O fim da noite - Vasco Graça Moura
ela guardava os sentimentos
como um animal ferido que se
agarra
à vida por de dentro
e a vai perdendo devagar
enquanto sangra e sofre
emudecendo.
então beijavas-lhe
os seus próprios gemidos, a
sua
desolada liberdade, o que no
seu
olhar se enevoava.
não lhe peças mais nada,
não lhe digas
mais nada, mas não deixes
que a noite tome conta dela e
dite as suas leis.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Vasco Graça Moura
Lua depois da chuva - Cecília Meireles
Olha a chuva molha a luva
cada gota de água
como um bago de uva
A chuva lava a rua
a viúva leva o guarda chuva e a luva
olha a chuva molha a luva
e o guarda-chuva da viúva
vai a chuva e chega a lua
lua de chuva.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Cecília Meireles
A Partida - Dante Milano
Chego à amurada do cais,
Tomo um trago de tristeza.
Vem uma aura de beleza
Entontecer-me ainda mais.
Sinto um gosto de paixão
Dentro da boca amargosa.
Vem a morte deliciosa
Arrastar-me pela mão.
Vou seguindo sem olhar,
Vou andando sem rumor,
Ouvindo a vaga do mar
Bater na pedra da dor.
Vou andando sobre o mar,
Quem sabe onde irei parar?
Vou andando sem saber
Aonde me leva este amor.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Dante Milano
Êxtase - Victor Hugo
Eu estava só perto do rio, numa noite estrelada .
Não havia nuvens nos céus, em oceanos sem véus.
Meus olhos mergulharam mais longe que o mundo real.
E bosques, e montes, e toda a natureza,
Parecia interrogar-se num sussurro confuso
Rio de oceanos, os fogos do céu.
E estrelas d'ouro, legiões infinitas,
Em voz alta, em voz baixa, com mil harmonias,
Dizendo, enquanto inclinavam suas coroas de fogo;
E os rios azuis que nada governa e nunca param,
Dizendo, enquanto a cristas de suas espumas dobravam :
- É o Senhor, o Senhor Deus!
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Victor Hugo
O verbo - Fernando Py
o verbo
preexiste
às areias do tempo
o verbo
perfaz o mundo
em seus números
o verbo
no espaço da frase
conjuga
seu traço múltiplo
o verbo
molda-se em carne
no disfarce
da palavra
o verbo
se apessoa
aos enxertos
da voz
o verbo
mal se conquista
- a doma é acerba
o verbo
se averba
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Fernando Py
O homem sempre é mais forte - Carlos Nejar
O vento faz seu caminho
onde o sol desemboca o mar,
onde a terra tarja o vinho,
onde a noite é seu lagar.
O vento faz seu caminho
onde os mortos vão deitar
e a noite move moinho,
move outra noite no mar.
O vento faz seu caminho
e pássaros vão pousar
na floração dos moinhos
que amadurecem o mar.
O vento faz seu caminho
onde há sede de plantar,
onde a semente é destino
que um sulco não pode dar.
O homem sempre é mais forte
se a outro homem se aliar;
o arado faz caminho
no seu tempo de cavar.
No mesmo mar que nos leva,
o vento nos quer buscar;
o que é da terra é do homem,
onde o arado vai brotar.
Por mais que a morte desfaça,
há um homem sempre a lutar;
o vento faz seu caminho
por dentro, no seu pomar.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Carlos Nejar
Saudade - Gilka Machado
De quem é esta saudade
que meus silêncios invade,
que de tão longe me vem?
De quem é esta saudade,
de quem?
Aquelas mãos só carícias,
Aqueles olhos de apelo,
aqueles lábios-desejo...
E estes dedos engelhados,
e este olhar de vã procura,
e esta boca sem um beijo...
De quem é esta saudade
que sinto quando me vejo?
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Gilka Machado
O canto da juriti - Cassiano Ricardo
Eu ia andando pelo caminho
em pleno sertão, o cafezal tinha ficado lá longe . . .
Foi quando escutei o seu canto
que me pareceu o soluço sem fim da distância . . .
A ânsia de tudo o que é longo como as palmeiras.
A saudade de tudo o que é comprido como os rios . .
O lamento de tudo o que é roxo como a tarde ...
O choro de tudo o que fica chorando por estar longe ...
bem longe.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Cassiano Ricardo
Canção do dia de sempre - Mário Quintana
Tão bom viver dia a dia...
A vida assim, jamais cansa...
Viver tão só de momentos
Como estas nuvens no céu...
E só ganhar, toda a vida,
Inexperiência... esperança...
E a rosa louca dos ventos
Presa à copa do chapéu.
Nunca dês um nome a um rio:
Sempre é outro rio a passar.
Nada jamais continua,
Tudo vai recomeçar!
E sem nenhuma lembrança
Das outras vezes perdidas,
Atiro a rosa do sonho
Nas tuas mãos distraídas.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Mário Quintana
Reinauguração - Carlos Drummond de Andrade
Entre o gasto dezembro e o florido janeiro,
entre a desmistificação e a expectativa,
tornamos a acreditar, a ser bons meninos,
e como bons meninos reclamamos
a graça dos presentes coloridos.
