Vigília das Mães - Cecília Meireles


Nossos filhos viajam pelos caminhos da vida,
pelas águas salgadas de muito longe,
pelas florestas que escondem os dias,
pelo céu, pelas cidades, por dentro do mundo escuro
de seus próprios silêncios.

Nossos filhos não mandam mensagens de onde se encontram.
Este vento que passa pode dar-lhes a morte.
A vaga pode levá-los para o reino do oceano.
Podem estar caindo em pedaços, como estrelas.
Podem estar sendo despedaçados em amor e lágrima.

Nossos filhos têm outro idioma, outros olhos, outra alma.
Não sabem ainda os caminhos de voltar, somente os de ir.
Eles vão para seus horizontes, sem memória ou saudade,
não querem prisão, atraso, adeuses:
deixam-se apenas gostar, apressados e inquietos.

Nossos filhos passaram por nós, mas não são nossos,
querem ir sozinhos, e não sabemos por onde andam.
Não sabemos quando morrem, quando riem,
são pássaros sem residência nem família
à superfície da vida.

Nós estamos aqui, nesta vigília inexplicável,
esperando o que não vem, o rosto que já não conhecemos.
Nossos filhos estão onde não vemos nem sabemos.
Nós somos as doloridas do mal que talvez não sofram,
mas suas alegrias não chegam nunca à solidão de que vivemos,
seu único presente, abundante e sem fim.


Quero-te apenas porque a ti eu quero - Pablo Neruda


Não te quero senão porque te quero
e de querer-te a não querer-te chego
e de esperar-te quando não te espero
passa meu coração do frio ao fogo.

Quero-te apenas porque a ti eu quero,
a ti odeio sem fim e, odiando-te, te suplico,
e a medida do meu amor viajante
é não ver-te e amar-te como um cego.

Consumirá talvez a luz de Janeiro,
o seu raio cruel, meu coração inteiro,
roubando-me a chave do sossego.

Nesta história apenas eu morro
e morrerei de amor porque te quero,
porque te quero, amor, a sangue e fogo.



Noite - Menotti Del Picchia


As casas fecham as pálpebras das janelas e dormem.
Todos os rumores são postos em surdina,
todas as luzes se apagam.

Há um grande aparato de câmara funerária
na paisagem do mundo.

Os homens ficam rígidos,
tomam a posição horizontal
e ensaiam o próprio cadáver.

Cada leito é a maquete de um túmulo.
Cada sono em ensaio de morte.

No cemitério da treva
tudo morre provisoriamente.


Soneto 30 - William Shakespeare


Quando, em silêncio, penso, docemente,
Sobre fatos idos e vividos,
Sinto falta do muito que busquei,
E desperdiço um tempo precioso com antigos lamentos:

Então meus olhos naufragam sem mais saber chorar,
Por queridos amigos envoltos pela noite do esquecimento,
E novamente choro o amor há tanto abandonado,
Gemendo por algo que não mais vejo:

Assim, posso sofrer as velhas dores,
E lamentar, de pesar em pesar,
Uma triste história de antigas mágoas,

Que pranteio como se não as tivesse pranteado antes.
Mas quando penso em ti, querida amiga,
Todas as perdas cessam, e a tristeza finda.



Há vezes em que nem é a morte que se teme - Eduardo White

Há vezes em que nem é a morte que se teme,
o seu sossego de cinza,
a sua solidão escura,
mas como se morre.

Quando morrer
quero fazê-lo sem rumor algum,
sem ninguém que me chore
ou a quem doa.

E queria a morte uma ave,
nocturna ave
sigilosamente partindo
para outro tempo.

Para morrer, fá-lo-ia
em total silêncio,
severo
e lúcido.



