A lucidez perigosa - Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.

Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
-- já me aconteceu antes.

Pois sei que
-- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade
-- essa clareza de realidade
é um risco.

Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve
para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

Rudolf Serkin - Schubert, Piano Sonata in B flat

Serenidade - Henriqueta Lisboa

Há muito tempo, Vida, prometeste
trazer ao meu caminho uma doida alegria
feita de espírito e de chama,
uma alegria transbordante, assim como esse
alvo clarão que se irradia
da orla festiva das enseadas,
e entre reflexos de ouro se derrama
do cântaro das madrugadas.

Eu, que nasci para um destino manso
de coisas suaves, silenciosas, imprecisas,
e que fico tão bem neste obscuro remanso
onde apenas se infiltra um perfume de brisas,
imagino a tremer: que seria de mim
se essa alegria
esplêndida, algum dia,
houvesse surpreendido a minha inexperiência!...

A vida me iludiu, mas foi sábia na essência.

Minha alegria deveria ser assim:
Pequenina doçura delicada,
gota de orvalho em pétala de flor,
sempre serena lâmpada velada
que me diluísse as brumas do interior.

Sempre serena lâmpada velada,
símbolo do meu sonho predileto...
Se amanhã tu penderes do meu teto
aureolando minha última ilusão,
- para que eu viva em teu amor e em tua paz,
deixa um rastro de sombra pelo chão...
É nesta sombra que hei de me esconder
quando sentir a falta que me faz
a outra alegria que não pude ter!

Texto de Clarice Lispector por David Duarte

Clarice Lispector

Aniversário - Roseana Murray

Para o teu aniversário
o céu se arrumou inteiro:
estrelas escreveram teu nome,
cometas construíram um caminho
com poeira de luz
para que o teu destino,
carruagem carregada de sonhos,
pudesse passar.

Para o teu nascimento
os anjos inventaram palavras
nunca antes pronunciadas,
e os jardins secretos
fabricaram flores desconhecidas.

Para o teu nascimento
o universo inteiro
desfraldou suas velas.

Gênesis - Jorge de Sena

De mim não falo mais: não quero nada.
De Deus não falo: não tem outro abrigo.
Não falarei também do mundo antigo,
pois nasce e morre em cada madrugada.

Nem de existir, que é a vida atraiçoada,
para sentir o tempo andar comigo;
nem de viver, que é liberdade errada,
e foge todo o Amor quando o persigo.

Por mais justiça ... -- Ai quantos que eram novos
em vão a esperaram porque nunca a viram!
E a eternidade... Ó transfusâo dos povos!

Não há verdade: O mundo não a esconde.
Tudo se vê: só se não sabe aonde.
Mortais ou imortais, todos mentiram.

Neopelicano - Adélia Prado

Um dia,
como vira um navio
pra nunca mais esquecê-lo,
vi um leão de perto.
Repousava,
a anima bruta indivídua.
O cheiro forte, não doce,
cheiro de sangue a vinagre.
Exultava, pois não tinha palavras
e não tê-las prolongava-me o gozo:
é um leão!
Só um deus é assim, pensei.
Sobrepunha-se a ele
um outro animal
radiando na aura
de sua cor maturada.
Tem piedade de mim, rezei-lhe
premida de gratidão
por ser de novo pequena.
Durou um minuto a sobre-humana fé.
Falo com tremor:
eu não vi o leão,
eu vi o Senhor!

Poema Cântico Negro

Madredeus - Ao longe o mar

O Homem e o Mar - Charles Baudelaire

Homem livre, hás de sempre amar o mar,
O mar é teu espelho e contemplas a mágoa
Da alma no desdobrar infindo de sua água,
E nem teu ser é menos acre ao se abismar.

Apraz-te mergulhar em tua própria imagem;
O olhar o beija e o braço o abraça, e o coração
No seu próprio rumor encontra distração,
Ao ruído desta queixa indômita e selvagem.

Mas ambos sempre sois tenebrosos e discretos:
Homem, ninguém sondou teus fundos abismos,
Mar, ninguém viu jamais teus tesouros íntimos,
Porque muito sabeis guardá-los secretos!

