Esse despojamento - Henriqueta Lisboa

Esse despojamento
 esse amargo esplendor.
 Beleza em sombra
 sacrifício incruento.

 A mão sem jóias
 descarnada
 na pureza das veias.
 A voz por um fio
 desnuda
 na palavra sem gesto.

 O escuro em torno
 e a lucidez
 violenta lucidez terrível
 batida de encontro ao rosto
 como uma ofensa física.

 Na imensidade sem pouso,
 olhos duros
 de pássaro.


Consciência Cósmica - Guimarães Rosa


Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força de dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir , se me retesse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo... 


Sim, já sei... Fernando Pessoa


Sim, já sei...
Há uma lei
Que manda que no sentir
Haja um seguir
Uma certa estrada
Que leva a nada.

Bem sei. É aquela
Que dizem bela
E definida
Os que na vida
Não querem nada
De qualquer estrada,

Vou no caminho
Que é meu vizinho
Porque não sou
Quem aqui estou.


Aguardo - Ricardo Reis ( Fernando Pessoa)


Aguardo, equânime, o que não conheço —
Meu futuro e o de tudo.
No fim tudo será silêncio, salvo
Onde o mar banhar nada.


O Sangue das Horas - Cassiano Ricardo

Queixei-me de não ter pão
e a noite me disse não.
Mostrei-lhe a varanda nua
e a Noite me trouxe a lua... 
Você tem sede, não é?
E a Noite me deu café.

São verdes como a esperança
as horas em que sou triste:
bem que existe não se alcança,
só cansa;
procuro o que não existe.

Se a dúvida me procura,
pondo a cerração do tédio
em minha existência obscura,
bebo a esperança, remédio
para as feridas sem cura...

Que dúbio alvor de camélia
anda lá fora a flutuar?
É a Noite que, de tão velha,
tão velha,
criou cabelos de luar...

A insônia do meu relógio
durante a noite passada
crivou-me o corpo, já enfermo,
de punhaladas sonoras...
Meus olhos são duas feridas
por onde
escorre o sangue das horas.

Entre o passado e o porvir
aqueles peixes de prata
não me deixaram dormir.
Tomei café sem parar.
Bebi treva em goles mudos...
Criei cabelos de luar.


Poema da simples alegria - Odylo Costa, Filho


A alegria estava do lado de dentro da casca das
árvores
E subiu na manhã
A alegria me trouxe um ramo claro de acácias
Boiando numa cumbuca partida de mel.
A alegria me trouxe para perto do mar
E eu mergulhei a cabeça nos tanques da
meninice.
Onde estais, arapongas, que vos ouço e não
vejo?
Estais é no fundo do mar.
Estais é nas casas dos morros.
Estais é no ar.


Contra a esperança - Carlos Nejar


É preciso esperar contra a esperança.
Esperar, amar, criar
contra a esperança
e depois desesperar a esperança
mas esperar,
enquanto um fio de água, um remo,
peixes
existem e sobrevivem
no meio dos litígios;
enquanto bater a máquina de coser
e o dia dali sair
como um colete novo.

É preciso esperar
por um pouco de vento,
um toque de manhãs.
E não se espera muito.
Só um curto-circuito
na lembrança. Os cabelos,
ninhos de andorinhas
e chuvas. A esperança,
cachorro
a correr sobre o campo
e uma pequena lebre
que a noite em vão esconde.

O universo é um telhado
com sua calha tão baixo
e as estrelas, enxame
de abelhas na ponta.

É preciso esperar contra a esperança
e ser a mão pousada
no leme de sua lança.

E o peito da esperança
é não chegar;
seu rosto é sempre mais.
É preciso desesperar
a esperança
como um balde no mar.

Um balde a mais
na esperança.

Um balde a mais
contra a esperança

e sobre nós.


Cume - Gabriela Mistral


É a hora da tarde, essa que põe
seu sangue nas montanhas.

E nesta hora alguém está sofrendo;
uma perde, angustiada,

bem neste entardecer o único peito
contra o qual se estreitava.

Há algum coração em que o poente
Mergulha aquele cume ensangüentado.

O vale já sombreia
e se enche de calma.
Mas, lá do fundo, vê que se incendeia
de rubor a montanha.

A esta hora ponho-me a cantar
minha eterna canção atribulada.

Sou eu que estou batendo
o cume de escarlate?

Ponho em meu coração a mão e o sinto
a verter quando bate.




Anunciação - Miguel Torga


Surdo murmúrio do rio,
a deslizar, pausado, na planura.
Mensageiro moroso
dum recado comprido,
di-lo sem pressa ao alarmado ouvido
dos salgueirais:
a neve derreteu
nos píncaros da serra;
o gado berra
dentro dos currais,
a lembrar aos zagais
o fim do cativeiro;
anda no ar um perfumado cheiro
a terra revolvida;
o vento emudeceu;
o sol desceu;
a primavera vai chegar, florida.