De Rerum Natura - Marco Lucchesi


Alheios ao destino 
dos mortais

além das nuvens
claras e sombrias

vivem os deuses
raros nas alturas...

livres de enganos
dores nostalgias

de morte vil
que aos poucos nos invade;

da chuva de átomos
em que se evade

indefinidamente
a natureza

em sua eterna
mas avara empresa

de reunir
os átomos-enxame,

seguindo a força
rude do cliname,

para formar
compostos provisórios,

que se desfazem
noutros repertórios:

estrelas, águas,
nuvens, tempestades,

cristais, abelhas,
glórias ou cidades

e flores, pedras,
corpos, consciência

– figuram
como pálida aparência...

e acima desse
mundo sempre em guerra

acima
da miragem dessa terra

repousam
esquecidos nos meatos

mais livres
os celestes, mais beatos




Selo

Recebi da amiga poetisa Lourdinha, 
o selo “Prêmio Dardos Bloggers” . 
 Obrigada pela indicação. 
Agradeço pelo carinho. 
Beijos



Cabra-Cega - Pedro Homem de Mello


À volta de incerto fogo
Brincaram as minhas mãos.
... E foi a vida o seu jogo!

Julguei possuir estrelas
Só por vê-las.
Ai! Como estrelas andaram
Misteriosas e distantes
As almas que me encantaram
Por instantes!

Em ritmo discreto, brando,
Fui brincando, fui brincando
Com o amor, com a vaidade...

— E a que sentimentos vãos
Fiquei devendo talvez
A minha felicidade!


No corpo - Ferreira Gullar


De que vale tentar reconstruir com palavras
o que o verão levou
entre nuvens e risos
junto com o jornal velho pelos ares?

O sonho na boca, o incêndio na cama.
o apelo na noite
agora são apenas esta
contração (este clarão)
de maxilar dentro do rosto.

A poesia é o presente.



Embalo - Cecília Meireles


Adormeço em ti minha vida,
- flor de sombra e de solidão -
da terra aos céus oferecida
para alguma constelação.

Não pergunto mais o motivo,
não pergunto mais a razão
de viver no mundo em que vivo,
pelas coisas que morrerão.

Adormeço em ti minha vida,
imóvel, na noite, e sem voz.
A lua, em meu peito perdida,
vê que tudo em mim somos nós.

Nós! - E no entanto eu sei que estão
brotando pela noite lisa
as lágrimas de uma canção
pelo que não se realiza...


Pietá - Miguel Torga


Vejo-te ainda, Mãe, de olhar parado,
Da pedra e da tristeza, no teu canto,
Comigo ao colo, morto e nu, gelado,
Embrulhado nas dobras do teu manto.

Sobre o golpe sem fundo do meu lado
Ia caindo o rio do teu pranto;
E o meu corpo pasmava, amortalhado,
De um rio amargo que adoçava tanto.

Depois, a noite de uma outra vida
Veio descendo lenta, apetecida
Pela terra-polar de que me fiz;

Mas o teu pranto, pela noite além,
Seiva do mundo, ia caindo, Mãe,
Na sepultura fria da raiz.


Desejo - Cassiano Ricardo


As coisas que não conseguem morrer
Só por isso são chamadas eternas.
As estrelas, dolorosas lanternas
Que não sabem o que é deixar de ser.

Ó força incognoscível que governas
O meu querer, como o meu não-querer.
Quisera estar entre as simples luzernas
Que morrem no primeiro entardecer.

Ser deus — e não as coisas mais ditosas
Quanto mais breves, como são as rosas
É não sonhar, é nada mais obter.

Ó alegria dourada de o não ser
Entre as coisas que são, e as nebulosas,
Que não conseguiu dormir nem morrer.


Ternura - Vinícius de Moraes


Eu te peço perdão por te amar de repente
Embora o meu amor seja uma velha canção nos teus ouvidos
Das horas que passei à sombra dos teus gestos
Bebendo em tua boca o perfume dos sorrisos
Das noites que vivi acalentado
Pela graça indizível dos teus passos eternamente fugindo
Trago a doçura dos que aceitam melancolicamente.
E posso te dizer que o grande afeto que te deixo
Não traz o exaspero das lágrimas nem a fascinação das promessas
Nem as misteriosas palavras dos véus da alma...
É um sossego, uma unção, um transbordamento de carícias
E só te pede que te repouses quieta, muito quieta
E deixes que as mãos cálidas da noite
encontrem sem fatalidade o olhar extático da aurora.