Porém passados são séculos inumeráveis
Sem que remorso ou pena a vossa luta corte,
De tal modo quereis a crueldade e a morte,
Ó eternos rivais, ó irmãos implacáveis!

Inutilmente parecemos grandes - Fernando Pessoa / RicardoReis

O mar jaz; gemem em segredo os ventos
Em Eolo cativos;
Só com as pontas do tridente as vastas
Águas franze Netuno;
E a praia é alva e cheia de pequenos
Brilhos sob o sol claro.
Inutilmente parecemos grandes.
Nada, no alheio mundo,
Nossa vista grandeza reconhece
Ou com razão nos serve.
Se aqui de um manso mar meu fundo indício
Três ondas o apagam,
Que me fará o mar que na atra praia
Ecoa de Saturno?

Garcia Lorca

Garcia Lorca

A Federico Garcia Lorca - Branca Bakaj

Havia fumo no ar
e as aves gritavam

Federico...

Federico...

Iam ver de perto a cruel verdade,
ver demais a dura realidade

Federico...

Federico...

Frio medo fere o fraco Alonso
e do frágil medo,
a fria morte

Federico...

Federico...
Alaridos

gritos contidos

tiros ao longe

Federico...
Federico...

Triste Granada
coberta de flores
molhada de sangue...

Morreu o cantor dos gitanos
morreu o cantor da lua.

Esta vida - Guilherme de Almeida

Um sábio me dizia: esta existência,
não vale a angústia de viver. A ciência,
se fôssemos eternos, num transporte
de desespero inventaria a morte.
Uma célula orgânica aparece
no infinito do tempo. E vibra e cresce
e se desdobra e estala num segundo.
Homem, eis o que somos neste mundo.

Assim falou-me o sábio e eu comecei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um monge me dizia: ó mocidade,
és relâmpago ao pé da eternidade!
Pensa: o tempo anda sempre e não repousa;
esta vida não vale grande coisa.
Uma mulher que chora, um berço a um canto;
o riso, às vezes, quase sempre, um pranto.
Depois o mundo, a luta que intimida,
quadro círios acesos : eis a vida

Isto me disse o monge e eu continuei a ver
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Um pobre me dizia: para o pobre
a vida, é o pão e o andrajo vil que o cobre.
Deus, eu não creio nesta fantasia.
Deus me deu fome e sede a cada dia
mas nunca me deu pão, nem me deu água.
Deu-me a vergonha, a infâmia, a mágoa
de andar de porta em porta, esfarrapado.
Deu-me esta vida: um pão envenenado.

Assim falou-me o pobre e eu continuei a ver,
dentro da própria morte, o encanto de morrer.

Uma mulher me disse: vem comigo!
Fecha os olhos e sonha, meu amigo.
Sonha um lar, uma doce companheira
que queiras muito e que também te queira.
No telhado, um penacho de fumaça.
Cortinas muito brancas na vidraça
Um canário que canta na gaiola.
Que linda a vida lá por dentro rola!

Pela primeira vez eu comecei a ver,
dentro da própria vida, o encanto de viver.

Soneto do amor como um rio - Vinícius de Moraes

Este infinito amor de um ano faz
Que é maior que o tempo e do que tudo
Este amor que é real, e que, contudo
Eu já não cria que existisse mais.

Este amor que surgiu insuspeitado
E que dentro do drama fez-se em paz
Este amor que é o túmulo onde jaz
Meu corpo para sempre sepultado.

Este amor meu é como um rio; um rio
Noturno, interminável e tardio
A deslizar macio pelo ermo

E que em seu curso sideral me leva
Iluminado de paixão na treva
Para o espaço sem fim de um mar sem termo.

Poemas São como Vitrais Pintados - Goethe

Poemas são como vitrais pintados!
Se olharmos da praça para a igreja,
Tudo é escuro e sombrio;
E é assim que o Senhor Burguês os vê.
Ficará agastado? — Que lhe preste!...
E agastado fique toda a vida!

