A chuva - e.e.cummings


 

ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas...
e.e.cummings

e chove
tua cidade esconde a serenidade de saber-te ali
ao alcance do meu grito mais suave
entre caminhos de vozes e ventos cuja cor chora
a desistência dos sonhos
e ama
tua chuva cai em meus cabelos como aquelas flores
pintadas nos jardins de Uffizi - enquanto choves
diz ao meu desejo: qual a estação do teu olhar -
ao meu recordo no ciclo entre mim e as nuvens
e lembra
aqui era o sereno feito corpo mais que sentimento
quando os grilos encantavam as águas em outro ermo -
apenas o teu nome sabe a imensa e minha loucura -
e ousa
se ousares abre mais essa janela que o caibro
[esconde
e voa sobre as palmas - as mãos de chuva nos
[meus olhos
e acalenta
estas palavras como sempre e nunca -
e esquece

HAIKAI - Ryushi


Quietude –
O barulho do pássaro
Pisando as folhas secas.



Assim é o medo - Henriqueta Lisboa,

Assim é o medo:
cinza
Verde.
Olhos de lince.
Voz sem timbre
Torvo e morno
Melindre.

Da sombra espreita
à espera de algo

que o alente.
Não age: tenta
porém recua
a qualquer bulha.

No campo assiste
junto ao títere
à cruz que esparze
vivo gazeio
de nervosismo
com vidro moído
grácil granizo
de pássaros.

E que rascante
violino brusco
não arrepia
ao longo o azul
dos meus veludos
se, a noite em meio
cá no fundo
quarto escuro,
a lua arrisca
numa oblíqua
o olhar morteiro.

Dentro da jaula
(mundo inapto)
do domador
em fúria à fera
subsinuosa-
mente resvala.

Aos frios reptos
do ziguezague
em choque, súbito
relampagueio,

as duas forças
se opõem dúbias
se atraem foscas
para a luta
pelo avesso:
despiste e fuga
ouro e vermelho
desde a entranha.

As duas forças
antagônicas:
qual delas ganha
acaso
ou perde
o medo
frente a
frente ao
medo?


À procura - Miguel Reale

Tanto cuidei das coisas deste mundo
buscando para os outros um caminho
que me sinto perplexo e sem rumo
à espera de uma curva e de um ninho.

Em que pedra encostar minha cabeça
na ilusão do travesseiro fofo?
Feliz seria nunca mais ter pressa
fitando o perto e o longe do horizonte!

Talvez o velejar das tentativas,
buscando em vão um porto, seja o sino
que esperava escutar em meu destino.

mas que me vale a rosa azul dos ventos
nessa aventura pelo mundo afora
se minha sina só a percebo agora?
 
 

Poema das árvores - António Gedeão

As árvores crescem sós. E a sós florescem.

Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.

Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.

Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.

E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.

Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.

As árvores não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.

Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.

Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.

Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.

Édith Piaf - Ne me quitte pas

Verde - Henriqueta Lisboa



É verde a vida que se escoa
dos alvéolos da primavera
É verde o fruto que não doa
verdor a quem desespera

Estala o verde do vergel
em longos talos dobradiços
para mesclar-se no aranzel
que vai do avesso à superfície

A lua verde com o susto
o logro o oposto a falência
o rosto verde à luz da lua
da demência.

Fluxo - Carl Sandburg

Areias do mar são vermelhas
Onde o sol se põe e estremece
Areias do mar são amarelas
Onde a lua oblíqua oscila.

Lento mas vem - Mario Benedetti

Lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

hoje está mais além
das nuvens que escolhe
e mais além do trovão
e da terra firme

demorando-se vem
qual flor desconfiada
que vigila ao sol
sem perguntar-lhe nada

iluminando vem
as últimas janelas

lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

já se vai aproximando
nunca tem pressa
vem com projetos
e sacos de sementes

com anjos maltratados
e fiéis andorinhas

devagar mas vem
sem fazer muito ruído
cuidando sobretudo
os sonhos proibidos

as recordações dormidas
e as recém-nascidas

lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

já quase está chegando
com sua melhor notícia
com punhos com olheiras
com noites e com dias

com uma estrela pobre
sem nome ainda

lento mas vem
o futuro real
o mesmo que inventamos
nós mesmos e o acaso

cada vez mais nós mesmos
e menos o acaso

lento mas vem
o futuro se aproxima
devagar
mas vem

lento mas vem
lento mas vem
lento mas vem

Saudação - Adélia Prado

Ave, Maria!
Ave, carne florescida em Jesus.
Ave, silêncio radioso,
urdidura de paciência
onde Deus fez seu amor inteligível!





Noturno - Cecília Meireles

Quem tem coragem de perguntar, na noite imensa?
E que valem as árvores, as casas, a chuva, o pequeno transeunte?

Que vale o pensamento humano,
esforçado e vencido,
na turbulência das horas?

Que valem a conversa apenas murmurada,
a erma ternura, os delicados adeuses?

