Fisionomia - Ana Cristina César


não é mentira
é outra
a dor que dói
em mim
é um projeto
de passeio
em círculo
um malogro
do objeto
em foco
a intensidade
de luz
de tarde
no jardim
é outra
a dor que dói

Um voo de andorinha - Mário Quintana



Um voo de andorinha
Deixa no ar o risco de um frêmito...
Que é isto, coração?! Fica aí, quietinho:
Chegou a idade de dormir!
Mas
Quem é que pode parar os caminhos!
E os rios cantando e correndo?
E as folhas ao vento? E os ninhos...
E a poesia...
A poesia como um seio nascendo...

Natalie Merchant sings old poems to life

Melancolia - Henriqueta Lisboa


Água negra
negros bordes
poço negro
com flor.

Água turva
densa escuma
turvo limo
com flor.

Noite espessa
sem lanterna
espesso poço
com flor.

sobra, corpo
de serpente
na oferenda
da flor

Risco de morte
violenta,
árdua morte
de asfixia
veneno letal
fatal
quase que puro
suicídio
com uma
lenta
lenta
flor.

A suposta existência - Carlos Drummond de Andrade


Como é o lugar
quando ninguém passa por ele?
Existem as coisas
sem ser vistas?

O interior do apartamente desabitado,
a pinça esquecida na gaveta,
os eucaliptos à noite no caminho
três vezes deserto,
a formiga sob a terra no domingo,
os mortos, um minuto
depois de sepultados,
nós, sozinhos
no quarto sem espelho?

Que fazem, que são
as coisas não testadas como coisas,
minerais não descobertos - e algum dia
o serão?

Estrela não pensada,
palavra rascunhada no papel
que nunca ninguém leu?
Existe, existe o mundo
apenas pelo olhar
que o cria e lhe confere
espacialidade?


Concretitude das coisas: falácia
de olhar enganador, ouvido falso, mão que brinca de pegar o não
e pegando concede-lhe
a ilusão da forma
e, ilusão maior, a de sentido?

Ou tudo vige
planturosamente, à revelia
de nossa judicial inquirição
e esta apenas existe consentida
pelos elementos inquiridos?
Será tudo talvez hipermercado
de possíveis e impossíveis possibilíssimos
que geram minha fantasia de consciência
enquanto exercito a mentira de passear
mas passeado sou pelo passeio,
que é o sumo real, a divertir-se
com esta bruma-sonho de sentir-se
e fruir peripécias de passagem?

Eis se delineia
espantosa batalha
entre o ser inventado
e o mundo inventor.

Sou ficção rebelada
contra a mente universa
e tento construir-me
de novo a cada instante, a cada cólica,
na faina de traçar
meu início só meu
e distender um arco de vontade
para cobrir todo o depósito
de circunstantes coisas soberanas.

A guerra sem mercê, indefinida
prossegue,
feita de negação, armas de dúvida,
táticas a se voltarem contra mim,
teima interrogante de saber
se existe o inimigo, se existimos
ou somos todos uma hipótese de luta
ao sol do dia curto em que lutamos.



Nádia Dantas

passos incertos
na agonia da tarde
in-finito tempo...

Poema - Emily Dickinson



Os céus não podem guardar seu segredo!
E o confiam às colinas...
As colinas contam para os pomares
e estes para os narcisos!

Um pássaro que passava
ouviu tudo.
Se eu subornasse o passarinho
quem sabe o que ele me diria?

Acho que não o farei,
melhor é não saber;

se o verão é um axioma
que magia a neve pode ter?

Assim sendo, Pai, guardai vosso segredo!
Ainda que o pudesse, não iria
saber o que fazem os amigos da safira
em vosso mundo posto em dia.

