A flor e o ar - Cecília Meireles

A flor que atiraste agora,
quisera trazê-la ao peito;
mas não há tempo nem jeito...
Adeus, que me vou embora.

Sou dançarina do arame,
não tenho mão para flor.
Pergunto, ao pensar no amor,
como é possível que se ame.

arame e seda, percorro
o fio do tempo liso.
E nem sei do que preciso,
de tão depressa que morro.

Neste destino a que vim,
tudo é longe, tudo é alheio.
Pulsa o coração no meio
só para marcar o fim.



Mar alto - Emílio Moura


Que hei de fazer, se não me encontro,
se há tanto tempo estou perdido?
É o mar, meu pai: é o mar! E o mar está crescendo.
O mar é fundo, o mar é frio.

Meu pai, que silêncio,
que grave silêncio!
Por que não sorris?

Meu pai, estou perdido:
há tantos caminhos
no fundo do mar.
Como hei de voltar?



Pastor do Monte - Alberto Caeiro (Fernando Pessoa)


Pastor do monte, tão longe de mim com as tuas ovelhas
Que felicidade é essa que pareces ter — a tua ou a minha?
A paz que sinto quando te vejo, pertence-me, ou pertence-te?
Não, nem a ti nem a mim, pastor.
Pertence só à felicidade e à paz.
Nem tu a tens, porque não sabes que a tens.
Nem eu a tenho, porque sei que a tenho.
Ela é ela só, e cai sobre nós como o sol,
Que te bate nas costas e te aquece, e tu pensas
noutra cousa indiferentemente,
E me bate na cara e me ofusca, e eu só penso no sol.



A canção do mendigo - Rainer Maria Rilke


Vou indo de porta em porta,
ao sol e à chuva, não importa;
de repente descanso o meu ouvido
direito em minha mão direita:
minha voz me soa imperfeita,
como se nunca a tivesse ouvido.

E já nem sei quem clama em meus ais,
eu ou outra pessoa.
Eu clamo por qualquer coisa à toa.
Os poetas clamam por mais.

Com os olhos eu fecho o meu rosto
e minha mão lhe serve de encosto
de modo que ele pareça
descansar. Para que não se esqueça
que eu também tenho um posto
para pousar a cabeça.



Girassol - Lêdo Ivo


Em minha mão fechada cabe o dia,
o fogo aleatório dos instantes
e o silêncio que espalham os amantes
quando termina a festa e nada resta

da luz petrificada entre as montanhas.
Em minha mão aberta cabe a sombra
largada pela vida que me espera
além do inverno, quando a primavera

devolve ao caule a rosa fenecida
e o que foi volta a ser, e toda perda
retorna como um lucro imerecido.

A minha mão sustenta um girassol.
Sou sobra e o excesso, como o vento
ou como a luz incômoda do sol.




Melody Gardot - Bye bye, Blackbird

Soneto 43 - William Shakespeare


Quanto mais pisco, melhor meus olhos veem,
Pois o dia todo vislumbram coisas que nada são;
Mas, quando adormeço, surges em meus sonhos
E, luzindo no escuro, fulgem em meio ao breu;
E tu, cujo vulto reluz entre as sombras,
Cuja forma mostra-se alegre,
Na claridade, tua luz é ainda maior,
Que, ante meus olhos baços, faz tua sombra brilhar!
Como (eu diria) seriam meus olhos abençoados
Ao ver-te à luz do dia,
Quando, na calada da noite, tua sombra bela e imperfeita
Permanece sob minhas pálpebras durante o sono!
Todos os dias são noites, até que eu te veja,
E as noites, dias claros, ao mostrar-te em meus sonhos.



A Acauhan - A Malhada da Onça - Ariano Suassuna


Aqui morava um rei quando eu menino
Vestia ouro e castanho no gibão,
Pedra da Sorte sobre meu Destino,
Pulsava junto ao meu, seu coração.

Para mim, o seu cantar era Divino,
Quando ao som da viola e do bordão,
Cantava com voz rouca, o Desatino,
O Sangue, o riso e as mortes do Sertão.

Mas mataram meu pai. Desde esse dia
Eu me vi, como cego sem meu guia
Que se foi para o Sol, transfigurado.