Tom Jobim - Blue Train (Trem Azul)

Duas canções para Carlos Drummond de Andrade - Odylo Costa, Filho


1
Canção obscura
dos olhos fundos
na terra nítida
vai navegando

soluço inquieto
mágoa secreta
nos olhos fundos
cores e sombras
das madrugadas

as bicicletas
os trens passando
bondes e nuvens
quotidianos
que companhia
no desespero!

Homem sozinho
que estás presente
nas nossas noites
todas iguais,
esquerdo e simples
como uma foice

que teu destino
nos justifique
nos acompanhe
nos abençoe.


2
Paciência deslumbrada
caindo gota a gota,
noite e dia polida,
muda-se em sal da infância
que tuas vacas lambiam
e nos devolves nítido
em chuva dulciamara
mas fecundando a terra
das roças do amanhã.

Ó menino, ó vaqueiro,
que tens nas magras mãos
o segredo do tempo
sempre ressuscitado,
apascenta nas folhas
de papel de jornal
teu rebanho de seres
no campo da montanha
e derrama na estrada
como leite na cuia
essa carícia – o vento,
esse poder – a vida,
pedra, ferro, ilusão
bicicleta rodando
contra a noite esquecida
para acordar os dias
e soletrar com os homens
a nova madrugada,
estrela da manhã,
cantiga do horizonte,
rasgada para o céu.



Meio-dia - Ronald de Carvalho



Choque de claridades
Palmas paradas
Brilhos saltando nas pedras enxutas.
Batendo de chofre na luz
as andorinhas levam o sol na ponta das asas!


Infância - Henriqueta Lisboa


E volta sempre a infância
com suas íntimas, fundas amarguras.
Oh! por que não esquecer
as amarguras
e somente lembrar o que foi suave
ao nosso coração de seis anos?

A misteriosa infância
ficou naquele quarto em desordem,
nos soluços de nossa mãe
junto ao leito onde arqueja uma criança;

nos sobrecenhos de nosso pai
examinando o termomêtro: a febre subiu;
e no beijo de despedida à irmãzinha
à hora mais fria da madrugada.

A infância melancólica
ficou naqueles longos dias iguais,
a olhar o rio no quintal horas inteiras,
a ouvir o gemido dos bambus verde-negros
em luta sempre contra as ventanias!

A infância inquieta
ficou no medo da noite
quando a lamparina vacilava mortiça
e ao derredor tudo crescia escuro, escuro...

A menininha ríspida
nunca disse a ninguém que tinha medo,
porém Deus sabe como seu coração batia no escuro,
Deus sabe como seu coração ficou para sempre diante da vida
— batendo, batendo assombrado!



Morelenbaum & Sakamoto SEM VOCÊ

Roteiro do silêncio - Hilda Hilst


Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio.
Nas prisões e nos conventos
Nas igrejas e na noite
Não há silêncio bastante
Para o meu silêncio

Os amantes no quarto.
Os ratos no muro.
A menina
Nos longos corredores do colégio.
Todos os cães perdidos
Pelos quais tenho sofrido:
O meu silêncio é maior
Que toda solidão
E que todo silêncio.



Canção breve - Eugénio de Andrade


Tudo me prende à terra onde me dei:
o rio subitamente adolescente,
a luz tropeçando nas esquinas,
as areias onde ardi impaciente.

Tudo me prende do mesmo triste amor
que há em saber que a vida pouco dura,
e nela ponho a esperança e o calor
de uns dedos com restos de ternura.

Dizem que há outros céus e outras luas
e outros olhos densos de alegria,
mas eu sou destas casas, destas ruas,
deste amor a escorrer melancolia. 


Ao Tempo - Dante Milano

 Tempo, vais para trás ou para diante?
O passado carrega a minha vida
Para trás e eu de mim fiquei distante,
Ou existir é uma contínua ida
E eu me persigo nunca me alcançando?
A hora da despedida é a da partida

A um tempo aproximando e distanciando…
Sem saber de onde vens e aonde irás,
Andando andando andando andando andando

Tempo, vais para diante ou para trás?


Morte morreu - Adélia Prado


Quando o ano acinzenta-se em agosto
e chove sobre árvores
que mesmo antes das chuvas já reverdeceram,
da mesma estação levantam-se
nossos queridos
e os passarinhos que ainda vão nascer.
“Ó morte, onde está tua vitória?”

Eh tempo bom, diz meu pai.
A mãe acalma-se,
tomam-se as providências sensatas.
Todos pra janela, espiar as goteiras:
"Chuva choveu, goteira pingou
Pergunta o papudo se o papo molhou".
Pergunta a menina se a vida acabou.