A rosa do povo - Carlos Drummond de Andrade

A rosa do povo despetala-se,
ou ainda conserva o pudor da alva?
E um anúncio, um chamado,
uma esperança embora frágil,
pranto infantil no berço?
Talvez apenas um ai de seresta, quem sabe.
Mas há um ouvido mais fino que escuta,
um peito de artista que incha,
e uma rosa se abre,
um segredo comunica-se,
o poeta anunciou,
o poeta, nas trevas, anunciou.


Canção quase inquieta - Cecília Meireles


De um lado, a eterna estrela,
e do outro a vaga incerta,
meu pé dançando pela
extremidade da espuma,
e meu cabelo por uma
planície de luz deserta.
Sempre assim:
de um lado, estandartes do vento...
- do outro, sepulcros fechados.
E eu me partindo, dentro de mim,
para estar no mesmo momento
de ambos os lados.


Se existe a tua Figura,
se és o Sentido do Mundo,
deixo-me, fujo por ti,
nunca mais quero ser minha!
(Mas, neste espelho, no fundo
desta fria luz marinha,
como dois baços peixes,
nadam meus olhos à minha procura...
Ando contigo - e sozinha,
Vivo longe - e acham-me aqui...)
Fazedor da minha vida,
não me deixes!
Entende a minha canção!
Tem pena do meu murmúrio,
reúne-me em tua mão!
Que eu sou gota de mercúrio,
dividida,
desmanchada pelo chão...


Do meu Outono - Cecília Meireles

O outono vai chegar... Neva a névoa do outono...
Perdem-se astros sem luz... Anda em choro a folhagem...
Há desesperos silenciosos de abandono...

O outono vai chegar... Neva a névoa do outono...
E eu sofro a angustia irremediável da paisagem...

O outono vai chegar... O outono vem tão cedo!
Irão morrer flores e estrelas, como as crianças
tristes e mudas, que impressionam, fazem medo?

O outono vai chegar... Como o outono vem cedo!
E as aves clamam terminais desesperanças...

O outono vai chegar... Têm vozes do passado,
as horas loiras, a cantarem vagarosas,
com ressonâncias de convento abandonado...

Vozes de sonho, vozes lentas, do passado,
Falando coisas nebulosas, nebulosas...

O outono vai chegar, como um poeta descrente,
que foi traído, muito longe, em terra estranha,
e que fugiu, doido de amor, miseramente...

O outono vai chegar, como um poeta descrente
Que funerais desilusórios acompanha...

O outono vai chegar... Neva a névoa do outono...
Perdem-se astros sem luz... Anda em choro a folhagem...
Há desesperos silenciosos de abandono...

O outono vai chegar... Neva a névoa do outono...
E eu sofro a angústia irremediável da paisagem...


Outonal - Lou Witt

Quando chegam os dias de outono
o sol começa a deixar seu calor
em outras terras
e as árvores dão ares de amarelo nas folhas
deixando no chão seus vestígios e desenhos
o entardecer adianta suas horas
querendo virar noite
tudo o que está ao alcance de meu olho
dá a sensação de renascer, de transmutar.

Das feridas caem as cascas iguais às árvores
o vento varre as dores junto com as folhas
e as manhãs nascem mais amenas e calmas
e as noites chegam mais serenas e frescas
e todos os dias vivem de se refazer.

Quando chegam os dias de outono
meu coração vira menino que brinca
e manda embora todas as certezas
e se desfolha
e se joga ao chão
para ser varrido pelo vento.