Sua efígie me queima. Eu sou a presa.
Ele, a brasa que impele ao Fogo acesa
Espada de Ouro em pasto ensanguentado.



Canção da tarde no campo - Cecília Meireles


Caminho do campo verde
estrada depois de estrada.
Cercas de flores, palmeiras,
serra azul, água calada.

Eu ando sozinha
no meio do vale.
Mas a tarde é minha.

Meus pés vão pisando a terra
Que é a imagem da minha vida:
tão vazia mas tão bela,
tão certa, mas tão perdida!

Eu ando sozinha
por cima de pedras.
Mas a flor é minha.

Os meus passos no caminho
são como os passos da lua;
vou chegando, vai fugindo,
minha alma é a sombra da tua.

Eu ando sozinha
por dentro de bosques.
Mas a fonte é minha.

De tanto olhar para longe,
não vejo o que passa perto.
Subo monte, desço monte,
meu peito é puro deserto.


Eu ando sozinha
ao longo da noite,
Mas a estrela é minha.


O pequeno barco de velas brancas - Rubem Alves


Nasci nas Minas Gerais. Minas não tem mar.
Minas tem montanhas, matas e tem céu. É aí que me sinto em casa.

Minas não tem mar. Lá, quem quiser navegar tem de aprender
que o mar de Minas é em outro lugar.

“O mar de Minas não é no mar.
O mar de Minas é no céu,
pro mundo olhar pra cima e navegar
sem nunca ter um porto onde chegar.”

Acho que é por isso que em Minas nasce tanto poeta.
Poeta é quem navega nos céus.

Comecei a navegar no mar de Minas quando era menino.
Me deitava no capim e ficava vendo as nuvens e os urubus.
Pensava poesia sem saber que era poesia.
A Adélia diz que poesia é quando a gente olha para uma pedra
e vê outra coisa. Como no famoso poema do Drummond,
“No meio do caminho havia uma pedra…”

Estou certo de que essa pedra que ele via era outra coisa
cujo nome ele não podia dizer.
Pois eu ficava olhando para as nuvens e não via as nuvens:
via navios, bichos, rostos, monstros.
As nuvens me ensinaram minha primeira lição de filosofia. 
Elas me ensinaram a filosofia de Heráclito:

“Tudo flui, nada permanece.”
“Sou e não sou no que estou sendo” (Cecília Meireles).

Todo ser é um permanente deixar de ser.
A vida acontece morrendo. Como o rio. Como a chama.

Meus mestres navegadores eram os urubus.
Desajeitados em terra, não conheço poeta
que tenha falado deles com carinho.
É romântico dizer da amada que ela se parece com uma garça branca.
Mas quem diria que ela se parece com um urubu?
Que eu saiba, somente a Cecília viu a sua beleza:

“Até os urubus são belos
nos largos círculos dos dias sossegados.”

Urubus voam sem bater asas.
Nas alturas, apenas as inclinam ligeiramente
para flutuar ao sabor do vento. Voam sem fazer nada.
Fazer nada é o seu jeito de fazer, para voar.
Deixam-se ser levados.
Flutuam ao sabor do vento.
São mestres do taoismo.

O mar me fascina. Mas, como não sou do mar, sou das matas, não vou.
O mar me dá medo. Mar é perigo, naufrágio.
Disse Fernando Pessoa, gravemente:

“Deus ao mar o perigo e o abismo deu…”.

Ele, português, sabia do que estava falando.

“Ó mar salgado, quanto do teu sal
são lágrimas de Portugal! Por te cruzarmos quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram! Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!”

Sabia disso Dorival Caymmi quando cantou o jangadeiro
que entrou no mar e a jangada voltou só.
Doce morrer no mar? Talvez.
Melhor morrer no mistério indecifrável do mar
que morrer as mortes banais da terra seca.

Mas o perigo não importa. O fascínio é maior.
Somos os únicos seres que amam o perigo.
Sabia disso a Cecília, que nasceu olhando o mar.

“A solidez da terra seca, monótona, parece-nos fraca ilusão.
Queremos a solidão do grande mar,
multiplicada em suas malhas de perigo.
Queremos sua solidão robusta,
uma solidão para todos os lados,
uma ausência humana que se opõe
ao mesquinho formigar do mundo.”