Mas — vamos! — vinde vós cá para dentro,
Saudai a sagrada capela!
De repente tudo é claro de cores:
Súbito brilham histórias e ornatos;
Sente-se um presságio neste esplendor nobre;
Isto, sim, que é pra vós, filhos de Deus!
Edificai-vos, regalai os olhos!

Toada - Emílio Moura

Minha infância está presente.
É como se fora alguém.
Tudo o que dói esta noite,
eu sei, é dela que vem.

Humorismo - Guilherme de Almeida

Sossego macio da tarde.
Um sol cansado
passa pelo rosto suado
uma nuvenzinha alva como um lenço
para enxugar as primeiras estrelas.
Silêncio.

E o sol vai caminhando sobre os montes tranqüilos
vai cochilando. E de repente
tropeça e cai redondamente
sob a pateada dos sapos e a vaia dos grilos.

Loreena McKennitt - The Highwayman

The Highwayman - H.C. Bailey

O vento era uma corrente da escuridão
entre as tempestuosas árvores.
A lua era um pálido galeão
lançado acima aos mares nublados
A estrada era uma tira do luar
sobre a terra roxa
E o ladrão de estradas vinha cavalgando
Cavalgando, cavalgando
O ladrão de estradas vinha cavalgando,
em direção ao velho albergue.

Ele usava um chapéu francês sobre a cabeça,
um lenço de seda em seu queixo
Um casaco de veludo vermelho e calções de couro de coelho
Eles adaptaram-se sem precisar de uma prega,
suas botas iam acima da coxa!
E ele cavalgava com brilho nos olhos ,
Com sua pistola sem brilho
Com o cabo de sua espada sem brilho, sob o céu brilhante.

Sobre a calçada ele se anunciou, e adentrou o pátio escuro
E ele bateu com seu chicote nas persianas,
porém elas estavam fechadas.
Ele assobiou uma melodia à janela,
e quem poderia estar esperando lá?
Senão a filha de olhos negros do senhorio,
Bess, a filha do senhorio
Com uma longa fita vermelha
prendendo seus longos cabelos pretos.

“Um beijo, minha bela adorada,
estarei atrás de uma recompensa essa noite
Mas eu devo estar de volta com o ouro amarelo antes do amanhecer
Se me seguirem de perto, ou me atormentem até o dia
Então procure-me no lua
Vigie por mim no luar
Eu virei te encontrar no luar,
mesmo que o inferno barre meu caminho.”

Ele subiu nos estribos, mal podia alcançar a mão dela
Porém ela desatou seu cabelo no batente!
A face dele queimou semelhante brasa
E a negra cascata de perfume chocou-se contra seu peito
E ele beijou as ondas no luar,
(Oh, doces ondas no luar!)
Então ele puxou na sua rédia no luar,
E galopou em direção ao oeste.

Ele não veio ao amanhecer; ele não veio ao meio dia
E ao fim do pôr-do-sol, antes do nascer da lua,
Quando a estrada era como uma faixa cigana,
amarrando a terra púrpura
Uma tropa com casacos vermelhos veio marchando
Marchando, marchando
Homens do Rei George vieram marchando
em direção ao velho albergue

Eles não disseram uma palavra ao senhorio
Ao invés disso beberam sua cerveja
Então amordaçaram sua filha
e amarraram-lhe aos pés de sua estreita cama
Dois deles ajoelharam-se ao lado da janela,
com seus mosquetes ao lado
Havia morte em todas as janelas
E o inferno em uma janela escura
Bess pode ver pela janela,
A estrada que ele iria cavalgar.

Eles atraíram sua atenção, com muitos risos sarcásticos;
Eles amarraram-na a um mosquete,
com o cano sob seu peito
“Agora vigie bem” E beijaram-na
Ela ouviu o homem morto dizer
"Então procure-me no luar
Vigie por mim no luar
Eu virei te encontrar no luar,
mesmo que o inferno barre meu caminho”

Ela torceu suas mãos amarradas,
mas os nós estavam muito fortes!
Ela retorceu suas mãos até seus dedos
ficarem molhados com suor e sangue
Eles esticaram e cansaram na escuridão
e as horas arrastaram como anos!
Até agora, na batida da meia-noite,
Fria, na batida da meia-noite,
A ponta de um tocou
O gatilho ao menos estava com ela!

