A miragem do caminho - Helena Kolody


Perdeu-se em nada,
caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.

(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho).



Vento no jardim - Dora Ferreira da Silva


A rosa branca sorria
a vermelha te chamava
na chama do meio-dia.

O jardim se abria em cores
mas nos canteiros de sombra
avencas tristes dormiam.

Ó Menina o que viveste
no sobressalto do dia?

Tinhas na mão a tesoura
no gesto grande ousadia
de colher aquela rosa.

Não te chamara impaciente
estilhaçando a janela
com seu grito de alegria?

Veio o vento de repente
no alto o céu refulgia.

Gritaste de dor e medo:
uma gota incandescia
no teu dedo junto à pétala.

Feriu-te o espinho Menina
ou o dente da tesoura
quando essa rosa colhias?

Brancas ficaram as flores
do susto que te feria.

Ai Menina o que dissera
a voz do vento estrangeiro
à rosa que estremecia?

(O céu azul se calava)
Viste o teu Jardim de Dores
muito além daquele dia.


Porque é que este sonho absurdo - José Gomes Ferreira

Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.


O sono das águas - Guimarães Rosa


Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Ma nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...


Pablo Neruda


Se há uma pedra destroçada
dela faço parte:
estive na ventania,
na onda,
no incêndio terrestre.

Respeita essa pedra perdida.

Se encontras num caminho
um menino
roubando maçãs
e um velho surdo
com um acordeom,
recorda que eu sou
o menino, as maçãs e o ancião.
Não me magoes perseguindo o menino,
não batas no velho vagabundo,
não atires ao rio as maçãs.


Fiz um conto para me embalar - Natália Correia


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.


Doe Eyes - Lennie Niehaus -

O beijo - Alexandre O'Neill

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu ...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo com a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...


Desejos vãos - Florbela Espanca


Eu queria ser o mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o sol, a luz intensa
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão é ate da morte!

Mas o mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos céus, os braços, como um crente!

E o sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as pedras... essas... pisá-as toda a gente!...


Quero Acabar - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
O que quis? Tenho as mãos vazias,
Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstrata.
O que vivi? Era tão bom dormir!


Janela – Adélia Prado


Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração.



Sonhos de uma noite de verão - Shakespeare


Há quem diga que todas as noites
são de sonhos.
Mas há também quem diga
nem todas,
Só as de verão...
Mas no fundo
isso não tem muita importância.

O que interessa mesmo
não são as noites em si,
São os sonhos.
Sonhos que o homem sonha sempre.
Em todos os lugares,
Em todas as épocas do ano,
dormindo ou acordado.


A flor e o ar - Cecília Meireles

A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito;
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame,
não tenho mão para flor.
Pergunto, ao pensar no amor,
como é possível que se ame.

arame e seda, percorro
o fio do tempo liso.
E nem sei do que preciso,
de tão depressa que morro.

Neste destino a que vim,
tudo é longe, tudo é alheio.
Pulsa o coração no meio
só para marcar o fim.



Mar alto - Emílio Moura


Que hei de fazer, se não me encontro,
se há tanto tempo estou perdido?
É o mar, meu pai: é o mar! E o mar está crescendo.
O mar é fundo, o mar é frio.

Meu pai, que silêncio,
que grave silêncio!
Por que não sorris?

Meu pai, estou perdido:
há tantos caminhos
no fundo do mar.
Como hei de voltar?



Pastor do Monte - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol.



A canção do mendigo - Rainer Maria Rilke


Vou indo de porta em porta,
ao sol e à chuva, não importa;
de repente descanso o meu ouvido
direito em minha mão direita:
minha voz me soa imperfeita,
como se nunca a tivesse ouvido.

E já nem sei quem clama em meus ais,
eu ou outra pessoa.
Eu clamo por qualquer coisa à toa.
Os poetas clamam por mais.

Com os olhos eu fecho o meu rosto
e minha mão lhe serve de encosto
de modo que ele pareça
descansar. Para que não se esqueça
que eu também tenho um posto
para pousar a cabeça.



Girassol - Lêdo Ivo


Em minha mão fechada cabe o dia,
o fogo aleatório dos instantes
e o silêncio que espalham os amantes
quando termina a festa e nada resta

da luz petrificada entre as montanhas.
Em minha mão aberta cabe a sombra
largada pela vida que me espera
além do inverno, quando a primavera

devolve ao caule a rosa fenecida
e o que foi volta a ser, e toda perda
retorna como um lucro imerecido.

A minha mão sustenta um girassol.
Sou sobra e o excesso, como o vento
ou como a luz incômoda do sol.




Melody Gardot - Bye bye, Blackbird

Soneto 43 - William Shakespeare


Quanto mais pisco, melhor meus olhos veem,
Pois o dia todo vislumbram coisas que nada são;
Mas, quando adormeço, surges em meus sonhos
E, luzindo no escuro, fulgem em meio ao breu;
E tu, cujo vulto reluz entre as sombras,
Cuja forma mostra-se alegre,
Na claridade, tua luz é ainda maior,
Que, ante meus olhos baços, faz tua sombra brilhar!
Como (eu diria) seriam meus olhos abençoados
Ao ver-te à luz do dia,
Quando, na calada da noite, tua sombra bela e imperfeita
Permanece sob minhas pálpebras durante o sono!
Todos os dias são noites, até que eu te veja,
E as noites, dias claros, ao mostrar-te em meus sonhos.



A Acauhan - A Malhada da Onça - Ariano Suassuna


Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.