Essa lembrança - Mário Quintana


Essa lembrança que nos vem às vezes...
folha súbita que tomba
abrindo na memória a flor silenciosa
de mil e uma pétalas concêntricas...

Essa lembrança...mas de onde? de quem?
Essa lembrança talvez nem seja nossa,
mas de alguém que, pensando em nós,
só possa mandar um eco do seu pensamento
nessa mensagem pelos céus perdida...
Ai! Tão perdida que nem se possa saber mais de quem!


Uni-Verso - Mário Quintana



“Treme a folha no galho mais alto" - escrevo.
Paro e sorvo, de olhos fechados, o cheiro bom da terra, do capim chovido...
Parece que quer vir um poema...
Abro os olhos e fico olhando, interrogativamente,
a linha que escrevi no alto da página.
Depois de longo instante, acrescento-lhe três pontinhos.
Assim não ficará tão só enquanto aguarda as companheiras.
O vento fareja-me a face como um cachorro.
Eu farejo o poema.
Ah, todo o mundo sabe que a poesia está em toda parte,
mas agora cabe toda ela na folha que treme.
Por que não caberia então em um único verso?
Um uni-verso.
Treme a folha no galho mais alto.
(O resto é paisagem...)

Corpo no mar - Cecília Meireles


Água densa do sonho, quem navega?
Contra as auroras, contra as baías:
barca imóvel, estrela cega.

Bate o vento na vela e não a arqueia.
- Não foi por mim!
Partiram-se as cordas, rodaram os mastros,
os remos entraram por dentro da areia...

Os remos torceram-se, e trançaram raízes.
- Inútil forçá-los - alastram-se, fogem
na sombra secreta de eternos países...

Mudou-se a vela em nuvem clara!
Choraram meus olhos, minhas mãos correram...
- Alto e longe! - Não foi por mim...

E apenas pára
um corpo na barca vazia,
à mercê das metamorfoses,
olhos vertendo melancolia...

O vento sopra no coração.

Adeus a todos os meridianos!
Deito-me como num caixão.

Ah! sobrevive o mar no meu ouvido...
«Marinheiro! Marinheiro!»

(Ilhas...Pássaros...Portos... - nesse ruído,
- O mar...O mar!...O mar inteiro!...)

Mas é tempo perdido!


A hóspede - Guilherme de Almeida


Não precisas bater quando chegares.
Toma a chave de ferro que encontrares
sobre o pilar, ao lado da cancela,
e abre com ela
a porta baixa, antiga e silenciosa.
Entra. Aí tens a poltrona, o livro, a rosa,
o cântaro de barro e o pão de trigo.
O cão amigo
pousará nos teus joelhos a cabeça.
Deixa que a noite, vagarosa, desça.
Cheiram à relva e sol, na arca e nos quartos,
os linhos fartos,
e cheira a lar o azeite da candeia.
Dorme. Sonha. Desperta. Da colmeia
nasce a manhã de mel contra a janela.
Fecha a cancela
e vai. Há sol nos frutos dos pomares.
Não olhes para trás quando tomares
o caminho sonâmbulo que desce.
Caminha - e esquece.




A floresta - Vinícius de Moraes


Sobre o dorso possante do cavalo
Banhado pela luz do sol nascente
Eu penetrei o atalho, na floresta.
Tudo era força ali, tudo era força
Força ascencional da natureza.
A luz que em torvelinhos despenhava
Sobre a coma verdíssima da mata
Pelos claros das árvores entrava
E desenhava a terra de arabescos.
Na vertigem suprema do galope
Pelos ouvidos, doces, perpassavam
Cantos selvagens de aves indolentes.
A branda aragem que do azul descia
E nas folhas das árvores brincava
Trazia à boca um gosto saboroso
De folha verde e nova e seiva bruta.

Vertiginosamente eu caminhava
Bêbado da frescura da montanha
Bebendo o ar estranguladamente.
Às vezes, a mão firme apaziguava
O impulso ardente do animal fogoso
Para ouvir de mais perto o canto suave
De alguma ave de plumagem rica
E após, soltando as rédeas ao cavalo
Ia de novo loucamente à brisa.