Nessa idade - velho ou moço - pouco importa.
Importa é nos sentirmos vivos
e alvoroçados mais uma vez, e revestidos de beleza,
a exata beleza que vem dos gestos espontâneos
e do profundo instinto de subsistir
enquanto as coisas em redor se derretem e somem
como nuvens errantes no universo estável.
Prosseguimos. Reinauguramos. Abrimos olhos gulosos
a um sol diferente que nos acorda para os descobrimentos.
Esta é a magia do tempo.
Esta é a colheita particular
que se exprime no cálido abraço e no beijo comungante,
no acreditar na vida e na doação de vivê-la
em perpétua procura e perpétua criação.
E já não somos apenas finitos e sós.
Somos uma fraternidade, um território, um país
que começa outra vez no canto do galo de 1º de janeiro
e desenvolve na luz o seu frágil projeto de felicidade.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
A eternidade - Arthur Rimbaud
Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.
Minha alma imortal,
Cumpre a tua jura
Seja o sol estival
Ou a noite pura.
Pois tu me liberas
Das humanas quimeras,
Dos anseios vãos!
Tu voas então...
— Jamais a esperança.
Sem movimento.
Ciência e paciência,
O suplício é lento.
Que venha a manhã,
Com brasas de satã,
O dever
É vosso ardor.
Ela foi encontrada!
Quem? A eternidade.
É o mar misturado
Ao sol.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Arthur Rimbaud
Poemas de Dezembro - Carlos Drummond de Andrade
Procuro uma alegria
uma mala vazia
do final de ano
e eis que tenho na mão
- flor do cotidiano -
é vôo de um pássaro
é uma canção.
Uma vez mais se constrói
a aérea casa da esperança
nela reluzem alfaias
de sonho e de amor: aliança.
Fazer da areia, terra e água uma canção
Depois, moldar de vento a flauta
que há de espalhar esta canção
Por fim tecer de amor lábios e dedos
que a flauta animarão
E a flauta, sem nada mais que puro som
envolverá o sonho da canção
por todo o sempre, neste mundo.
Quem me acode à cabeça e ao coração
neste fim de ano, entre alegria e dor?
Que sonho, que mistério, que oração?
Amor.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Carlos Drummond de Andrade
O relógio - Charles Baudelaire
Relógio! Divindade sinistra,
horrível, impassível,
Cujo dedo nos ameaça e nos
diz: Recorda!
As vibrantes dores no teu
coração cheio de terror
Cessarão brevemente como num
alvo;
O Prazer vaporoso fugirá para
o horizonte
Tal como uma sílfide para o
fundo do corredor;
Cada instante te devora um
pedaço da delícia
Acordada a cada homem para
toda a sua estância.
Três mil seiscentas vezes por
hora, o Segundo
Murmura: Recorda! Rápido, com
a sua voz
De insecto, agora diz: Eu sou
antanho,
E eu bombeei a tua vida com a
minha tromba imunda!
Remember! Recorda! Pródigo!
Esto memor!
(A minha garganta de metal
fala todas as línguas.)
Os minutos, morte
brincalhona, são gangas
Que não se podem deixar sem
extrair o ouro!
Recorda! Que o tempo é um jogador
ávido
Que ganha sem batota! A todo
o custo! É a lei.
O dia declina; a noite
aumenta: Recorda!
O abismo tem sempre sede; a
clepsidra se esvazia.
Logo soará a hora em que o
Divino Azar,
Onde a augusta Virtude, a tua
esposa ainda virgem,
Onde o Arrependimento (oh, o
último refúgio!)
Onde tudo te dirá: Morre,
velho fraco! É muito tarde!
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Charles Baudelaire
As ondas - Sophia de Mello B. Andresen
As ondas quebravam uma a uma
Eu estava só com a areia e com a espuma
Do mar que cantava só para mim.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Sophia de Mello B. Andresen
Cantiga de Malazarte - Murilo Mendes
Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo,
ando debaixo da pele e sacudo os sonhos.
Não desprezo nada que tenha visto,
todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola.
Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos,
destelho as casas penduradas na terra,
tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando.
Desloco as consciências,
a rua estala com os meus passos,
e ando nos quatro cantos da vida.
Consolo o herói vagabundo, glorifico o soldado vencido,
não posso amar ninguém porque sou o amor,
tenho me surpreendido a cumprimentar os gatos
e a pedir desculpas ao mendigo.
Sou o espírito que assiste à Criação
e que bole em todas as almas que encontra.
Múltiplo, desarticulado, longe como o diabo.
Nada me fixa nos caminhos do mundo.
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Murilo Mendes
Herança - Cecília Meireles
Eu vim de infinitos caminhos,
e os meus sonhos choveram lúcido pranto
pelo chão.
Quando é que frutifica, nos caminhos infinitos,
essa vida, que era tão viva, tão fecunda,
porque vinha de um coração?