Tlot-tlot! Eles teriam ouvido isso?
Os cascos dos cavalos soaram claros
Tlot-tlot, na distância!
Estavam surdos por não ouvirem?
Sob a linha do luar, além da fronte da colina,
O ladrão de estradas veio cavalgando,
Cavalgando, cavalgando!
Os casacos vermelhos olharam sua condição
Ela levantou-se séria e quieta.

Tlot no gélido silêncio! Tlot, na noite ecoante!
Mais perto ele vinha e mais perto!
A face dela era pura luz!
Seus olhos arregalaram-se por um instante!
Ela deu um último suspiro
Então seus dedos moveram-se no luar,
Sua mosquete despedaçou o luar,
Despedaçou o seu peito no luar
e prevenindo-no com sua morte.

Ele virou-se, ele cavalgou ao oeste;
não sabia que o que havia acontecido,
Curvada coma cabeça sobre o mosquete
Encharcada em seu próprio sangue vermelho!
Só no amanhecer ele ouviu falar disso,
sua face tornou-se pálida ao ouvir
Como Bess, a filha do senhorio
A filha de olhos negros do senhorio
Que vigiou por seu amor ao luar,
e morreu na escuridão deste lugar.

De volta ele cavalgou como um louco,
gritando uma maldição ao céu.
Com a estrada branca fumegante atrás dele
e brandindo sua espada aos céus
Vermelho sangue era a espora ao meio-dia dourado,
o vermelho vinho era seu casaco de veludo.
E foi atingido pelo tiro na estrada
Caido como um cão na estrada
Caído sobre o próprio sangue na estrada,
Com o lenço de seda na garganta.

Ainda em noites de inverno, dizem,
quando o vento bate em árvores
Quando a lua é um pálido galeão,
lançada acima aos mares nublados
Quando a estrada é uma tira do luar
sobre a terra roxa
Um ladrão de estradas vem cavalgando,
Cavalgando, cavalgando
Um ladrão de estradas vem cavalgando ,
em direção ao velho albergue.

Poema - Fernando Pessoa

O céu, azul de luz quieta,
As ondas brandas a quebrar,
Na praia lúcida e completa -
Pontos de dedos a brincar.

No piano anônimo da praia
Tocam nenhuma melodia
De cujo ritmo por fim saia
Todo o sentido deste dia.

Que bom, se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.

As Penas do Amor - William B. Yeats



Sobre os telhados a algazarra dos pardais,
Redonda e cheia a lua - e céu de mil estrelas,
E as folhas sempre a murmurar seus recitais,
Haviam esquecido o mundo e suas mazelas.

Então chegaram teus soturnos lábios rosas,
E junto a eles todas lágrimas da terra,
E o drama dos navios em águas tempestuosas
E o drama dos milhares de anos que ela encerra.

E agora, no telhado a guerra dos pardais,
A lua pálida, e no céu brancas estrelas,
De inquietas folhas, cantilenas sempre iguais,
Estão tremendo - sob o mundo e suas mazelas.

Caetano Veloso e Lila

Mundo grande - Carlos Drummond de Andrade


Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso freqüento os jornais, me exponho
cruamente nas livrarias: preciso de todos.

Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também na rua não cabem todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros,
carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.



Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma. Não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...

Epitáfio - Vinícius de Moraes

Aqui jaz o Sol
Que criou a aurora
E deu a luz ao dia
E apascentou a tarde

O mágico pastor
De mãos luminosas
Que fecundou as rosas
E as despetalou.

Aqui jaz o Sol
O andrógino meigo
E violento, que

Possuiu a forma
De todas as mulheres
E morreu no mar.

Algemas - Helena Kolody

Ergo para as estrelas minhas mãos fortes,
Sedentas de realizações.