Lá está o barquinho de velas brancas, navegando no mar!
Bem que ele poderia navegar só nas baías e enseadas,
onde não há perigo e o mar é sempre manso.
Mas não! Deixando a solidez da terra firme,
ele se aventura para sentir o vento forte
enfunando as velas e o salpicar da água salgada
que salta da quilha contra as ondas.

“Sem nunca ter um porto onde chegar”,

ele navega pelo puro prazer de entrar no mar.

A vida é assim mesmo.
É sempre possível deixar o barco atracado
ou só navegar nas baías mansas. Aí não há perigo de naufrágio.
Mas não há o prazer do calafrio e do desconhecido.

Segundo o Taoísmo, a vida é assim:
somos pequenos barcos de velas brancas no mar desconhecido.
O remos são inúteis.
A força dos elementos é maior que a nossa força.
Gosto de ver os urubus voando nos prenúncios de tempestade.
Eles não batem asas. Não lutam contra o vento.
Flutuam, deixam-se levar.

A sabedoria dos barcos a vela é a mesma sabedoria dos urubus.
Brincar com vento e onda, vela e leme, e deixarmo-nos sermos levados.
A sabedoria suprema não é fazer – remar –
mas fazer nada, deixar-se levar pelo mar da vida que é mais forte.
Eu nunca consegui chegar a lugar algum usando remos.
Sempre fui levado por uma força mais forte
que a minha razão a praias com que nunca havia sonhado.
Foi assim que me tornei escritor,
porque o mar foi mais forte que o meu plano de viagem.

De fato,

“Deus ao mar o perigo e o abismo deu, mas nele é que espelhou o céu”.

Talvez seja por isso que os navegadores navegam:
porque no perigo e no abismo eles veem refletida a eternidade.



Conta a teu filho - Renata Pallottini


Conta a teu filho, meu filho
Daquilo que nós passamos
Que havia fitas gravadas
Retratos de corpo inteiro
Conta que nos encolhemos
Como animais espancados
Que ninguém teve coragem
Que respirávamos baixo
Olhos fugindo dos olhos
As mãos frias e suadas
E conta que faz dez anos
Que temos pouca esperança
Que pedimos testemunho
E não agüentamos mais
Talvez teu filho, meu filho
Viva em mundo mais aberto
Mas é grave que lhe contes calmamente
E nos mínimos detalhes
A história desses punhais
Cravados em nossas tardes
Porém, se por tudo isso
Renuncias a ter filhos
Como (alguns) renunciamos
Deixa inscritos, como eu deixo
Sinais em troncos de árvores
Letras em papéis esquivos
Pra que não escureça
Essa lâmpada mesquinha
Relâmpago, fogo fátuo
Pura lembrança dos dias
Em que livres,
Fomos filhos de pais muito mais felizes
Conta a quem possas, meu filho
O que em ti forem palavras
Nos outros serão raízes.



O pássaro cantor - Robert Frost


Eis um cantor, que muita gente já ouviu,
cantar na mata funda, em meados do estio,
e que faz soar de novo os mudos arredores.
Diz que o verde está velho, e diz que, para as flores,
dez vezes mais que o estio importa a primavera;
que em chuveiros a flor da cereja e da pera
despencou sobre o chão em dias já passados
plenos de sol, por uns instantes só toldados.
E vem o outro cair que chamamos de outono,
que o pó da estrada cobre e enfeita de abandono.
Como os outros seria, ao findar sua lida;
não soubesse, porém, em cantar não cantar.
A pergunta que traz, sem nada perguntar,
é o que fazer de alguma coisa diminuída.


Penélope - Alcides Villaça


Minha irmã foi noiva longamente
que hoje borda e fia na janela,
penélope de próprio labirinto.
Eu mesmo na janela não diviso
senão a vaga espera, em gesto aéreo,
tecida apenas do desejo aflito
com que bordo seu noivo nos atrasos.
Não cabem nossos olhos nesta sala
tão grande, de paredes recuadas;
pois que se cruzem, se amem, se maltratem
com entender de si seus tempos vários.