Louvação para uma cor - Adélia Prado



O amarelo faz decorrer de si os mamões e sua polpa,
o amarelo furável.
Ao meio-dia as abelhas, o doce ferrão e o mel.
Os ovos todos e seu núcleo, o óvulo.
Este dentro, o minúsculo.
Da negritude das vísceras cegas,
amarelo e quente, o minúsculo ponto,
o grão luminoso.
Distende e amacia em bátegas
a pura luz de seu nome,
a cor tropicardiosa.
Acende o cio,
é uma flauta encantada,
um oboé em Bach.
O amarelo engendra.

A dor da terra - Cassiano Ricardo

Esta montanha sofre um íntimo tormento.
Arremessada para o azul do firmamento,
parece que o seu mal é o viver, invocando,
no seu pétreo mutismo, o ouro vivo dos astros,
sobre a desolação deste mundo execrando,
como o perdão da altura aos que vivem de rastros. . .

Toda a tinta da aurora escorre-lhe no dorso,
sobre a hedionda nudez do seu vulto retorço.
Dá-me a vaga impressão de que a montanha verte
luz e sangue, no seu torpor de cataclismo,
monstro azul que dormiu, acorrentado e inerte,
grito que emudeceu na garganta do abismo!

Onda que foi rolar, criniverde e bravia,
e parou! vagalhão absorto, penedia
descondensada, dor da Terra, hirta montanha!
O homem pensa, e pergunta ao sofrimento absurdo,
como, sendo o teu mal de grandeza tamanha,
pode um deus existir tão bárbaro e tão surdo!

Esse filões de luar, que te rolam dos flancos,
são, no horror da velhice, os teus cabelos brancos;
pois, desde o alvorecer deste mundo maldito,
nessa imobilidade em que o teu sonho medra,
nessa imortalidade obscura, sem um grito,
vives acorrentada ao teu ideal de pedra.

Do teu negro silêncio, a água viva que nasce,
(fria transudação pelas rugas da face)
que nas pedras ressuma e escorre a umedecê-las,
é o teu suor de montanha! ajoelhada no fundo
da Terra, agrilhoada ao cárcere do mundo,
como um gesto de dor ao clarão das estrelas!

A aprendizagem amarga - Thiago de Mello



Chega um dia em que o dia se termina
antes que a noite caia inteiramente.
Chega um dia em que a mão, já no caminho,
de repente se esquece do seu gesto.
Chega um dia em que a lenha já não chega
para acender o fogo da lareira.
Chega um dia em que o amor, que era infinito,
de repente se acaba, de repente.

Força é saber amar, perto e distante,
com o encanto rosa livre na haste,
para que o amor ferido não se acabe
na eternidade amarga de um instante.

Leonard Cohen - Anthem



The birds they sang
at the break of day
Start again
I heard them say
Don't dwell on what
has passed away
or what is yet to be.
Ah the wars they will
be fought again
The holy dove
She will be caught again
bought and sold
and bought again
the dove is never free.

Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack in everything
That's how the light gets in.

We asked for signs
the signs were sent:
the birth betrayed
the marriage spent
Yeah the widowhood
of every government --
signs for all to see.

I can't run no more
with that lawless crowd
while the killers in high places
say their prayers out loud.
But they've summoned, they've summoned up
a thundercloud
and they're going to hear from me.

Ring the bells that still can ring ...

You can add up the parts
but you won't have the sum
You can strike up the march,
there is no drum
Every heart, every heart
to love will come
but like a refugee.

Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack, a crack in everything
That's how the light gets in.

Ring the bells that still can ring
Forget your perfect offering
There is a crack, a crack in everything
That's how the light gets in.
That's how the light gets in.
That's how the light gets in.


Hino - Leonard Cohen


Os pássaros cantam
No romper do dia
"Comece de novo"
Eu ouço eles dizendo
Não se apóie naquilo
Que passou
Ou naquilo que está para vir

Ah, as guerras,
Elas serão lutadas de novo
A pomba sagrada
Ela será apanhada novamente
Comprada e vendida
E comprada de novo
A pomba nunca está livre

Toque os sinos que ainda pode tocar
Esqueça sua perfeita oferenda
Há uma falha em tudo,
É assim que a luz entra.