Nalgum recanto escuro e subterrâneo,
Há mãos algemadas, pés que arrastam grilhões.

Uma angústia funda e estranha
Espia, como fera inquieta,
Pelas grades de ignoradas
Portas de prisões

Pelicano - Adélia Prado

Um dia vi um navio de perto.
Por muito tempo olhei-o
com a mesma gula sem pressa com que olho
Jonathan:
primeiro as unhas, os dedos, seus nós.
Eu amava o navio.
Oh! eu dizia. Ah, que coisa é um navio!
Ele balançava de leve
como os sedutores meneiam.
À volta de mim busquei pessoas:
olha, olha o navio
e dispus-me a falar do que não sabia
para que enfim tocasse
no onde o que não tem pés
caminha sobre a massa das águas.
Uma noite dessas, antes de me deitar
vi - como vi o navio - um sentimento.
Travada de interjeições, mutismos,
vocativos supremos balbuciei:
Ó Tu! e Ó Vós!
- a garganta doendo por chorar.
Me ocorreu que na escuridão da noite
eu estava poetizada,
um desejo supremo me queria.


Ó Misericórdia, eu disse
e pus minha boca no jorro daquele peito.
Ó amor, e me deixei afagar,
a visão esmaecendo-se,
lúcida, ilógica,
verdadeira como um navio.

Metafísica - Carlos Nejar

Não busco a hierarquia
entre a terra e o húmus:
prefiro a transcendência
do vento,
cumprindo-se apenas,
sem dividendos
no pensamento.

Para mim
floresce
a teoria de viver.
Os momentos são inteiros
na casa dos arreios.

O tempo, Deus, a alma
couberam
nos meus cadernos de escola.
Cresci
e Deus se transformou
na religião de estar aqui,
na relação
há muito consentida
de andar rente ao chão
junto às árvores, o ar,
sem alvará
para morar na vida.

Aurora - Roseana Murray

O milagre da noite
se abrindo em manhã
soltando o jorro preso da luz
soltando os pássaros as nuvens claras
as cores todas
e o cheiro bom do café.

À boca da noite - Emílio Moura

Não olhes: é a noite
completa que tomba.

Não olhes: é a estrada
que, súbito, acaba.

Não olhes: é o anjo,
teu anjo que chora.

Não olhes.

Os Dois Horizontes - Machado de Assis

Dois horizonte fecham nossa vida:

Um horizonte, — a saudade
Do que não há de voltar;
Outro horizonte, — a esperança
Dos tempos que hão de chegar;
No presente, — sempre escuro, —
Vive a alma ambiciosa
Na ilusão voluptuosa
Do passado e do futuro.

Os doces brincos da infância
Sob as asas maternais,
O voo das andorinhas,
A onda viva e os rosais.
O gozo do amor, sonhado
Num olhar profundo e ardente,
Tal é na hora presente
O horizonte do passado.

Ou ambição de grandeza
Que no espírito calou,
Desejo de amor sincero
Que o coração não gozou;
Ou um viver calmo e puro
À alma convalescente,
Tal é na hora presente
O horizonte do futuro.

No breve correr dos dias
Sob o azul do céu, — tais são
Limites no mar da vida:
Saudade ou aspiração;
Ao nosso espírito ardente,
Na avidez do bem sonhado,
Nunca o presente é passado,
Nunca o futuro é presente.

Que cismas, homem? — Perdido
No mar das recordações,
Escuto um eco sentido
Das passadas ilusões.
Que buscas, homem? — Procuro,
Através da imensidade,
Ler a doce realidade
Das ilusões do futuro.

Dois horizontes fecham nossa vida.

Retrato de mulher triste - Cecília Meireles

Vestiu-se para um baile que não há.
Sentou-se com suas últimas jóias.
E olha para o lado, imóvel.

Está vendo os salões que se acabaram,
embala-se em valsas que não dançou,
levemente sorri para um homem.
O homem que não existiu.

Se alguém lhe disser que sonha,
levantará com desdém o arco das sobrancelhas,
Pois jamais se viveu com tanta plenitude.