A Rua das Rimas - Guilherme de Almeida


A rua que eu imagino, desde menino,
para o meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais,aventais nos portais,
animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas,todas elas belas,
singelas, amarelas, douradas, descabeladas,
debruçadas como namoradas para as calçadas;


e um passo, de espaço a espaço,
no mormaço de aço baço e lasso;
e algum piano provinciano, quotidiano, desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em quando,
na luz rara de opala
de uma sala uma escala clara que embala;


e, no ar de uma tarde que arde,
o alarde das crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos lampiões espiões, os bordões dos violões;
e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata que mata...);


e depois o silêncio, o denso, o intenso, o imenso silêncio...
A rua que eu imagino, desde menino,
para o meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer
uma mulher que bem me quer
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas calças nuas,
correndo paralelamente, como a sorte diferente de toda gente,
para a frente, para o infinito;
mas uma rua que tem escrito um nome bonito,
bendito, que sempre repito e que rima com mocidade,
liberdade, tranqüilidade: RUA DA FELICIDADE...


Oração para Aviadores - Manuel Bandeira


Santa Clara, clareai
Estes ares.
Dai-nos ventos regulares,
de feição.
Estes mares, estes ares
Clareai.

Santa Clara, dai-nos sol.
Se baixar a cerração,
Alumiai
Meus olhos na cerração.
Estes montes e horizontes
Clareai.

Santa Clara, no mau tempo
Sustentai
Nossas asas.
A salvo de árvores, casas,
E penedos, nossas asas
Governai.

Santa Clara, clareai.
Afastai
Todo risco.
Por amor de S. Francisco,
Vosso mestre, nosso pai,
Santa Clara, todo risco
Dissipai.


Santa Clara, clareai.



Verdade, Mentira, Certeza, Incerteza - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Verdade, mentira, certeza, incerteza...
Aquele cego ali na estrada também conhece estas palavras.
Estou sentado num degrau alto e tenho as mãos apertadas
Sobre o mais alto dos joelhos cruzados.
Bem: verdade, mentira, certeza, incerteza o que são?
O cego pára na estrada,
Desliguei as mãos de cima do joelho
Verdade mentira, certeza, incerteza são as mesmas?
Qualquer cousa mudou numa parte da realidade — os meus joelhos
                                  
e as minhas mãos.

Qual é a ciência que tem conhecimento para isto?
O cego continua o seu caminho e eu não faço mais gestos.
Já não é a mesma hora, nem a mesma gente, nem nada igual.
Ser real é isto. 


Por Delicadeza - Sophia de Mello B. Andresen


Bailarina fui
Mas nunca dancei
Em frente das grades
Só três passos dei

Tão breve o começo
Tão cedo negado
Dancei no avesso
Do tempo bailado

Dançarina fui
Mas nunca bailei
Deixei-me ficar
Na prisão do rei

Onde o mar aberto
E o tempo lavado?
Perdi-me tão perto
Do jardim buscado

Bailarina fui
Mas nunca bailei
Minha vida toda
Como cega errei

Minha vida atada
Nunca a desatei
Como Rimbaud disse
Também direi:

"Juventude ociosa
Por tudo iludida
Por delicadeza
Perdi minha vida."



Pergunte ao pó - Paulo Leminski

cresce a vida
cresce o tempo
cresce tudo
e vira sempre
esse momento.

cresce o ponto
bem no meio
do amor seu centro
assim como
o que a gente sente
e não diz
cresce dentro



Enya - On Your Shore...

Elegia - Nuno Júdice

Nem os dias longos me separam da tua imagem.
Abro-a no espelho de um céu monótono, ou
deixo que a tarde a prolongue no tédio dos
horizontes. O perfil cinzento da montanha,
para norte, e a linha azul do mar, a sul,
dão-lhe a moldura cujo centro se esvazia
quando, ao dizer o teu nome, a realidade do
som apaga a ilusão de um rosto. Então, desejo
o silêncio para que dele possas renascer,
sombra, e dessa presença possa abstrair a
tua memória.


A Frescura - Álvaro de Campos (F.Pessoa)


Ah a frescura na face de não cumprir um dever!
Faltar é positivamente estar no campo!
Que refúgio o não se poder ter confiança em nós!
Respiro melhor agora que passaram as horas dos encontros,
Faltei a todos, com uma deliberação do desleixo,
Fiquei esperando a vontade de ir para lá,
que'eu saberia que não vinha.
Sou livre, contra a sociedade organizada e vestida.
Estou nu, e mergulho na água da minha imaginação.
E tarde para eu estar em qualquer dos dois pontos
onde estaria à mesma hora,
Deliberadamente à mesma hora...
Está bem, ficarei aqui sonhando versos e sorrindo em itálico.
É tão engraçada esta parte assistente da vida!
Até não consigo acender o cigarro seguinte... Se é um gesto,
Fique com os outros, que me esperam, no desencontro que é a vida.


