Saudade, sempre - João Guimarães Rosa

Sem mim
me agarro a um tanto de mim
não aqui
já existente
sobre tudo e abismo.
Horas são outrora
além-de. O
muito em mim me faz:
som de solidão.


Dolores - Adélia Prado

Hoje me deu tristeza,
sofri três tipos de medo
acrescido do fato irreversível:
não sou mais jovem.
Discuti política, feminismo,
a pertinência da reforma penal,
mas ao fim dos assuntos
tirava do bolso meu caquinho de espelho
e enchia os olhos de lágrimas:
não sou mais jovem.
As ciências não me deram socorro,
não tenho por definitivo consolo
o respeito dos moços.
Fui no Livro Sagrado
buscar perdão pra minha carne soberba
e lá estava escrito:
"Foi pela fé que também Sara, apesar da idade avançada,
se tornou capaz de ter uma descendência..."
Se alguém me fixasse, insisti ainda,
num quadro, numa poesia...
e fossem objetos de beleza os meus músculos frouxos...
Mas não quero. Exijo a sorte comum das mulheres nos tanques,
das que jamais verão seu nome impresso e no entanto 
sustentam os pilares do mundo, porque mesmo viúvas dignas
não recusam casamento, antes acham sexo agradável,
condição para a normal alegria de amarrar uma tira no cabelo
e varrer a casa de manhã.

Uma tal esperança imploro a Deus.



César Camargo e Pedro Mariano - Se eu quiser falar com Deus

Marinha XXIV - Gabriel Bicalho



nosso amor
(nau frágil)
em naufrágio




Prece - Maria Esther Maciel


Dê-me o esquecimento, meu pai.
Dê-me uma noite sem sombra
ou sobressalto, um sono inteiro
um instante sem rumor.
Dê-me teu silêncio, meu pai.
A solidez das pedras, o rigor das coisas
a solidão sem dor.



Flor na correnteza - Helena Kolody

  Solta a flor na correnteza

 Longe, alguém desconhecido
 faz um gesto distraído
 e colhe a flor de surpresa.




A Festa do Silêncio - António Ramos Rosa

 Escuto na palavra a festa do silêncio.
Tudo está no seu sítio. As aparências apagaram-se.
As coisas vacilam tão próximas de si mesmas.
Concentram-se, dilatam-se de ondas silenciosas.
É o vazio ou o cimo? É um pomar de espuma.

Uma criança brinca nas dunas, o tempo acaricia,
o ar prolonga. A brancura é o caminho.
Surpresa e não surpresa: a simples respiração.
Relações, variações, nada mais. Nada se cria.
Vamos e vimos. Algo inunda, incendeia, recomeça.

Nada é inacessível no silêncio ou no poema.
É aqui a abóbada transparente, o vento principia.
No centro do dia há uma fonte de água clara.
Se digo árvore a árvore em mim respira.
Vivo na delícia nua da inocência aberta.



(Fotografia Josh Adamski)


Poema à minha vida - Vieira Calado

A minha vida é o que eu penso que é a minha vida,
um golpe de vento o que eu penso ser um golpe de vento.

Vejo no vaivém das ondas apenas a ligeireza das ondas,
a mesma sensualidade das areias que arrastam o vento
e por ele se deixam arrastar numa profunda comunhão
como a água que cai sobre as águas, sem angústia.

E nunca me arrependo de olhar o azul, fazer um gesto
de vigiar o céu, à procura duma estrela imperturbável
apenas a dizer que está ali, longe, contemplando a terra.



Na margem verde da estrada - Fernando Pessoa

Na margem verde da estrada
Os malmequeres são meus.
Já trago a alma cansada -
Não é de si: é de Deus.

Se Deus me quisesse dá-la
Havia de achar maneira...
A estrada de cá da vala
Tem malmequeres à beira.

Se os quer, colho-os, e tenho
Cuidado com os partir.
Cada um que vejo e apanho
Dá um estalinho ao sair.

São malmequeres aos molhos,
Iguaizinhos para ver.
E nem põe neles os olhos,
Dá a mão pra os receber.

Não é esmola que envergonhe,
Nem coisa dada sem mais,
É pra que a menina os ponha
Onde o peito faz sinais.

Tirei-os do campo ao lado
Para a menina os trazer...
E nem me mostra o agrado
De um olhar para me ver...

