As aves - Nuno Júdice

Afluem às margens, jogam
como se a água lhes pertencesse,
pousam no meio dos arbustos
como se tivessem todo o tempo!

No entanto, sabem que as nuvens
vão encher o céu; e que o norte
irá enviar o vento frio que as
há-de arrastar para sul, deixando
atrás de si o silêncio
nos campos. Mas pouco lhes importa
isso, quando se juntam, e
cantam a efemeridade do
instante.




Desamor - Rosario Castellanos


Me vio como se mira al través de un cristal

o del aire
o de nada.

Y entonces supe: yo no estaba allí
ni en ninguna otra parte
ni había estado nunca ni estaría.

Y fui como el que muere en la epidemia,
sin identificar, y es arrojado
a la fosa común.


Entardeceres - Jorge Luís Borges


 A clara profusão de um poente
enalteceu a rua,
a rua aberta como um vasto sonho
para qualquer acaso.
O límpido arvoredo
perde o último pássaro, o ouro último.
A mão andrajosa de um mendigo
agrava a tristeza dessa tarde.

O silêncio que mora nos espelhos
forçou seu cárcere.
A escuridão é o sangue
das coisas feridas.
No ocaso incerto
a tarde mutilada
foi umas pobres cores.


Sem retorno - Helena Kolody


Nada se repete na travessia.
Longa despedida sem retorno.

Marcos de nunca mais
balizam o contínuo transformar-se.

Vivos desenhos de sombra
sublinham o passante
e se desvanecem
ao anoitecer.


Ano Novo - Ferreira Gullar


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).




Fernando Pessoa

Ficção de que começa alguma coisa!
Nada começa: tudo continua.
Na fluida e incerta essência misteriosa
Da vida, flui em sombra a água nua.
Curvas do rio escondem só o movimento.
O mesmo rio flui onde se vê.
Começar só começa em pensamento.


Pequenas coisas - Albano Martins

Falar do trigo e não dizer
o joio. Percorrer
em voo raso os campos
sem pousar
os pés no chão. Abrir
um fruto e sentir
no ar o cheiro
a alfazema. Pequenas coisas,
dirás, que nada
significam perante
esta outra, maior: dizer
o indizível. Ou esta:
entrar sem bússola
na floresta e não perder
o rumo. Ou essa outra, maior
que todas e cujo
nome por precaução
omites. Que é preciso,
às vezes,
não acordar o silêncio.



Soneto LXIII - William Shakespeare


Quanto mais fecho os olhos melhor vejo;
o dia todo vi coisas vulgares
mas quando durmo em sonho te revejo
pondo no escuro luzes estelares,

tu, cuja sombra faz brilhar as sombras,
como podes formar das sombras luzes
no claro dia que de luz assombras
pois tanto brilho no negror produzes?

Como podem meus olhos abençoados
assim te ver brilhar em pleno dia
quando na noite escura deslumbrados

dentro de fundo sono eu já te via?
Meu dia é noite quando estás ausente
e à noite eu vejo o sol se estás presente.



ERIK SATIE Gnossienne 1 - Alessio Nanni, piano

FACES - Glória de Sant'Anna


com as asas de um anjo de Van Eyck
Fugi para lá do horizonte

onde perdi a face

esta que agora trago e apresento
é o castigo
da luminosidade:

restituir as asas
                                                  ao anjo de  Van Eyck


Cânticos - Cecília Meireles


I
Não queiras ter Pátria.
Não dividas a Terra.
Não dividas o Céu.
Não arranques pedaços ao mar.
Não queiras ter.
Nasce bem alto.
Que as coisas todas serão tuas.
Que alcançarás todos os horizontes.
Que o teu olhar, estando em toda parte
Te ponha em tudo,*
Como Deus.

*(Estarás em tudo)

II

Não sejas o de hoje.
Não suspires por ontens - . .
Não queiras ser o de amanhã.
Faze-te sem limites no tempo.
Vê a tua vida em todas as origens.
Em todas as existências.
Em todas as mortes.
E sabe que serás assim para sempre.
Não queiras marcar a tua passagem.
Ela prossegue:
É a passagem que se continua.
É a tua eternidade. . .
É a eternidade.
És tu.

III

Não digas onde acaba o dia-
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu.
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde é Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso.
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

IV

Adormece o teu corpo com a música da vida.
Encanta-te.
Esquece-te.
Tem por volúpia a dispersão.
Não queiras ser tu.
Queira ser a alma infinita de tudo.
T roca o teu curto sonho humano
Pelo sonho imortal.
O único.
Vence a miséria de ter medo.
Troca-te pelo Desconhecido.
Não vês, então, que ele é maior?
Não vês que ele não tem fim?
Não vês que ele és tu mesmo?
Tu que andas esquecido de ti?*

*(Tu que te esqueceste de ti?)

V
Esse teu corpo é um fardo.
É uma grande montanha abafando-te.
Não te deixando sentir o vento livre
Do Infinito.
Quebra o teu corpo em cavernas
Para dentro de ti rugir
A força livre do ar.
Destrói mais essa prisão de pedra.
Faze-te recepo.
Âmbito.
Espaço.
Amplia-te.
Sê o grande sopro
Que circula...