Mas para falar de sua vida
tem de abaixar as quase infantis pestanas,
e esperar que se apaguem duas infinitas lágrimas.

Cenário de infância - Emílio Moura

Sombra de troncos e exílio nos olhos parados,
molhados.

O banzo sorrindo, chorando na noite,
cantando na noite,
e a noite sonora de banzo.

(E as amplas campinas estereotipando o irremediável exílio...)

Nas noites sem lua,
os sacis iam espiar os quilombos envenenados,
- gritinhos e falas vegetais no silêncio encharcado das lianas –
e voltava pulando com tições acesos pelas chapadas.

Flecha de Sol - Helena Kolody

A flecha de sol
pinta estrelas na vidraça.
Despede-se o dia.

Estação de Maio - Adélia Prado

A salvação opera nos abismos.
Na estaçào indescritível,
o gênio mau da noite me forçava
com saudade e desgosto pelo mundo.
A relva estremecia
mas não era pra mim,
nem os pássaros da tarde.
Cães, crianças, ladridos,
despossuíam-me.
Então rezei: salva-me, Mãe de Deus,
antes do tentador com seus enganos.
A senhora está perdida?
Disse o menino,
é por aqui.
Voltei-me
e reconheci as pedras da manhã.

John Lennon - Woman

Ferreira Gullar

Estou na caridade da evolução do meu ser.
Quero ser menina, encontro-me mulher...
Quero ser mulher, vejo-me menina...

A Mulher Inspiradora - Rabindranath Tagore

Mulher, não és só obra de Deus;
os homens vão-te criando eternamente
com a formosura dos seus corações,
e os seus anseios
vestiram de glória a tua juventude.

Por ti o poeta vai tecendo
a sua imaginária tela de oiro:
o pintor dá às tuas formas,
dia após dia,
nova imortalidade.

Para te adornar, para te vestir,
para tornar-te mais preciosa,
o mar traz as suas pérolas,
a terra o seu oiro,
sua flor os jardins do Verão.

Mulher, és meio mulher,
meio sonho.

Infinitamente Mulher... - Gérson Severo



Água, Terra
Semente, Ventania
Estrela, Fortaleza
Asas, Alquimia
Liberdade...
Tristeza...
Alegria...
Mulher Poesia
Negra
Branca
Camponesa e Índia...
Mulher Amiga
Amante
Mãe
Vida...
Fonte Infinita...

Com licença poética - Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta,
anunciou: vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem, sem precisar mentir.
Não sou feia que não possa me casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza
e ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos - dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria, sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição pra homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

Enya - Watermark

Água azul - José Saramago

Altos segredos escondem dentro de água
O reverso da carne, corpo ainda.
Como um punho fechado ou um bastão,
Abro o líquido azul, a espuma branca,
E por fundos de areia e madrepérola,
Desço o véu sobre os olhos assombrados.

( Na medida do gesto, a largueza do mar
E a concha do suspiro que se enrola.)

Vem a onda de longe, e foi um espasmo,
Vem o salto na pedra, outro grito:
Depois a água azul desvenda as milhas,
Enquanto um longe, e longo, e branco peixe
Desce ao fundo do mar onde nascem as ilhas.


Canção de Vidro - Mário Quintana

E nada vibrou...
Não se ouviu nada...
Nada...

Mas o cristal
nunca mais deu o mesmo som.

Cala, amigo...
Cuidado, amiga...
Uma
palavra só
Pode tudo perder para sempre...

E é tão puro o
silêncio agora!

Caio Fernando Abreu

No meio do rio, eu via a pedra.
A única naquela extensão azul de água,
o pico negro erguido em inesperada fragilidade na solidão.
Eu não tinha instrumentos para caminhar até ela, a pedra,
tomá-la nos braços,
por um instante debruçar minha ternura
sobre seu isolamento
num absurdo desejo que em sua insensibilidade de coisa
ela se fizesse sensível e, assim suavizada,
contivesse o desespero amparando-se em mim.