Que valem as pálpebras da tímida esperança,
orvalhadas de trêmulo sal?

O sangue e a lágrima são pequenos cristais sutis,
no profundo diagrama.

E o homem tão inutilmente pensante e pensado
só tem a tristeza para distingui-lo.

Porque havia nas úmidas paragens
animais adormecidos, com o mesmo mistério humano:
grandes como pórticos, suaves como veludo,
mas sem lembranças históricas,
sem compromissos de viver.

Grandes animais sem passado, sem antecedentes,
puros e límpidos,
apenas com o peso do trabalho em seus poderosos flancos
e noções de água e de primavera nas tranqüilas narinas
e na seda longa das crinas desfraldadas.

Mas a noite desmanchava-se no oriente,
cheia de flores amarelas e vermelhas.
E os cavalos erguiam, entre mil sonhos vacilantes,
erguiam no ar a vigorosa cabeça,
e começavam a puxar as imensas rodas do dia.

Ah! o despertar dos animais no vasto campo!
Este sair do sono, este continuar da vida!
O caminho que vai das pastagens etéreas da noite
ao claro dia da humana vassalagem!


Manoel por Manoel - Manoel de Barros

"Eu tenho um ermo enorme dentro do olho.
Por motivo do ermo não fui um menino peralta.
Agora tenho saudade do que não fui.
Acho que o que faço agora
é o que não pude fazer na infância.
Faço outro tipo de peraltagem.
Quando era criança
eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba.
Mas não havia vizinho.
Em vez de peraltagem eu fazia solidão.
Brincava de fingir que pedra era lagarto.
Que lata era navio.
Que sabugo era um serzinho mal resolvido
e igual a um filhote de gafanhoto.
Cresci brincando no chão, entre formigas.
De uma infância livre e sem comparamentos.
Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação.
Porque se a gente fala a partir de ser criança,
a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha,
de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore.

Então eu trago das minhas raízes crianceiras
a visão comungante e oblíqua das coisas.
Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina.
É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor.
Eu tenho que essa visão oblíqua vem
de eu ter sido criança em algum lugar perdido
onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela.
Era o menino e os bichinhos.
Era o menino e o sol.
O menino e o rio.
Era o menino e as árvores."

Guimarães Rosa


sussurro sem som
onde a gente se lembra
do que nunca soube

Eu queria ter o tempo e o sossego suficientes - Alberto Caeiro (F.Pessoa)



Eu queria ter o tempo
e o sossego suficientes
Para não pensar em coisa nenhuma,
Para nem me sentir viver,
Para só saber de mim
nos olhos dos outros, reflectido.


HAIKAI - Cláudio Feldman


Dia lento:
Um velho cavalo
Subindo a encosta.

Meninos Carvoeiros - Manuel Bandeira



Os meninos carvoeiros
Passam a caminho da cidade.
_ Eh, carvoeiro!
E vão tocando os animais com um relho enorme.
Os burros são magrinhos e velhos.
Cada um leva seis sacos de carvão de lenha.
A aniagem é toda remendada.
Os carvões caem.
(Pela boca da noite vem uma velhinha que
os recolhe, dobrando-se com um gemido).
_ Eh, carvoeiro!

Só mesmo estas crianças raquíticas.
Vão bem com estes burrinhos descadeirados.
A madrugada ingênua parece feita para eles...
Pequenina, ingênua miséria!
Adoráveis carvoeirinhos que trabalhais como se brincásseis.
_ Eh, carvoeiro!
Quando voltam, vêm mordendo num pão encarvoado,
Encarrapitados nas alimárias,
Apostando corrida,
Dançando, bamboleando nas cangalhas,
Como espantalhos desamparados!

Vibrações do tempo - Paulo Mendes Campos


Tempo é espaço interior. Espaço é tempo exterior. Novalis

A gaivota determinada mergulha na água
Verde. Há um tempo para o peixe
E um tempo para o pássaro
E dentro e fora do homem
Um tempo eterno de solidão.

Muitas vezes, fixando o meu olhar no morto,
Vi espaços claros, bosques, igapós,
O sumidouro de um tempo subterrâneo
(Patético, mesmo às almas menos presentes)
Vi, como se vê de um avião,
Cidades conjugadas pelo sopro do homem,
A estrada amarela, o rio barrento e torturado,
Tudo tempos de homem, vibrações de tempo,
vertigens.

Senti o hálito do tempo doando melancolia
Aos que envelhecem no escuro das boîtes,
Vi máscaras tendidas para o copo e para o tempo.
Com uma tensão de nervos feridos
E corações espedaçados.
Se acordamos, e ainda não é madrugada,
Sentimos o invisível fender do silêncio,
Um tempo que se ergue ríspido na escuridão.
Cascos leves de cavalos cruzam a aurora.
O tempo goteja
Como o sangue.
Os cães discursam nos quintais, e o vento,
Grande cão infeliz,
Investe contra a sombra.

O tempo é audível; também se pode ouvir a
eternidade.