VI

Tu tens um medo:
Acabar.
Não vês que acabas todo o dia.
Que morres no amor.
Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que te renovas todo o dia.
No amor.

Na tristeza.
Na dúvida.
No desejo.
Que és sempre outro.
Que és sempre o mesmo.
Que morrerás por idades imensas.
Até não teres medo de morrer.
E então serás eterno.

VII

Não ames como os homens amam.
Não ames com amor .
Ama sem amor .
Ama sem querer.
Ama sem sentir.
Ama como se fosse outro.
Como se fosse amar.
Sem esperar.
Por não esperar .
Tão separado do que ama, em ti,
Que não te inquiete
Se o amor leva à felicidade,
Se leva à morte,
Se leva a algum destino.
Se te leva.
E se vai, ele mesmo...

VIII
Não digas: "o mundo é belo".
Quando foi que viste o mundo?
Não digas: "o amor é triste".
Que é que tu conheces do amor ?
Não digas: "a vida é rápida".
Como foi que mediste a vida ?
Não digas: "eu sofro".
Que é que dentro de ti és tu?
Que foi que te ensinaram
Que era sofrer?

IX

Os teus ouvidos estão enganados.
E os teus olhos.
E as tuas mãos.
E a tua boca anda mentindo
Enganada pelos teus sentidos.
Faze silêncio no teu corpo.
E escuta-te.

Há urna verdade silenciosa dentro de ti.
A verdade sem palavras.
Que procuras inutilmente,
Há tanto tempo,
Pelo teu corpo, que enlouqueceu.

X

Este é o caminho de todos que virão.
Para te louvarem.
Para não te verem.
Para te cobrirem de maldição.
Os teus braços são muito curtos.
E é larguíssimo este caminho.
Com eles não poderás impedir
Que passem, os que terão de passar,
Nem que fiques de pé.
Na mais alta montanha,
Com os teus braços em cruz.

XI

Vê formaram-se sobre todas as águas
Todas as nuvens.
Os ventos virão de todos os nortes.
Os dilúvios cairão sobre os mundos.
Tu não morrerás.
Não há nuvens que te escureçam.
Não há ventos que te desfaçam.
Não há águas que te afoguem.
Tu és a própria nuvem.
O próprio vento.
A própria chuva sem fim.



Boas Festas!!!


Christmas Secrets - Enya

Cartão de Natal - João Cabral de Melo Neto

Pois que reinaugurando essa criança
pensam os homens
reinaugurar a sua vida
e começar novo caderno,
fresco como o pão do dia;
pois que nestes dias a aventura
parece em ponto de voo, e parece
que vão enfim poder
explodir suas sementes:

que desta vez não perca esse caderno
sua atração núbil para o dente;
que o entusiasmo conserve vivas
suas molas,
e possa enfim o ferro
comer a ferrugem
o sim comer o não.


Soneto de Natal - Odylo Costa, Filho

Perdi-me dos pastores e sozinho
procuro o rastro do caminho certo.
Há luz no escuro mas não há caminho.
Fica longe o que parece perto!

Busco o Menino mas não adivinho
como encontrá-lo no meu passo incerto.
O desespero pesa como vinho.
É a dor apenas que me traz desperto.

Minhas mãos adormecem na quebrada
da noite, pelo frio da chapada.
A neblina se deita no horizonte.

Mas de repente esbarro na lembrança
das reisadas de quando era criança,
e Deus nasce do chão como uma fonte.


Poema de Natal - Jorge de Lima

Era um poema frequente
repetido
com o menino nos braços
de uma virgem
Desse poema presente
e sempre ouvido,
os tempos e os espaços
tinham origem
pois à origem do poema
sempre havia
essa virgem e o infante
e a poesia.
E era o início e era a extrema
da criação,
era o eterno e era o instante
da canção.


O Aldeão - Fernando Pessoa

O sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada

Soa dentro de minha alma.
E é tão lento o teu soar,
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada

Tem o som de repetida.
Por mais que me tanjas perto
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho.

Soas-me na alma distante.
A cada pancada tua,
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado,
Sinto a saudade mais perto.




Soneto XVIII - William Shakespeare


Se te comparo a um dia de verão
És por certo mais belo e mais ameno
O vento espalha as folhas pelo chão
E o tempo do verão é bem pequeno.

Ás vezes brilha o Sol em demasia
Outras vezes desmaia com frieza;
O que é belo declina num só dia,
Na terna mutação da natureza.

Mas em ti o verão será eterno,
E a beleza que tens não perderás;
Nem chegarás da morte ao triste inverno:

Nestas linhas com o tempo crescerás.
E enquanto nesta terra houver um ser,
Meus versos vivos te farão viver.



Não Sei Quantas Almas Tenho - Fernando Pessoa


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não a tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: “Fui eu?”
Deus sabe, porque o escreveu.