Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)

Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.
São — tictac visível — quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela directamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!

Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.

Quem serás? Doente, moedeiro falso, insone simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.
Sobre o parapeito da janela da traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira onde agarro,
Debruço-me para o infinito e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita...
Tem graça: não tens luz eléctrica.
Ó candeeiros de petróleo da minha infância perdida!


Canto de Muro - Fernando Py

Num canto de muro
o garoto chorava
num canto de muro
a Terra findava
num canto de muro
a noite pousava
crepúsculo sujo
de rua asfaltada.

Num canto de muro
nem Deus se encontrava
num canto de muro
blasfêmia gravada
num canto de muro
o diabo urinava
no chão sem futuro
da terra ensombrada.

Num canto de muro
o sol desmaiava
e a noite tranquila
o solo ocupava
— a posse, tão fria
(terreno tão duro)
teu ângulo diedro,
parede, rachado.

Num canto de muro
esquina forçada
o mundo vivia
e o mundo acabava.
Num canto de muro
a sombra vazia
prepara o futuro
da nova cidade.

O evento terno - Cyro de Mattos



Sentido não haveria
Do aroma sem o canto.
A aderência perfeita
Toca o mistério,
A natureza se impõe
Na luz deste céu sonoro.
Na nervura da pétala,
Tremor translúcido,
O pássaro tece e acontece.




Solidão - Emílio Moura


Que fazer comigo,
com tanto sonho, tanto,
se há lágrima e espanto
na noite sem ti?

Que fazer comigo
com tanta esperança,
se a noite tão mansa
não te traz a mim?

Que fazer comigo
se a estrela mais linda
desta noite ainda
não brilhou no céu?

Que fazer com tanta
vida, neste instante,
se estás tão distante
que anoiteceu?


Esses inquietos ventos - Mário Quintana


Esses inquietos ventos andarilhos
Passam e dizem: “Vamos caminhar.
Nós conhecemos misteriosos trilhos,
Bosques antigos onde é bom cismar...

E há tantas virgens a sonhar idílios!
E tu não vieste, sob a paz lunar
Beijar os seus entrefechados cílios
E as dolorosas bocas a ofegar...”

Os ventos vêm e batem-me a janela:
“A tua vida: Que fizeste dela?”
E chaga a morte: “Anda! Vem dormir...

Faz tanto frio...e é tão macia a cama...”
Mas toda a longa noite ainda hei de ouvir
A inquieta voz dos ventos que me chama!...



Versos soltos no mar - Vinícius de Moraes



1

O ritmo, mar, o ritmo, o verso, o verso!

2

Dá ao meu verso, mar, a ligeireza,
a graça de teu ritmo renovado.

3

Eu sou, mar, tu bem sabes, teu discípulo.
Que nunca digas, mar, que não foste meu mestre

4

Cantam em mim, ó mestre mar, metendo-se
pelos largos canais que há nos meus ossos,
das tuas que são como ondas mestras,
que a ti voltam de novo num unido,
só e mesclado mar de minha boca
Gil Vicente, Machado, [ ... ]
Baudelaire, Juan Ramon, Rubén Darío,
Pedro Espinosa, Góngora... e as fontes
que em minha aldeia cantam pelas praças.


5
Sento-me, mar, a ouvir-te
Te sentarias tu, mar, para escutar-me?

6

Tens a vaidade, o desmedido orgulho
de saber que meus versos são sempre em teu louvor.

7

Vais largando, praia, terra que te susteve.

8

Nada em teu coração, nada em teu ventre.

9

Equivocado, o mar solta uma andorinha.

10

Rompe o mar tamarindos pela espuma.

11

Guano marinheiro: "venta" de humilde mar "varado".
"Venta" de pobres ventos,
de modestos crepúsculos,
de albas arruinadas.

12

Preamar silencioso de meus mortos.
Ellos, quizás, los que os están limando,
Eles, talvez, os que vos vão limando
ruivas rochas distantes.


13
Se te escutasses, mar, se tua linguagem
pudesse, mar, ser outra,
que palavras dirias?

14

De qualquer modo, mar, soas o mesmo
e continuas parecendo com teu velho retrato.