De repente parei. Longe, bem longe
Um ruído indeciso, informe ainda
Vinha às vezes, trazido pelo vento.
Apenas branda aragem perpassava
E pelo azul do céu, nenhuma nuvem.

Que seria? De novo caminhando
Mais distinto escutava o estranho ruído
Como que o ronco baixo e surdo e cavo
De um gigante de lenda adormecido.

A cachoeira, Senhor! A cachoeira!
Era ela. Meu Deus, que majestade!
Desmontei. Sobre a borda da montanha
Vendo a água lançando-se em peitadas
Em contorções, em doidos torvelinhos
Sobre o rio dormente e marulhoso
Eu tive a estranha sensação da morte.

Em cima o rio vinha espumejante
Apertando entre as pedras pardacentas
Rápido e se sacudindo em branca espuma.
De repente era o vácuo embaixo, o nada
A queda célere e desamparada
A vertigem do abismo, o horror supremo
A água caindo, apavorada, cega
Como querendo se agarrar nas pedras
Mas caindo, caindo, na voragem
E toda se estilhaçando, espumecente.

Lá fiquei longo tempo sobre a rocha
Ouvindo o grande grito que subia
Cheio, eu também, de gritos interiores.
Lá fiquei, só Deus sabe quanto tempo
Sufocando no peito o sofrimento
Caudal de dor atroz e inapagável
Bem mais forte e selvagem do que a outra.
Feita ela toda de esperança
De não poder sentir a natureza
Com o espírito em Deus que a fez tão bela.

Quando voltei, já vinha o sol mais alto
E alta vinha a tristeza no meu peito.
Eu caminhei. De novo veio o vento
Os pássaros cantaram novamente
De novo o aroma rude da floresta
De novo o vento. Mas eu nada via.
Eu era um ser qualquer que ali andava
Que vinha para o ponto de onde viera
Sem sentido, sem luz, sem esperança
Sobre o dorso cansado de um cavalo.



Senhor, libertai-nos - Sophia de Mello Breyner Andresen


Senhor libertai-nos do jogo perigoso da transparência.
No fundo do mar da nossa alma não há corais nem búzios
Mas sufocado sonho
E não sabemos bem que coisa são os sonhos
Condutores silenciosos canto surdo
Que um dia subitamente emergem
No grande pátio liso dos desastres.


Lições - Mia Couto


Não aprendi a colher a flor
sem esfacelar as pétalas.
Falta-me o dedo menino
de quem costura desfiladeiros.

Criança, eu sabia
suspender o tempo,
soterrar abismos
e nomear as estrelas.
Cresci,
perdi pontes,
esqueci sortilégios.

Careço da habilidade da onda,
hei-de aprender a carícia da brisa.

Trémula, a haste
me pede
o adiar da noite.

Em véspera da dádiva,
a faca me recorda, no gume do beijo,
a aresta do adeus.

Não, não aprenderei
nunca a decepar flores.

Quem sabe, um dia,
eu, em mim, colha um jardim?


Convite - Carlos Drummond de Andrade

Vem comigo, meu amigo.

Vem até a minha casa,
que é pintada de branco,
e ri nos vidros das janelas abertas,
e no pequeno jardim
que lhe descansa em frente.

Vem ver a minha casa nova.

 Descobre-te, chegando á porta,
e olha com bondade
essas paredes limpas.

Ali, é minha mesa
de trabalho espiritual;
é ali que eu escrevo
os poemas que vou sentindo,
e as minhas cartas de amor.

E sobre essa mesa tranquila,
há um ramo de rosas frescas,
que ainda guardam nas pétalas
o sorriso úmido da manhã.

os meus poucos livros
na sua beleza humilde nos contemplam.
Olha, aqui é o leito
Dos meus sonos sem cuidado,
E ali, pequena e simples,
a mesa de jantar,

 Quando o relógio der as horas,
naquele banco nos sentaremos
para um repasto frugal,

com um pouco de vinho velho
regando uma vianda tenra,
alguns frutos maduros,
e a nossa discreta alegria
de poetas...



A miragem do caminho - Helena Kolody


Perdeu-se em nada,
caminhou sozinho,
a perseguir um grande sonho louco.

(E a felicidade
era aquele pouco
que desprezou ao longo do caminho).