Nós pedimos sinais
Os sinais foram enviados:
O pássaro traído
O casamento gasto
Sim, a viuvez
De todo governo...
Sinais para todos verem.

Eu não posso mais correr
Com essa multidão desgovernada
Enquanto os assassinos em lugares altos
Fazem suas orações em voz alta.
Mas eles foram convocados, foram convocados
Para uma nuvem tempestuosa
E eles vão ouvir de mim.

Toque os sinos que ainda pode tocar...

Você pode acrescentar as partes
Mas você não vai encontrar a soma
Você pode iniciar a marcha,
não há nenhum tambor
Todo coração, todo coração
Virá para amar
Mas como um refugiado

Toque os sinos que ainda pode tocar
Esqueça sua perfeita oferenda
Há uma falha, uma falha em tudo
É assim que a luz entra.

Toque os sinos que ainda pode tocar
Esqueça sua perfeita oferenda
Há uma falha, uma falha em tudo
É assim que a luz entra
É assim que a luz entra
É assim que a luz entra

Ária - Cecília Meireles



Na noite profunda,
deixa-me existir
como os loucos em nuvens,
como os cegos em flores.
Na profunda noite,
deixa-me chorar
sobre os rios convulsos.
Na noite profunda,
deixa-me cair
entre os céus impotentes.
Na profunda noite,
deixa-me morrer
como um pássaro inábil.
Na noite profunda.

Quem vai nos recordar
na noite profunda?
Pensamento tão gasto,
amor sem milagre
na profunda noite.
Os amigos se extinguem.

Deixa-me sofrer
na profunda noite.
Ó mãos separadas
que ninguém reconhece
na profunda noite.

Na noite profunda,
deixa para sempre,
deixa agonizar
solitário meu rosto,
na noite profunda,
na profunda noite
que a memória levar.

Verbo Ser - Carlos Drummond de Andrade


Que vai ser quando crescer?
Vivem perguntando em redor. Que é ser?
É ter um corpo, um jeito, um nome?
Tenho os três. E sou?
Tenho de mudar quando crescer? Usar outro nome, corpo e jeito?
Ou a gente só principia a ser quando cresce?
É terrível, ser? Dói? É bom? É triste?
Ser; pronunciado tão depressa, e cabe tantas coisas?
Repito: Ser, Ser, Ser. Er. R.
Que vou ser quando crescer?
Sou obrigado a? Posso escolher?
Não dá para entender. Não vou ser.
Vou crescer assim mesmo.
Sem ser Esquecer.


Carlos Drummond de Andrade

Uma música que seja - Vinícius de Moraes



... como os mais belos harmônicos da natureza.
Uma música que seja
como o som do vento na cordoalha dos navios,
aumentando gradativamente de tom até atingir
aquele em que se cria uma reta ascendente para o infinito.
Uma música que comece sem começo e termine sem fim.
Uma música que seja como o som do vento
numa enorme harpa plantada no deserto.
Uma música que seja como a nota lancinante
deixada no ar por um pássaro que morre.
Uma música que seja como o som dos altos ramos
das grandes árvores vergastadas pelos temporais.
Uma música que seja como o ponto de reunião
de muitas vozes em busca de uma harmonia nova.
Uma música que seja como o vôo de uma gaivota
numa aurora de novos sons...

HAIKAI - Yosa Buson

Mar de primavera –
Sempre igual, o dia inteiro,
num manso vai-e-vem

Laberinto - Verónica Volkow



Con mi vida escribo
la huella de una estrella,
un laberinto que encendida ando.
Sumergida en la sombra
mirada plena,

Hay un vuelo que abre
la luz en lo interno
un caminar sensible,
y cuidado del corazón despierto.