Como uma Flor Vermelha - Sophia de Mello B. Andresen


À sua passagem a noite é vermelha,
E a vida que temos parece
Exausta, inútil, alheia.
Ninguém sabe onde vai nem donde vem,
Mas o eco dos seus passos
Enche o ar de caminhos e de espaços
E acorda as ruas mortas.
Então o mistério das coisas estremece
E o desconhecido cresce
Como uma flor vermelha.



Para sempre - Odylo Costa, Filho


Ando bem devagar. Em silêncio.
Como quem resguarda uma luz frágil em noite de tempestade.
Quero evitar a fuga da poesia que, mal acordou em mim,
se dispersa nos ventos da tarde.

Estou só, mas teus olhos, presentes nos meus, não se calam.
Alguém que espia espantado terá ouvido o teu riso?
Caminharei ainda mais lento para que o teu rosto
não se fragmente em minhas mãos.
Vigiarei as pupilas para que a tua imagem não fuja.

Dorme dentro de mim.
Só quero as coisas para sempre. Dorme.



Carnaval – Cecília Meireles

Com os teus dedos feitos de tempo silencioso,
Modela a minha máscara, modela-a…
E veste-me essas roupas encantadas
Com que tu mesmo te escondes, ó oculto!

Põe nos meus lábios essa voz
Que só constrói perguntas,
E, à aparência com que me encobrires,
Dá um nome rápido, que se possa logo esquecer…

Eu irei pelas tuas ruas,
Cantando e dançando…
E lá, onde ninguém se reconhece,
Ninguém saberá quem sou,
À luz do teu Carnaval…

Modela a minha máscara!
Veste-me essas roupas!

Mas deixa na minha voz a eternidade
Dos teus dedos de silencioso tempo…
Mas deixa nas minhas roupas a saudade da tua forma…
E põe na minha dança o teu ritmo,
Para me conduzir…


Velocidade - Guilherme de Almeida


Não se lembram do Gigante das Botas de Sete Léguas?
Lá vai ele: vai varando, no seu voo de asas cegas,
as distâncias...
E dispara,
nunca pára,
nem repara
para os lados,
para frente,
para trás...

Vai como um pária...

E vai levando um novelo embaraçado de fitas:
fitas
azuis,
brancas,
verdes,
amarelas...
imprevistas...


Vai varando o vento: — e o vento, ventando cada vez mais,
desembaraça o novelo, penteando com dedos de ar
o feixe fino de riscas,
tiras,
fitas,
faixas,
listas...
E estira-as,
puxa-as,
estica-as,
espicha-as bem para trás:
E as cores retesas dançam, sobem, descem de-va-gar
paralelamente,
paralelamente
horizontais,
sobre a cabeça espantada do Pequeno Polegar...




A uma menina - Yeda Prates Bernis


Quando chegares,
sacode lá fora
teus sapatos
tua roupa
teus cabelos.
Não magoes
meus olhos
com este excesso
de luz.


A casa no mar - Lya Luft

Era uma vez um corredor de amores,
e uma casa ancorada no tempo da vida
para não naufragar.

Era uma vez viagens e descobrimentos.
Era uma vez uma infância dourada
e um quebra-cabeças impossível de armar.

Era uma vez — ainda, um ser que respirava em mim
como um cavalo alado
— aquele mar.


José Saramago


Aprendamos, amor, com estes montes
Que, tão longe do mar, sabem o jeito
De banhar no azul dos horizontes.

Façamos o que é certo e de direito:
Dos desejos ocultos outras fontes
E desçamos ao mar do nosso leito.