Apanho teu novelo descuidado.
componho-o de novo, ao revés;
alcança-o teu colo, no bordado
de onde partiu e chega, já sem cor.
Teu noivo, nessa espera, longamente
não vem; o que te posso responder
(como profeta que olha à ré do corpo)
é que já não virá, em seu destino
entregue à solidão dos esperados.
E nós, nosso retrato se colore
daquele azul das horas cumuladas
com que à distância vemos, no bordado,
fio e agulha em linho descansando.
Teu corpo no caminho da janela
eternamente indo, e eu ficando.



O chão e o pão - Cecília Meireles


O chão.
O grão.
O grão no chão.

O pão.
O pão e a mão.
A mão no pão.

O pão na mão.
O pão no chão?
Não.


Depois - Abgar Renault

        
                      
Depois...
Para onde irão depois as coisas que eu aprendi?
Por exemplo: aquele cálculo de pi.
Que será feito daqueles restos de saudade,
destes medos antigos sempre novos?
Em que voltas desaparecerão os sonhos
que enfeitaram de flores o quintal antigo?
Por que caminhos irão andar aqueles ágeis pés?
Sobre tudo, como se esvaziará de som a velha voz
e onde afundará o último verde daquela flama esguia?


Foi-se a Copa? - Carlos Drummond de Andrade


Foi-se a Copa? Não faz mal.
Adeus chutes e sistemas.
A gente pode, afinal,
cuidar de nossos problemas.

Faltou inflação de pontos?
Perdura a inflação de fato.
Deixaremos de ser tontos
se chutarmos no alvo exato.

O povo, noutro torneio,
havendo tenacidade,
ganhará, rijo, e de cheio,
A Copa da Liberdade.


Plenilúnio - Cruz e Sousa

Vês este céu tão límpido e constelado
E este luar que em fúlgida cascata,
Cai, rola, cai, nuns borbotões de prata...
Vês este céu de mármore azulado...

Vês este campo intérmino, encharcado
Da luz que a lua aos páramos desata...
Vês este véu que branco se dilata
Pelo verdor do campo iluminado...

Vês estes rios, tão fosforescentes,
Cheios duns tons, duns prismas reluzentes,
Vês estes rios cheios de ardentias...

Vês esta mole e transparente gaze...
Pois é, como isso me parecem quase
Iguais, assim, às nossas alegrias! 


Outono - Tasso da Silveira


O outono é pomo... É puro pomo o outono.
Pomo de sonho e de recolhimento,
pendendo, longe do amargor violento,
num perdido pomar de sombra e sono.

Há o vento, é certo, o lamentoso vento,
uivando, uivando como cão sem dono.
E a tristeza passando a passo lento
na alameda... E as lembranças. E o abandono.

Mas há também, no outono, essa doçura,
essa total renúncia de oferenda,
esse eterno alheiamento à dor e ao mal,

que faz do pomo uma presença pura
da bondade de Deus na ânsia tremenda,
no degredo da angústia universal.




Fracasso - Adalgisa Nery

O vazio faz-se entre a dissonância do aflito e do manso,
Faz-se no sono e no acordar da mente,
Faz-se no riso imotivado e no pranto recolhido.
O vazio faz-se na aura da vitória e no excesso da fartura,
No supremo instante do amor e no momento que o precede.
O vazio faz-se nas vísceras,
Na procura do querer sem rumo,
No monólogo da língua virgem,
No ocaso ainda não formado
E na visão que não nos pertence.
O vazio faz-se entre fezes e urina
Com a proliferação dos homens
Que a força dos vazios desconsolos vence.


O artista inconfessável - João Cabral de Melo Neto

Fazer o que seja é inútil.
Não fazer nada é inútil.
Mas entre fazer e não fazer
mais vale o inútil do fazer.
Mas não, fazer para esquecer
que é inútil: nunca o esquecer.
Mas fazer o inútil sabendo
que ele é inútil, e bem sabendo
que é inútil e que seu sentido
não será sequer pressentido,
fazer: porque ele é mais difícil
do que não fazer, e dificil-
mente se poderá dizer
com mais desdém, ou então dizer
mais direto ao leitor Ninguém
que o feito o foi para ninguém.