15

Mar; às vezes, sentado não se sabe em que assento.

16

Vê-se que, mesmo querendo,
mar forçudo, não podes.

17

Aqui jaz o mar. Nem ele mesmo
soube jamais o número de ondas
que desfez o seu sonho.

18

Aqui jaz o mar. Gostaria
de ter sido marinheiro, desde menino.

19

Aqui jaz o mar. Ninguém teve,
como ele, um caixão
pregado com estrelas.

20

Aqui jaz o mar. A morte
sentada ereta, na praia, a contemplá-lo.

21

Aqui jaz o mar. Devesse
jazer também o céu sobre seu túmulo.

22

O mar morreu. Não tinha
para o amor mais força que a de um menino.

23

Quem seria, mar, capaz de escrever-te o epitáfio?


24
Quero, mar, que em meu dia,
que resta, hoje mesmo
morras tu também.

25

Cada manhã e o mar fecha os dentes.

26

Hoje, mar, amanheceste com mais meninos que ondas.

27

Sim, mar, eu sei, tu és para mim a outra margem.

28

Mas me disseste, mar, mar
mar do colégio, mar dos telhados
que outras praias tuas, tão distantes,
ia eu chorar, sedado, mar, por ti,
mar do colégio, mar dos telhados.

29

Decerto te botei, mar guri, em minha frente
e ali foste crescendo em ondulagem
até que te fizeste mulher
e homem ao mesmo tempo.

30

Menino, eu queria patinar em tuas ondas,
mar do Sul, impossível ao coração de gelo.

31

Menino mar, não sabes?
ele te pintava sempre a aquarela.

32

Sábado o mar solta um cavalo branco...
e deixaste dormindo.

33

És de súbito, igual a uma criada
velha, gruñona e doce, que tinha minha mãe

34

A areia, quente
Geladas as ondas.
Os que morreram
Maruja, vão te chamar.

35

Ferozes leões.
Furiosos cavalos.
Mas se são de espuma
Quem pode domá-los?

36

Inclinei-me para ver o mar. E vi apenas
uma mulher chorando
contra o quarto minguante de uma lua crescente.

37

Mar, andei à tua procura
esse imortal sorriso...
porém não o encontrei.

38

Rico, até mesmo sem ver, de suspiros mortos.

39

Saíste de ti mesmo, levando contigo a praia...
mas te horrorizaste de ti mesmo, e voltaste.



40

Que estás pensando, mar dos veranistas?

41

Tu gostarias, mar, de andar de bicicleta,
dar um grande passeio pelas namblas
alugar uma barraca verde
e "cumbar-te" na praia
como um mar qualquer
descansando do banho?


Velha chácara - Manuel Bandeira



A casa era por aqui...
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.

Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinqüenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida... nos desenganos...)

A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa...

- Mas o menino ainda existe.


Amanhecer - José Saramago


Navego no cristal da madrugada,
Na dureza do frio reflectido,
Onde a voz ensurdece, laminada,
Sob o peso da noite e do gemido.

Abre o cristal em nuvem desmaiada,
Foge a sombra, o silêncio e o sentido
Da nocturna memória sufocada
Pelo murmúrio do dia amanhecido.


Ryuichi Sakamoto - Forbidden Colours

Essas Coisas - Carlos Drummond de Andrade


"Você não está mais na idade
de sofrer por essas coisas."

Há então a idade de sofrer
e a de não sofrer mais
por essas, essas coisas?

As coisas só deviam acontecer
para fazer sofrer
na idade própria de sofrer?

Ou não se devia sofrer
pelas coisas que causam sofrimento
pois vieram fora de hora, e a hora é calma?

E se não estou mais na idade de sofrer
é porque estou morto, e morto
é a idade de não sentir as coisas, essas coisas? 


Tarde - Vinícius de Moraes


Na hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas
Meu espírito te sentiu.
Ele te sentiu imensamente triste
Imensamente sem Deus
Na tragédia da carne desfeita.
Ele te quis, hora sem tempo
porque tu eras a sua imagem,
Sem Deus e sem tempo.
Ele te amou
E te plasmou na visão da manhã e do dia
Na visão de todas as horas
Ó hora dolorosa e roxa das emoções silenciosas.