É assim a minha sina.
Tirei-os de onde iam bem,
Só para os dar à menina -
E agradeceu-me a ninguém.

Pássaros matinais - Tomas Tranströmer

Desperto o automóvel
que tem o pára-brisas coberto de pólen.
Coloco os óculos de sol.
O canto dos pássaros escurece.

Enquanto isso outro homem compra um diário
na estação de comboio
junto a um grande vagão de carga
completamente vermelho de ferrugem
que cintila ao sol.

Não há vazios por aqui.

Cruza o calor da primavera um corredor frio
por onde alguém entra depressa
e conta como foi caluniado
até na Direcção.

Por uma parte de trás da paisagem
chega a gralha
negra e branca. Pássaro agoirento.
E o melro que se move em todas as direcções
até que tudo seja um desenho a carvão,
salvo a roupa branca na corda de estender:
um coro da Palestina:

Não há vazios por aqui.

É fantástico sentir como cresce o meu poema
enquanto me vou encolhendo
Cresce, ocupa o meu lugar.

Desloca-me.
Expulsa-me do ninho.
O poema está pronto.



Imortalidade - Carlos Drummond de Andrade

Morre-se de mil motivos
e sem motivo se morre
de saudade,
morreu o poeta
sem morrer à eternidade
ele que fez de uma pedra
louvor para sua cidade
gauche, grande destro
sem querer celebridade
pelos mil que era
num só se fez único
ficando no seu primeiro
caráter de bom mineiro
jamais morrerá
e sempre será.


Tão bom aqui - Adélia Prado

Me escondo no porão
para melhor aproveitar o dia
e seu plantel de cigarras.
Entrei aqui pra rezar,
agradecer a Deus este conforto gigante.
Meu corpo velho descansa regalado,
tenho sono e posso dormir,
tendo comido e bebido sem pagar.
O dia lá fora é quente,
a água na bilha é fresca,
acredito que sugestiono elétrons.
Eu só quero saber do microcosmo,
o de tanta realidade que nem há.
Na partícula visível de poeira
em onda invisível dança a luz.
Ao cheiro de café minhas narinas vibram,
alguém vai me chamar.
Responderei amorosa,
refeita de sono bom.
Fora que alguém me ama,
eu nada sei de mim.


No mar - John Keats

Ele sustém eternos murmúrios
Nas praias desoladas, e com soberbas cristas
Inunda vinte mil cavernas, até que o sortilégio
De Hécate as deixe com seu velho e assombroso som.
Muitas vezes se encontra tão tranquilo,
Que até a menor das conchas permanece dias imóvel
Desde o desenlace dos ventos celestiais.
Vós, cujos olhos se enchem de tormento e tédio,
Regozijai-os com a imensidão do mar;
Vós, cujos ouvidos estão atordoados pelo rude ruído,
Ou enfastiados pela música melosa -
Sentai-vos na boca de uma velha caverna, e meditai
Até que escuteis, como se cantassem, as ninfas do mar!





Álvaro Bastos

A cor da argila no telhado,
a agitação da folha na palmeira,
o som de uma pedra que
é atirada num pequeno lago.
Meu mundo tem poucos
endereços, mas a paisagem
é infinita e sempre muda,
dependendo do sol e da lua,
e do meu jeito de olhar
o interior do que chamo vida.


LXII - Hilda Hilst

Garças e fardos
O voo e o pesado
No meu coração.

E lebres álbidas
E cães.
Correirice e caça
No meu coração.

Torres, escadas e águas
Nem barcos, nem cordas
No meu coração.

E lutos e garras
Tua cara
No meu coração.



Cata-vento - Tasso da Silveira

Cata-vento, lá no alto,
capta o mundo nos ventos.
O mundo das geleiras brancas,
dos desertos dourados,
das cidades aflitas, das montanhas, do mar.

Cata-vento, lá no alto
capta as horas nos ventos.
As horas, no orbe, simultâneas
mas tão infinitamente diferentes:
horas, aqui, da seara amanhecente,
horas, ali, da torre ensolarada,
horas, além, de cais na noite triste,
horas, por toda a parte,
de nascer ou morrer.

