LXIII - Hilda Hilst


 Tens a medida do imenso?
Contas o infinito?
E quantas gotas de sangue
Pretendes
Desta amorosa ferida
De tão dilatada fome.

Tens a medida do sonho?
Tens o número do Tempo?
Como hei de saber do extenso
De um ódio-amor que percorre
Furioso
Passadas dentro do vento?

Sabes ainda meu nome?
Fome. De mim na tua vida.


Tem palavras - Vera Lúcia de Oliveira

tem palavras que têm cicatrizes
a palavra apego, a palavra parto
a palavra tempo
dentro elas são de madeira
dentro elas se impregnam
quando a chuva bate na janela
penetra os poros

Distância - Guimarães Rosa

Um cavaleiro e um cachorro
viajam para a paisagem.
Conseguiram que esse morro
não lhes barrasse a passagem.
Conseguiram um riacho
com seus goles, com sua margem.
Conseguiram boa sede.
Constataram:
cai a tarde.

Sobre a tarde, cai a noite,
sobre a noite a madrugada.
Imagino o cavaleiro
esta orvalhada e estrelada.
O pensar do cavaleiro
talvez o amar, ou nem nada.
Imagino o cachorrinho
imaginário na estrada.
Caía a tarde.

Para a tarde o cavaleiro
ia, conforme avistado.
Após, também o cachorro.
Todos – iam, de bom grado,
à tarde do cavaleiro
do cachorro, do outro lado
- que na tarde se perderam,
no morro, no ar, no contato.
Caiu a tarde.


Cinema - Guilherme de Almeida

Na grande sala escura,
só teus olhos existem para os meus:
olhos cor de romance e de aventura,
longos como um adeus.

Só teus olhos: nenhuma
atitude, nenhum traço, nenhum
gesto persiste sob o vácuo de uma
grande sombra comum.

E os teus olhos de opala,
exagerados na penumbra, são
para os meus olhos soltos pela sala,
uma dupla obsessão.

Um cordão de silhuetas
escapa desses olhos que, afinal,
são dois carvões pondo figuras pretas
sobre um muro de cal.

E uma gente esquisita,
em torno deles, como de dois sóis,
é um sistema de estrelas que gravita:
— são bandidos e heróis;

são lágrimas e risos;
são mulheres, com lábios de bombons;
bobos gordos, alegres como guizos;
homens maus e homens bons...

É a vida, a grande vida
que um deus artificial gera e conduz
num mundo branco e preto, e que trepida
nos seus dedos de luz...



Fuga - Pedro Homem de Mello


O músico procura
Fixar em cada verso
O cântico disperso
Na luz, na água e no vento.

Porém, luz, vento e água
Variam riso e mágoa,
De momento a momento.


E em vão a área dos dedos
Se eleva! Não traduz
Os súbitos segredos
Escondidos no vento,
Nas águas e na luz...


A chuva lenta - Gabriela Mistral


Esta água medrosa e triste,
como criança que padece,
antes de tocar a terra,
         desfalece.

 Quietos a árvore e o vento,
e no silêncio estupendo,
este fino pranto amargo,
         vertendo!

 Todo o céu é um coração
aberto em agro tormento.
Não chove: é um sangrar longo
         e lento.

Dentro das casas, os homens
não sentem esta amargura,
este envio de água triste
         da altura;

este longo e fatigante
descer de água vencida,
por sobre a terra que jaz
         transida.

 Em baixando a água inerte,
calada como eu suponho
que sejam os vultos leves
         de um sonho.

Chove... e como chacal lento
a noite espreita na serra.
Que irá surgir na sombra
         da Terra?

 Dormireis, quando lá foram
sofrendo, esta água inerte
e letal, irmã da Morte
         se verte?



Fogo - Olga Savary


Dar-me toda este verão
urdideiros de rio, é ser
serpente de prata. Verão,
foi feita mais uma vítima
Sou um ser marcado, natureza.
A tarde crava em meu magma
o selo de sua secreta pata.


Uma flauta toca - Tu Fu


Múrmura brisa
me traz o som
da flauta clara
lá na montanha enluarada.

Onde haverá
flauta tocada
no coração
que me retorne
ao lar?

De brisa o som
enche-me as salas
tal como o luar
cobre as montanhas
e os vales.

Noite como esta
as hordas bárbaras
no Norte entraram.
E a melodia
me acompanhava
na longa via
em que fugia
até o Sul.

Quando o salgueiro
os ramos pende
na noite fria
nus.

No triste inverno,
como esperar
pelo milagre
de lhe nascerem
folhas?


As muralhas da noite - João Maimona


A mão ia para as costas da madrugada.
As mulheres estendiam as janelas da alegria
nos ouvidos onde não se apagavam as alegrias.

Entre os dentes do mar acendiam-se braços.

Os dias namoravam sob a barca do espelho.
Havia uma chuva de barcos enquanto o dia tossia.
E da chuva de barcos chegavam colchões,
camas, cadeiras, manadas de estradas perdidas
onde cantavam soldados de capacetes
por pintar no coração da meia-noite.

Eram os barcos que guardavam as muralhas
da noite que a mão ouvia nas costas
da madrugada entre os dentes do mar.