Por que ela se perdia assim
e assim se assumia e se cumpria em pedra,
dona de si mesma, dispensando qualquer afeto,
qualquer comunicação?
Ela se bastava.

Parecia já ter ido além da própria estrutura
num lento inventariar do mundo ao redor,
como se seu pico tivesse olhos e esses olhos
projetassem indagações em torno, avançando nas descobertas,
constatações se fazendo certezas.

E como se seu isolamento fosse deliberado,
como se já não acreditasse em mais nada
e tivesse escolhido o amparo apenas das águas,
a precária proteção do azul _ como se tivesse escolhido o vento,
a erosão, os vermes, os musgos que a roíam devagar.
Assim, da mesma forma como outros escolhem o apoio das pessoas
ou a nudez do campo, ela escolhera o desafio da entrega.
O despojamento de ser, insolucionada e completa em suas fronteiras:
pedra porque pedra fora, era e seria num sempre que a sustentava,
frágil e absoluta.

Narciso e o Caracol - Cecília Meireles

Rodai o zodíaco,
fazei girar a rosa-dos-ventos,
sacudi a ampulheta,
gastai calendários,
despojai primaveras e enfeitai outonos,
matai luas e ressuscitai luas,
trazei pessoas,
levai fantasmas,
descei e subi rios,
atravessai a terra em longo e largo,
levantai cidades e castelos de cartas,
misturai as flores dos caleidoscópios,
fechai os olhos,
abri e fechai janelas,
portas,
palavras...
Jogai para longe os vossos sapatos com a poeira de tanto andar,
e os vossos lenços com lágrimas de tanto adeus.


Navio fantasma - Arthur Rimbaud


E desde então no Poema do Mar mergulhei,
Cheio de astros, latescentes, devorando
Os verdes céus, onde às vezes se vê,
Lívido e feliz, um sonhador boiando.

Onde tingindo de repente o infinito, delírios
E ritmos lentos sob o dia em esplendor
Mais fortes que o álcool, mais vastos que nossas liras,
Fermentam as sardas amargas do amor!

Sei dos céus rasgando-se em raios, e das trombas,
Das ressacas e da noite e das correntes,
Da Alba exaltada igual a um bando de pombas,
E o que o homem acreditou ver viram meus olhos videntes!

Haydn - Symphony No. 22

Libertação - José Régio

Menino doido, olhei em roda e vi-me
fechado e só na grande sala escura.
(Abrir a porta, além de ser um crime,
Era impossível para a minha altura...)

Como passar o tempo?...E diverti-me
Desta maneira trágica e segura:
Pegando em mim, resguei-me, abri, parti-me,
Desfiz trapos, arames, serradura...

Ah menino histérico e precoce!
Tu, sim!, que tens mãos trágicas de posse,
E tens a inquietação da Descoberta!

O menino, por fim, tombou cansado;
O seu boneco aí jaz esfarelado...
e eu acho, nem sei como, a porta aberta!

A Serenata - Adélia Prado

Uma noite de lua pálida e gerânios
ele viria com boca e mãos incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
— só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?

Cantata de paz - Sophia de Mello B. Andresen

Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar
Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar

Vemos, ouvimos e lemos
Relatórios da fome
O caminho da injustiça
A linguagem do terror

A bomba de Hiroshima
Vergonha de nós todos
Reduziu a cinzas
A carne das crianças

D'África e Vietname
Sobe a lamentação
Dos povos destruídos
Dos povos destroçados

Nada pode apagar
O concerto dos gritos
O nosso tempo é
Pecado organizado.

Cenário - Cecília Meireles

Eis a estrada, eis a ponte, eis a montanha
sobre a qual se recorta a igreja branca.

Eis o cavalo pela verde encosta.
Eis a soleira, o pátio e a mesma porta.

E a direção do olhar. E o espaço antigo
para a forma do gesto e do vestido.

E o lugar da esperança. E a fonte. E a sombra.
E a voz que já não fala, e se prolonga.

E eis a névoa que chega, envolve a ruas,
move a ilusão de tempos e figuras.

– A névoa que se adensa e vai formando
nublados reinos de saudade e pranto.