Passo a Passo - Homero Frei

Os passos são andaimes interiores
Com que construo a habitação da espera.
Chovem horas em volta até que um dia
Alguém descobre infiltrações no tempo.

Tudo está só. Tudo são passos sós;
Eles que vivem soterrando as asas.
Por isso os dias doem por entre as rosas
Que afasto em busca de uma dor sem flores.

Depois (pobre depois – nome de um nome;
Coisa que é coisa porque as coisas partem
Envelhecendo a infância do futuro)...

Os passos são fraturas no meu voo;
Oprimidos retalhos do infinito;
Portos viajando no porão de um barco.





Desencontro - Jorge de Sena

Só quem procura sabe como há dias
de imensa paz deserta; pelas ruas
a luz perpassa dividida em duas:
a luz que pousa nas paredes frias,
outra que oscila desenhando estrias
nos corpos ascendentes como luas
suspensas, vagas, deslizantes, nuas,
alheias, recortadas e sombrias.

E nada coexiste. Nenhum gesto
a um gesto corresponde; olhar nenhum
perfura a placidez, como de incesto,

de procurar em vão; em vão desponta
a solidão sem fim, sem nome algum -
- que mesmo o que se encontra não se encontra.


Reflexivo - Affonso Romano de Sant’Anna


O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeu-se.


Canção de nuvem e vento - Mário Quintana


Medo de nuvem
Medo medo
Medo da nuvem que vai crescendo
Que vai se abrindo
Que não se sabe
O que vai saindo
Medo da nuvem Nuvem Nuvem
Medo do vento
Medo do vento que vai ventando
Que vai falando
Que não se sabe
O que vai dizendo
Medo do vento Vento Vento
Medo do gesto
Mudo
Medo da fala
Surda
Que vai movendo
Que vai dizendo
Que não se sabe...
Que bem se sabe
Que tudo é nuvem que tudo é vento
Nuvem e Vento Vento!



O escafandro - Cassiano Ricardo


I
No fundo do oceano
estava a lágrima
que devia ser
chorada por mim. À espera
de quem viesse usá-la,
um dia, ou dos olhos
(que, hoje, são os meus)

que a chorassem, devida-
mente. Como se chora,
uma só vez, na vida.

A lágrima ali ficou,
intacta, no salso
labirinto, onde ninguém
chora, porque ali o pranto
é falso. Onde os polvos,
os tristes cefalópodes,
não choram. Onde
as sereias, nascidas
pra não chorar, não choram.

Onde os próprios marujos
não choram. Onde os peixes
não choram, e ninguém
iria, então, chorá-la,
tão supérflua é uma gota
de mágoa ao fundo d´água.

E a lágrima passou
entre alvos caramujos,
entre navios mortos,
entre detritos sujos,
entre esponjas por cujos
orifícios entrou
e saiu, muitas vezes,
quieta, obscura, sozinha.
para, afinal, ser minha.

II

Lá fora,
a multidão, a onda
cega, o cavalo líquido
e Glauco
em que, sem nenhum
esforço, Deus navega,
originalmente.
Ali dentro, a lágrima.
Quieta, obscura, sozinha
na unanimidade
espessa da água azul - marinha.



A um homem - Adalgisa Nery

Quando numa rocha porosa
Cansado te encostares
E dela vires surgir a umidade e depois a gota,
 Pensa, amado meu, com carinho,
Que aí esta a minha boca.

Se teus olhos ficarem nas praias
E vires o mar ensalivando a areia
Com alegria pensa amado meu
Num corpo feliz
Porque é só teu.

Se descansares sob uma arvore frondosa
E além da sombra ela te envolver de ar resinoso
Lembra-te com entorpecência amado meu,
Da delicia do meu ventre amoroso.

Quando olhares o céu
E vires a andorinha tonta na amplidão
Pensa amado meu que assim sou eu
Perdida na infindável solidão.

A noite quando as trevas chegarem
E vires do firmamento
Uma estrela cair e se afundar
É sinal amado meu
Que o teu amor vai me abandonar.

Na morte, quando perderes o último sentido
E a tua própria voz
Em forma de pensamento
Te subir ao ouvido
Deixa escorrer a derradeira lágrima pelo teu rosto
Nascida do extremo alento do coração
E pensa então amado meu
Que ainda é um suave carinho da minha mão!