A pombinha da mata - Cecília Meireles


Três meninos na mata ouviram
uma pombinha gemer.

"Eu acho que ela está com fome",
disse o primeiro,
"e não tem nada para comer."

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha carpir.

"Eu acho que ela ficou presa",
disse o segundo,
"e não sabe como fugir."

Três meninos na mata ouviram
uma pombinha gemer.

"Eu acho que ela está com saudade",
disse o terceiro,
"e com certeza vai morrer."


Dois e dois: quatro - Ferreira Gullar


Como dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena
embora o pão seja caro
e a liberdade pequena

Como teus olhos são claros
e a tua pele, morena
como é azul o oceano
e a lagoa, serena

como um tempo de alegria
por trás do terror me acena

e a noite carrega o dia
no seu colo de açucena

- sei que dois e dois são quatro
sei que a vida vale a pena

mesmo que o pão seja caro
e a liberdade, pequena.


Pranto Para Comover Jonathan - Adélia Prado


Os diamantes são indestrutíveis?
Mais é meu amor.
O mar é imenso?
Meu amor é maior,
mais belo sem ornamentos
do que um campo de flores.
Mais triste do que a morte,
mais desesperançado
do que a onda batendo no rochedo,
mais tenaz que o rochedo.
Ama e nem sabe mais o que ama.


Recado - Roseana Murray


Ao vento da noite sussurro
sete segredos; tudo que
tenho por fora tudo que tenho
por dentro, que o vento vá levando
minha sede de amor, pule cerca
pule sebes abra porteiras no mar
derramando meu recado nos quatro
cantos do ar...


Aos deuses sem fiéis - Saramago


Talvez a hora escura, a chuva lenta,
Ou esta solidão inconformada.

Talvez porque a vontade se recolha
Neste findar de tarde sem remédio.

Finjo no chão as marcas dos joelhos
E desenho o meu vulto em penitente.

Aos deuses sem fiéis invoco e rezo,
E pergunto a que venho e o que sou.

Ouvem-me calados os deuses e prudentes,
Sem um gesto de paz ou de recusa.

Entre as mãos vagarosas vão passando
A joeira do tempo irrecusável.

Um sorriso, por fim, passa furtivo
Nos seus rostos de fumo e de poeira.

Entre os lábios ressecos brilham dentes
De rilhar carne humana desgastados.

Nada mais que o sorriso retribui
O corpo ajoelhado em que não estou.

Anoitece de todo, os deuses mordem,
Com seus dentes de névoa e de bolor,
A resposta que aos lábios não chegou.


Joshua Radin - What If You

Tumulto - Cecília Meireles

Tempestade... O desgrenhamento
das ramagens... O choro vão
da água triste, do longo vento,
vem morrer-me no coração.

A água triste cai como um sonho,
sonho velho que se esqueceu...
( Quando virás, ó meu tristonho
Poeta, ó doce troveiro meu!...)

E minha alma, sem luz nem tenda,
passa errante, na noite má,
à procura de quem me entenda
e de quem me consolará...


Dois meninos - Francisco Bugalho

Meu menino canta, canta
Uma canção que é ele só que entende
E que o faz sorrir.

Meu menino tem nos olhos os mistérios
Dum mundo que ele vê e que eu não vejo
Mas de que tenho saudades infinitas.

As cinco pedrinhas são mundos na mão.
Formigas que passam,
Se brinca no chão,
São seres irreais...

Meu menino d'olhos verdes como as águas
Não sabe falar,
Mas sabe fazer arabescos de sons
Que têm poesia.

Meu menino ama os cães,
Os gatos, as aves e os galos,
(São Francisco de Assis
Em menino pequeno)
E fica horas sem fim,
Enlevado, a olhá-los.

E ao vê-lo brincar, no chão sentadinho,
Eu tenho saudades, saudades, saudades
Dum outro menino...



Fala - Orides Fontela

Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.

Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.

Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.

Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

 (Toda palavra é crueldade)