O sol - Georg Trakl


Todos os dias o sol amarelo aparece sobre a colina.
Bela é a floresta, o animal escuro,
O homem, caçador ou pastor.

Avermelhado, o peixe sobe no regato verde.
Sob o céu redondo
O pescador segue, silencioso, na canoa azul.

Lenta a uva amadurece, o grão,
Quando calmo o dia se inclina,
O mal e o bem estão preparados.

Quando anoitece,
O peregrino ergue suavemente as pálpebras pesadas;
do desfiladeiro sombrio o sol desponta.



O universo - Alberto Caeiro/Fernando Pessoa


O universo não é uma idéia minha.
A minha idéia do Universo é que é uma idéia minha.
A noite não anoitece pelos meus olhos,
A minha idéia da noite é que anoitece por meus olhos.
Fora de eu pensar e de haver quaisquer pensamentos
A noite anoitece concretamente
E o fulgor das estrelas existe como se tivesse peso.



Como nuvens pelo céu - Fernando Pessoa


Como nuvens pelo céu
Passam por mim.
Nenhum dos sonhos é meu
Embora eu os sonhe assim.

São coisas no alto que são
Enquanto a vista as conhece,
Depois são sombras que vão
Pelo campo que arrefece.

Símbolos? Sonhos? Quem torna
Meu coração ao que foi?
Que dor de mim me transforma?
Que coisa inútil me dói?


Resíduo - Carlos Drummond de Andrade


De tudo ficou um pouco
Do meu medo. Do teu asco.
Dos gritos gagos. Da rosa
ficou um pouco.

Ficou um pouco de luz
captada no chapéu.
Nos olhos do rufião
de ternura ficou um pouco
(muito pouco).

Pouco ficou deste pó
de que teu branco sapato
se cobriu. Ficaram poucas
roupas, poucos véus rotos
pouco, pouco, muito pouco.

Mas de tudo fica um pouco.
Da ponte bombardeada,
de duas folhas de grama,
do maço
― vazio ―  de cigarros, ficou um pouco.

Pois de tudo fica um pouco.
Fica um pouco de teu queixo
no queixo de tua filha.
De teu áspero silêncio
um pouco ficou, um pouco
nos muros zangados,
nas folhas, mudas, que sobem.

Ficou um pouco de tudo
no pires de porcelana,
dragão partido, flor branca,
ficou um pouco
de ruga na vossa testa,
retrato.

Se de tudo fica um pouco,
mas por que não ficaria
um pouco de mim? no trem
que leva ao norte, no barco,
nos anúncios de jornal,
um pouco de mim em Londres,
um pouco de mim algures?
na consoante?
no poço?

Um pouco fica oscilando
na embocadura dos rios
e os peixes não o evitam,
um pouco: não está nos livros.
De tudo fica um pouco.
Não muito: de uma torneira
pinga esta gota absurda,
meio sal e meio álcool,
salta esta perna de rã,
este vidro de relógio
partido em mil esperanças,
este pescoço de cisne,
este segredo infantil...
De tudo ficou um pouco:
de mim; de ti; de Abelardo.
Cabelo na minha manga,
de tudo ficou um pouco;
vento nas orelhas minhas,
simplório arroto, gemido
de víscera inconformada,
e minúsculos artefatos:
campânula, alvéolo, cápsula
de revólver... de aspirina.
De tudo ficou um pouco.

E de tudo fica um pouco.
Oh abre os vidros de loção
e abafa
o insuportável mau cheiro da memória.

Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
e sob as ondas ritmadas
e sob as nuvens e os ventos
e sob as pontes e sob os túneis
e sob as labaredas e sob o sarcasmo
e sob a gosma e sob o vômito
e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas triunfantes
e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
e sob os gonzos da família e da classe,
fica sempre um pouco de tudo.
Às vezes um botão. Às vezes um rato.