Rumor de água - Carlos de Oliveira


Rumor de água
na ribeira ou no tanque?
O tanque foi na infância
minha pureza refractada.
A ribeira secou no verão
Rumor de água
no tempo e no coração.
Rumor de nada.


Tempos sombrios - Bertolt Brecht

Realmente, vivemos muito sombrios!
A inocência é loucura. Uma fronte sem rugas
denota insensibilidade. Aquele que ri
ainda não recebeu a terrível notícia
que está para chegar.

Que tempos são estes, em que
é quase um delito
falar de coisas inocentes.
Pois implica silenciar tantos horrores!
Esse que cruza tranquilamente a rua
não poderá jamais ser encontrado
pelos amigos que precisam de ajuda?

É certo: ganho o meu pão ainda,
Mas acreditai-me: é pura casualidade.
Nada do que faço justifica
que eu possa comer até fartar-me.
Por enquanto as coisas me correm bem
(se a sorte me abandonar estou perdido).
E dizem-me: "Bebe, come! Alegra-te, pois tens o quê!"

Mas como posso comer e beber,
se ao faminto arrebato o que como,
se o copo de água falta ao sedento?
E todavia continuo comendo e bebendo.

Também gostaria de ser um sábio.
Os livros antigos nos falam da sabedoria:
é quedar-se afastado das lutas do mundo
e, sem temores,
deixar correr o breve tempo. Mas
evitar a violência,
retribuir o mal com o bem,
não satisfazer os desejos, antes esquecê-los
é o que chamam sabedoria.
E eu não posso fazê-lo. Realmente,
vivemos tempos sombrios.

Para as cidades vim em tempos de desordem,
quando reinava a fome.
Misturei-me aos homens em tempos turbulentos
e indignei-me com eles.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Comi o meu pão em meio às batalhas.
Deitei-me para dormir entre os assassinos.
Do amor me ocupei descuidadamente
e não tive paciência com a Natureza.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

No meu tempo as ruas conduziam aos atoleiros.
A palavra traiu-me ante o verdugo.
Era muito pouco o que eu podia. Mas os governantes
Se sentiam, sem mim, mais seguros, — espero.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

As forças eram escassas. E a meta
achava-se muito distante.
Pude divisá-la claramente,
ainda quando parecia, para mim, inatingível.
Assim passou o tempo
que me foi concedido na terra.

Vós, que surgireis da maré
em que perecemos,
lembrai-vos também,
quando falardes das nossas fraquezas,
lembrai-vos dos tempos sombrios
de que pudestes escapar.

Íamos, com efeito,
mudando mais freqüentemente de país
do que de sapatos,
através das lutas de classes,
desesperados,
quando havia só injustiça e nenhuma indignação.

E, contudo, sabemos
que também o ódio contra a baixeza
endurece a voz. Ah, os que quisemos
preparar terreno para a bondade
não pudemos ser bons.
Vós, porém, quando chegar o momento
em que o homem seja bom para o homem,
lembrai-vos de nós
com indulgência.


Ar - Olga Savary


É da liberdade destes ventos
que me faço.

Pássaro-meu corpo
(máquina de viver),
bebe o mel feroz do ar
nunca o sossego.



Eric Ponty


No meio da existência tinha um homem
tinha um homem no meio da existência
tinha um homem
no meio da existência tinha um homem.

Nunca mais existirá na meia existência
tinha um homem
tinha um homem no meio da existência
no meio da existência tinha um homem
que meio da existência tinha uma voz
tinha uma voz no meio da existência
tinha uma voz
no meio da existência tinha uma voz.

Nunca mais existirá esse encantamento
da Minas de meus versos pernoitados.

Nunca mais olvidarei do acontecimento
da alma de minha consciência
no meio da existência de minhas igrejas
exauridas. Rude sino. Fatigadas almas.

Nunca mais existirá esse acontecimento
na Minas de minhas igrejas fatigadas.


No meio caminho não havia caminhos
tinha Minas no meio do caminho
no meio do caminho não há caminhos
Minas no meio
do meio
nas Minas. Abissal. Indissolúvel.



Homilia - Adélia Prado

 Quem dentre vós
dirá convictamente:
os alquimistas morreram
- aqueles simples -
morreram os conquistadores,
os reis
os tocadores de alaúde,
os mágicos.
Oh, engano!
a vida é eterna, irmãos,
aquietai-vos, pois, em vossas lidas,
louvai a Deus e reparti a côdea
o boi, vosso marido e esposa
e sobretudo
e mais que tudo
a palavra sem fel. 


