!

Nem uma nuvem de amargura
Vem a alma desassossegar.
E sinto-a bela... e sinto-a pura...

Eu vi nevar! Eu vi nevar!
Oh, cristalizações da bruma
A amortalhar, a cintilar!

Eu vi o mar! Lírios de espuma
Vinham desabrochar à flor
Da água que o vento desapruma...

Eu vi a estrela do pastor...
Vi a licorne alvinitente!...
Vi... vi o rastro do Senhor!...

E vi a Via Láctea ardente...
Vi comunhões... capelas... véus...
Súbito... alucinadamente...

Vi carros triunfais... troféus...
Pérolas grandes como a lua...
Eu vi os céus! Eu vi os céus!

- Eu vi-a nua... toda nua!

Noite - Cecília Meireles

Úmido gosto de terra,
cheiro de pedra lavada,
– tempo inseguro do tempo! –
sobra do flanco da serra,
nua e fria, sem mais nada.

Brilho de areias pisadas,
sabor de folhas mordidas,
– lábio da voz sem ventura! –
suspiro das madrugadas
sem coisas acontecidas.

A noite abria a frescura
dos campos todos molhados,
– sozinho, com o seu perfume! –
preparando a flor mais pura
com ares de todos os lados.

Bem que a vida estava quieta.
Mas passava o pensamento...
– de onde vinha aquela música?
E era uma nuvem repleta
entre as estrelas e o vento.

Sei um ninho - Miguel Torga

E o ninho tem um ovo.
E o ovo, redondinho,
Tem lá dentro um passarinho
Novo.
Mas escusam de me atentar:
Nem o tiro, nem o ensino.
Quero ser um bom menino
E guardar
Este segredo comigo.
E ter depois um amigo
Que faça o pino
A voar...

A pipa e o vento - Cleonice Rainho



Aprumo a máquina,
dou linha à pipa
e ela sobe alto
pela força do vento.

O vento é feliz
porque leva a pipa,
a pipa é feliz
porque tem o vento.

Se tudo correr bem,
pipa e vento,
num lindo momento,
vão chegar ao céu.

U2- with or without you

Noturno - Tasso da Silveira

Veleiro ao cais amarrado
em vago balouço, dorme?
Não dorme. Sonha, acordado,
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.

Se acaso me objetardes
que veleiro não é gente
e, assim, não sonha nem sente,
sem orgulhos nem alardes
eu direi: por que haveria
de falar-vos do homem triste
mas de olhar grave e profundo
que, à amargura acorrentado
sonha, no entanto, que vive
toda a beleza do mundo?

Melhor é dizer: Veleiro...
veleiro ao cais amarrado,
sob as límpidas estrelas.
Vela branca é uma alma trêmula,
sobretudo se cai sombra
do alto abismo constelado.
Veleiro, sim, que não dorme
mas na silente penumbra
sonha, ao balouço, acordado
que vai pelo mar enorme,
pelo mar ilimitado.

Bolero de Ravel - Carlos Drummond de Andrade

A alma cativa e obcecada
enrola-se infinitamente numa espiral de desejo
e melancolia.
Infinita, infinitamente...
As mãos não tocam jamais o aéreo objeto,
esquiva ondulação evanescente.
Os olhos, magnetizados, escutam
e no círculo ardente nossa vida para sempre está presa,
está presa...
Os tambores abafam a morte do Imperador.

A voz da chuva - Walt Whitman

E quem és? disse eu ao aguaceiro que cai suave,
Que, estranhamente, me deu esta resposta, aqui traduzida:

Eu sou o Poema da Terra, disse a voz da chuva,
Eterno ergo-me impalpável 
da terra e do mar sem fundo,
Em direcção ao céu, de onde,
surgindo sob uma forma vaga,
completamente transformado e no entanto o mesmo,
Desço para banhar a aridez, os átomos, 
as camadas de pó do globo,
E tudo o que nelas sem mim
seria apenas sementes adormecidas e por nascer;
E para sempre, de dia e de noite,
devolvo a vida à minha própria origem
e torno-a pura e embelezo-a,
(Porque a canção, saída da sua terra natal,
depois de cumprido o seu dever e ter deambulado,
Ouvida ou não na sua hora, regressa com amor).

Loreena McKennitt - Stolen Child

The Stolen Child - W.B. Yeats



Where dips the rocky highland
Of Sleuth Wood in the lake,
There lies a leafy island
Where flapping herons wake
The drowsy water rats;
There we've hid our faery vats,
Full of berrys
And of reddest stolen cherries.
Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand.

Where the wave of moonlight glosses
The dim gray sands with light,
Far off by furthest Rosses
We foot it all the night,
Weaving olden dances
Mingling hands and mingling glances
Till the moon has taken flight;
To and fro we leap
And chase the frothy bubbles,
While the world is full of troubles
And anxious in its sleep.
Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand.

Where the wandering water gushes
From the hills above Glen-Car,
In pools among the rushes
That scarce could bathe a star,
We seek for slumbering trout
And whispering in their ears
Give them unquiet dreams;
Leaning softly out
From ferns that drop their tears
Over the young streams.
Come away, O human child!
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than you can understand.

Away with us he's going,
The solemn-eyed:
He'll hear no more the lowing
Of the calves on the warm hillside
Or the kettle on the hob
Sing peace into his breast,
Or see the brown mice bob
Round and round the oatmeal chest.
For he comes, the human child,
To the waters and the wild
With a faery, hand in hand,
For the world's more full of weeping than he can understand.


The Stolen Child - W.B. Yeats

O vidente - Manoel de Barros

Primeiro o menino viu uma estrela pousada nas pétalas da noite
E foi contar para a turma.
A turma falou que o menino zoroava.
Logo o menino contou que viu o dia parado em cima de uma lata
Igual que um pássaro pousado sobre uma pedra.
Ele disse: dava a impressão que a lata amparava o dia.
A turma caçoou.
Mas o menino começou a apertar parafuso no vento.
A turma falou: mas como você pode apertar parafuso no vento
Se o vento nem tem organismo.
Mas o menino afirmou que o vento tinha organismo
E continuou a apertar parafuso no vento.