Vento no jardim - Dora Ferreira da Silva


A rosa branca sorria
a vermelha te chamava
na chama do meio-dia.

O jardim se abria em cores
mas nos canteiros de sombra
avencas tristes dormiam.

Ó Menina o que viveste
no sobressalto do dia?

Tinhas na mão a tesoura
no gesto grande ousadia
de colher aquela rosa.

Não te chamara impaciente
estilhaçando a janela
com seu grito de alegria?

Veio o vento de repente
no alto o céu refulgia.

Gritaste de dor e medo:
uma gota incandescia
no teu dedo junto à pétala.

Feriu-te o espinho Menina
ou o dente da tesoura
quando essa rosa colhias?

Brancas ficaram as flores
do susto que te feria.

Ai Menina o que dissera
a voz do vento estrangeiro
à rosa que estremecia?

(O céu azul se calava)
Viste o teu Jardim de Dores
muito além daquele dia.


Porque é que este sonho absurdo - José Gomes Ferreira

Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!
Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.


O sono das águas - Guimarães Rosa


Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água.
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Ma nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...


Pablo Neruda


Se há uma pedra destroçada
dela faço parte:
estive na ventania,
na onda,
no incêndio terrestre.

Respeita essa pedra perdida.

Se encontras num caminho
um menino
roubando maçãs
e um velho surdo
com um acordeom,
recorda que eu sou
o menino, as maçãs e o ancião.
Não me magoes perseguindo o menino,
não batas no velho vagabundo,
não atires ao rio as maçãs.


Fiz um conto para me embalar - Natália Correia


Fiz com as fadas uma aliança.
A deste conto nunca contar.
Mas como ainda sou criança
Quero a mim própria embalar.

Estavam na praia três donzelas
Como três laranjas num pomar.
Nenhuma sabia para qual delas
Cantava o príncipe do mar.

Rosas fatais, as três donzelas
A mão de espuma as desfolhou.
Nenhum soube para qual delas
O príncipe do mar cantou.


Doe Eyes - Lennie Niehaus -

O beijo - Alexandre O'Neill

Congresso de gaivotas neste céu
Como uma tampa azul cobrindo o Tejo
Querela de aves, pios, escarcéu.
Ainda palpitante voa um beijo.

Donde teria vindo! (Não é meu ...)
De algum quarto perdido no desejo?
De algum jovem amor que recebeu
Mandado de captura ou de despejo?

É uma ave estranha: colorida,
Vai batendo com a própria vida,
Um coração vermelho pelo ar.

E é a força sem fim de duas bocas,
De duas bocas que se juntam loucas!
De inveja as gaivotas a gritar...


Desejos vãos - Florbela Espanca


Eu queria ser o mar de altivo porte
Que ri e canta, a vastidão imensa!
Eu queria ser a Pedra que não pensa,
A pedra do caminho, rude e forte!

Eu queria ser o sol, a luz intensa
O bem do que é humilde e não tem sorte!
Eu queria ser a árvore tosca e densa
Que ri do mundo vão é ate da morte!

Mas o mar também chora de tristeza...
As árvores também, como quem reza,
Abrem, aos céus, os braços, como um crente!

E o sol altivo e forte, ao fim de um dia,
Tem lágrimas de sangue na agonia!
E as pedras... essas... pisá-as toda a gente!...


Quero Acabar - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Quero acabar entre rosas, porque as amei na infância.
Os crisântemos de depois, desfolhei-os a frio.
Falem pouco, devagar.
Que eu não oiça, sobretudo com o pensamento.
O que quis? Tenho as mãos vazias,
Crispadas flebilmente sobre a colcha longínqua.
O que pensei? Tenho a boca seca, abstrata.
O que vivi? Era tão bom dormir!


Janela – Adélia Prado


Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão.
Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
clarabóia na minha alma,
olho no meu coração.



Sonhos de uma noite de verão - Shakespeare


Há quem diga que todas as noites
são de sonhos.
Mas há também quem diga
nem todas,
Só as de verão...
Mas no fundo
isso não tem muita importância.

O que interessa mesmo
não são as noites em si,
São os sonhos.
Sonhos que o homem sonha sempre.
Em todos os lugares,
Em todas as épocas do ano,
dormindo ou acordado.