Diversonagens suspersas - Paulo Leminski


Meu verso, temo, vem do berço.
Não versejo porque eu quero,
versejo quando converso
e converso por conversar.
Pra que sirvo senão pra isto,
pra ser vinte e pra ser visto,
pra ser versa e pra ser vice,
pra ser a super-superfície,
onde o verbo vem ser mais?

Não sirvo pra observar.
Verso, persevero e conservo
um susto de quem se perde
no exato lugar onde está.

Onde estará meu verso?
Em algum lugar de um lugar,
onde o avesso do inverso
começa a ver e ficar.
Por mais prosas que eu perverta,
Não permita Deus que eu perca
meu jeito de versejar.


Circo - Ruy Espinheira Filho

Raia o sol, suspende a lua,
o palhaço está na rua.

Tremula a lona da praça,
tempos de assombro e de graça.

Ah, que gente tão risonha
nessa cidade que sonha

tigres, grifos, leões de oiro
e mulheres em voo loiro,

vindas de rússias e franças
- e acima das esperanças...

Nunca além de uma semana
permanece essa profana

prova de que Deus existe
e nem sempre a vida é triste.

Baixa o sol, se esconde a lua,
não há mais nada na rua,

caminho de pó e vento,
formigas, cão sonolento...

Porém já nada é tristonho,
- infenso a tempo e distância –

a nos sonhar essa infância.




Nem tudo é dias de sol - Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)


... Nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se
-Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
Naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E quando haja rochedos e erva...
O que é preciso é ser-se natural e calmo
Na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica...

Assim é e assim seja...


Coisas do Coração - Afonso Estebanez


Se as pedras não sabem do instinto da flor
que sabem as sombras do instinto de mim
se pedras não guardam memória de amor
nem guardam princípios ou meios do fim?

Quem tem a certeza de algum porventura
se a brisa nem diz quando vem ao jardim,
se cá dentro d’alma há essa doce ternura
de guizos ou mantras ou sons de flautim?

Se eu mesmo não sei o que foi a ventura
dos tempos perdidos do amor em motim,
que entendem os dias de minha aventura
se a aurora só chega em finais de festim?

Se a água das nuvens não sabe da altura
e cai como o arco-íris do céu de carmim,
que sabe o teu pranto da minha candura
que cai das alturas bem dentro de mim?


Pensamentos que reúnem um tema - Adalgisa Nery

Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,
Na tranquilidade dos que esqueceram a memória
E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.

Estou pensando nos que vivem a vida
Na previsão do impossível
E nos que esperam o céu
Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.

Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões
E nos poetas que correm indefinidamente
Em busca da lucidez dos que possam atingir
A festa dos sentidos nas simples emoções.

Estou pensando num olhar profundo
Que me revelou uma doce e estranha presença.

Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim
Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias
Não sentiram o seu mistério impenetrável,
Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas
Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,
Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,
Nas mulheres que correm mundo
Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,
Nos homens cujo sentimento de adeus
Se repete em todos os segundos de suas existências,
Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos
A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.

Estou pensando um pensamento constante e doloroso
E uma lágrima de fogo desce pela minha face:
De que nada sou para o que fui criada
E como um número ficarei
Até que minha vida passe.


Estão todas as verdades à espera em todas as coisas - Walt Whitman

 Estão todas as verdades
 à espera em todas as coisas:
 não apressam o próprio nascimento
 nem a ele se opõem,
 não carecem do fórceps do obstetra,
 e para mim a menos significante
 é grande como todas.
 (Que pode haver de maior ou menor
 que um toque?)

 Sermões e lógicas jamais convencem
 o peso da noite cala bem mais
 fundo em minha alma.

 (Só o que se prova
 a qualquer homem ou mulher,
 é que é;
 só o que ninguém pode negar,
 é que é.)

 Um minuto e uma gota de mim
 tranquilizam o meu cérebro:
 eu acredito que torrões de barro
 podem vir a ser lâmpadas e amantes,
 que um manual de manuais é a carne
 de um homem ou mulher,
 e que num ápice ou numa flor
 está o sentimento de um pelo outro,
 e hão-de ramificar-se ao infinito
 a começar daí
 até que essa lição venha a ser de todos,
 e um e todos nos possam deleitar
 e nós a eles.