Pablo Neruda

Foi nessa idade 
que a poesia me veio buscar
 Não sei de onde veio
 Do inverno, de um rio
 Não sei como nem quando
 Não, não eram vozes
 Não eram palavras
 Nem silêncio
 Mas da rua fui convocado
 Dos galhos da noite
 Abruptamente entre outros
 Entre fogos violentos
 Voltando sozinho
 Lá estava eu sem rosto
 E fui tocado.


Noturno - Antero de Quental


Espírito que passas, quando o vento
Adormece no mar e surge a Lua,
Filho esquivo da noite que flutua,
Tu só entendes bem o meu tormento...

Como um canto longínquo - triste e lento-
Que voga e sutilmente se insinua,
Sobre o meu coração que tumultua,
Tu vestes pouco a pouco o esquecimento...

A ti confio o sonho em que me leva
Um instinto de luz, rompendo a treva,
Buscando. entre visões, o eterno Bem.

E tu entendes o meu mal sem nome,
A febre de Ideal, que me consome,
Tu só, Gênio da Noite, e mais ninguém!



Tristeza das mãos - Helena Kolody


Choram em silêncio a dor de envelhecer.

Foram um dia a graça inocente
De um berço num lar.

Pálidas mãos, sulcadas de renúncias!

Foram jovens e belas,
Confiantes em si mesmas, todo-poderosas.

Tímidas mãos que se apagam na sombra!

Mãos feitas de luz, intrépidas e leais,
Solícitas e compreensivas,
Ternas mãos maternais.

Velhas mãos solitárias,
Como dói recordar!



Sonho de Herói - Murilo Araújo


Com um galho de bambu verde
e dois ramos de palmeira
eu hei de fazer um dia o meu cavalo – com asas!
Subirei nele, com vento, lá bem alto,
de carreira,
por sobre o arvoredo e as casas.

Voarei, roçando o mato,
as copas em flor das árvores,
como se cruzasse o mar…
e até sobre o mar de fato
passarei nas nuvens pálidas
muito acima das montanhas, das cidades, das cachoeiras,
mais alto que a chuva, no ar!

E irei às estrelas,
ilhas dos rios de além,
ilhas de pedras divinas,
de ribeiras diamantinas
com palmas, conchas, coquinhos nas suas praias também…
praias de pérola e de ouro
onde nunca foi ninguém…



Todo dia ouço o rumor das águas - James Joyce


Todo dia ouço o rumor das águas
Em lamento,
Graves como a gaivota, indo
Só, no vento
Que grita ao mar em seu moroso
Movimento.

No vento frio, no vento escuro
Vou-me à toa.
Escuto o manancial que lá do
Fundo escoa.
Dia e noite, escuto-o - indo, vindo,
Ele escoa.


Poemas da Ciência de Voar - Eduardo White


Uma mão relampeja na casa da escrita.
Faísca Troveja.
Procura um claro instante para a aparição.

Pode-se vê-la correr pelo dorso do papel,
deitada do seu lado ou do seu modo rastejante,
pode-se vê-la provando o ruminante delírio das palavras,
a sua rasante arrumação,
e leva vozes aquela mão em cada delicada passagem,
rítmica, latejante
ou um nervo animal que faz lembrar
a textura pedestre do papel.
Mas a mão voa, explosiva,
e não cai nem agoniza no espaço vibrante onde se comunica.

Voar é um fervoroso recolhimento.
E no que é quase a medida elementar do esquecimento
a escrita navega
num estuário de silêncio.
Escrever é uma droga antiga,
uma bebedeira que queima com lentidão
a cabeça,
traz as luzes desde as vísceras,
o sangue a ferver nas vias tubulantes,
traz a natureza estimulante das paisagens
que temos dentro.”

...

Ocorre-me agora
a pupila minúscula de uma criança.
A sua engenharia
desde o corpo na guerreira pequenez
ao dedo provador da boca.
Ocorre-me esta criança
este monge da franqueza em seu templo de inocência.
Amo-a. Vivo-a.

Voar é poder amar uma criança.
Sonhar-lhe o peso no colo, as mãos acariciantes
sobre a palma da alma.

Voar é tardar a boca
na rosa do rosto de uma criança.
Pronunciar-lhe a ternura,
a seda fresca e pura
da sua infância.

Voar é adormecer o homem
na mão sonhadora
de uma criança.



Manoel de Barros


Manoel de Barros

Morre o poeta Manoel de Barros. 


Ando muito completo de vazios.
Meu órgão de morrer me predomina.
Estou sem eternidades.

Não posso mais saber quando amanheço ontem.
Está rengo de mim o amanhecer.
Ouço o tamanho oblíquo de uma folha.
Atrás do ocaso fervem os insetos.
Enfiei o que pude dentro de um grilo 
o meu destino.
Essas coisas me mudam para cisco.
A minha independência tem algemas.


Soneto 94 - William Shakespeare


Aqueles que têm o poder de ferir e nada farão,
Que não fazem o que demonstram,
Que ao impelir outros, são como pedra,
Imóveis, frios, e imunes à tentação –

E por direito caem nas graças divinas,
E herdam da natureza as riquezas de seu custo;
Eles são os senhores e donos de si mesmos,
Os outros, apenas os servos de sua excelência.

A flor do verão é doce para a estação,
Embora para si mesma apenas viva e feneça;
Mas se essa flor for ferida em sua essência,

A erva daninha mais singela arrancará a sua honra;
Pois o mais doce se torna amargo por seus feitos;
Lírios mais fétidos do que as ervas daninhas.