E os que vierem depois, pelos caminhos infinitos,
do pranto que caiu dos meus olhos passados,
que experiência, ou consolo, ou prêmio alcançarão?
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Cecília Meireles
O Maior Espetáculo da Terra - Elisa Lucinda
várias alturas ousadas alçam
muitas aves.
Algumas, riscando o mar
brincam de aeroporto e
decolam
nas ondas das águas e dos
ares.
Mas há asas e voar não é
perigo;
É mais que isso,
voar é no corpo do pássaro
uma forma de pensamento.
Poderia citar todos os
animais
e seus lugares de existir
e tudo seria admissível
na linha do seu ir e vir.
Mas o homem não.
Sem garantia, se equilibra
no fio do seu pensamento,
sem que tenha asas, voa,
e sem limite de aventura,
até da natureza caçoa.
Equilibrista,
se apodera dos seus sonhos
e de suas inesperadas iscas
e vai rebolando no bambolê
das pistas.
Elabora, passa o mundo em
revista,
mas seu conteúdo chora,
porque tem medo do risco.
O risco !
Logo o risco, meu Deus,
que é pai de tantas vitórias
sobre tantos reclames.
Bailarino do arame,
homem que se consome
no erro crasso da
mesquinharia,
da mentirosa segurança
de que o mundo é sempre reto
e as coisas, imutáveis,
certinhas
e sem alquimias.
Mas diante do susto da
mutante verdade,
se equilibra no andaime que
construiu
e que sem sua criativa
ousadia,
jamais existiria.
Trapezistas de trapézios
inusitados,
nos vemos na mão do destino
como se dele não fossemos
também autores.
Senhoras e senhores da
jornada
geramos no mundo nossa
ninhada
e com ela o nosso projeto,
nossa luta,
porém é certo que nos volta
com força bruta
o ordinário fato
de não pensarmos no que virá
depois do nosso simples ato.
Porque pertence ao homem a
habilidade
de ser sujeito transformador,
de realizar todo dia
o seu show de competência,
engolindo o fogo do orgulho,
se esquivando do atirador de
facas,
domando os problemas que
rugem
podando o pelos da Dona
Insegurança,
essa mulher barbada.
Mas, respeitável público,
o show não pode parar.
Às vezes dói viver,
às vezes dá preguiça de
continuar,
quando nos esquecemos
que somos os construtores
do tal arame onde andamos
quando nos esquecemos que
somos
o motorneiro, o piloto, o
barqueiro,
o motorista e o garoto que
gira o pião,
que chuta a bola, que mira o
gol,
que gira o leme, que conduz o
trem,
o diretor e o ator que
apresenta este espetáculo.
Poderoso é o homem com seus
esclarecimentos
sobre o evento vida,
poderosa é a vida
sobre o homem que não a tem
esclarecida.
Para o homem basta um dia.
Um dia de coragem.
Um dia de luz.
Uma atitude pode mudar
a qualidade do seu trabalho,
do seu cotidiano,
e da sua história.
O seu relógio pode ser o
tempo
que não desperdiça glórias,
liberto de auto-piedades,
com faróis que o projetem
para além das idades,
que o homem arquitete pilares
brindando à realidade
vindoura,
que a chuva de aplausos ou
vaias,
fertilizem novos frutos
seguindo a lógica da lavoura:
o que cresceu?
o que é que eu faço?
o que tenho que molhar
sempre?
o que é que eu levo?
o que é que eu passo?
Não disfarço:
O homem é o dono do homem
Deus é cúmplice
no livre arbítrio do
picadeiro
desse espaço.
Escolhe o alvo,
o salto
e os movimentos
no desprendimento que
precisará
para atirar-se
nos braços do outro,
na confiança no trapezista ao
lado.
Mágico, com surpresas únicas
na cartola,
com o suprimento
intransferível
de ser original e não simples
cópia,
reprodução,
papel carbono de mais um
animal,
em um segundo ele muda tudo.
De lenço para pombas,
de pequeno para colossal.
Acrobata,
dono do seu corpo no mundo
Malabarista,
com uma civilização de pratos
nas mãos e nos ares,
esse homem escolhe a fera:
pode levar ética ao circo ou
apodrecer preso,
como um mico, e sem ela.
Contorcionista,
se digladia
entre a angústia,
o medo,
a depressão,
a paralisia dos quais
só o seu talento o salvaria
e o salvará:
Ergue-se então este homem
flexível
e não mais adia.
Ao contrário,
se apropria de
seus reais valores,
suas oportunidades,
sua criatividade,
sua alegria.
Aqui está o homem:
ave rara de todos os céus,
soberano sujeito de suas
possibilidades,
criança sorridente,
domador de seus passos
e ao mesmo tempo palhaço
estendendo seus sublimes
braços,
tentáculos no universo,
sobre a lona dessa esfera,
para ser, se quiser,
o maior espetáculo da terra
Enviar por e-mailPostar no blog!Compartilhar no TwitterCompartilhar no FacebookCompartilhar com o Pinterest
Marcadores:
Elisa Lucinda
Assinar:
Postagens (Atom)