Cata-vento lá no alto
longe do chão impuro
capta os ventos que vem.
Ah, cata-vento não escolhe vento.
Todo vento lhe traz desejo e sonho,
todo o vento lhe traz beleza e mágoa.
Sim, cata-vento não escolhe vento
capta os ventos que vem,
mesmo os trêmulos ventos sonambúlicos
das solidões estagnadas
sem sombra de ninguém.




Sussurro - Flora Figueiredo

Aquiete-se para ouvir o silêncio;
a clorofila escorre pela haste,
a sombra e o sol ecoam um contraste
de quentes e frios na linha divisória.

Tente escutar a história da brisa
quando passa empurrando
a bruma, que, tola,embaça a púrpura da rosa.
Esta conta prosa de sacerdotisa.

Faça atenção ao momento de explosão
da metamorfose
que irrompe em grande dose
de véus e açúcares.

Sinta o cochilo dos nenúfares.
Se conseguir atingir
o ponto mais profundo da quietude,
vai poder ouvir o coração do colibrí.

Ele bate minúsculo num peito passarinho.
A Terra se mobiliza para entoar
uma sonata azul em homenagem
a esse músculo coberto de plumagem,
que tão pequenininho é tão capaz de amar.


Ausência - José Régio

Um a um, vão-se-me os dias,
Dia a dia, eu vou com eles...
Olhos extintos, mãos frias,
Perpasso ao longo dos dias
Como sombra que repeles...

E por quê? porque me deixas
Nesta frieza, em que forças
Nem tenho para erguer queixas
Cujo alívio me nem deixas,
Ou contra mim já não torças...?

Não me vês Tu sofrer tanto
Quanto gostas de me ver?
Ou não sei eu, por enquanto,
Valer-me de sofrer tanto
Para chegar a vencer?

No entanto, vão-se-me as horas
Num sofrer tudo o que passa,
Só porque Tu Te demoras
A atirar às minhas horas
Uns restos da Tua graça...

Levanto os olhos lá cima,
Sondo esse abismo estrelado,
Baixo-os ao chão..., e o que anima
Esse abismo lá de cima
Anima a colina e o prado:

Ao Teu simples ígneo sopro,
Abrem-se os astros, as flores,
E as cavernas como a escopro...
Encapelam-se, ao Teu sopro,
Vento e mar com seus furores...

Só a mim me não aqueces
Com as bênçãos do Teu bafo!
Só dum ser vivo Te esqueces,
E este ar, que já não aqueces,
Me não é ar, e eu abafo...

Fosse eu pedra bruta! fosse
Uma pouca de água! um bicho
Sem razão, feroz ou doce,
Que virias!, nem que eu fosse
Qualquer montinho de lixo...

Fosse eu terra..., e dera flor!
Fosse eu ar, mar... gozaria
No sol Teu próprio calor!
Que o céu dá sóis e o chão flor
Porque o Teu amor lhos cria...

Mas sou este ser humano
A quem deste alma, razão,
Coração, vontade.., e o engano
De sonhar ser mais que humano,
Contra a humanal condição!

E é por ser mais, que me deixas
Na solidão em que estou?
Por ser Teu filho, me fechas
Assim só comigo, e deixas
Entregue ao não-ser que sou?

Não posso! Que farei eu,
Tua obra-prima falhada,
Que acusa quem na escreveu
De lhe dar o que lhe deu
E a deixar não terminada?

Desde que Te amo, não sei
Com nada mais contentar-me!
Onde estarei? onde irei?
Desde que Te amo que sei
Que é tudo o mais vão alarme...

Corra que não corra o mundo,
Só sobre mim próprio giro
Sem mais encontrar, ao fundo
Dos mil caminhos do mundo,
Que um eu contra quem me firo...

Qualquer jornada que faça,
Qualquer empresa que tente,
Se me falha a Tua graça,
Faça o que faça ou não faça,
Que faço que me contente?

Amar-me, já o não consigo;
Fugir-me a mim, não no alcanço;
Não suporto estar comigo!
Se consigo ou não consigo,
Da mesma maneira canso...

Toda a largueza do mundo
Não me cura a falta de ar!
Sufoco!, neste profundo
Buraco negro do mundo
Que só Tu vens alargar...

E Tu não vens! e há que dias,
Há que séculos, Te espero,
De olhos extintos, mãos frias,
Sem nada que me encha os dias
Senão frio e desespero!

Fervem-me no peito as queixas,
As blasfémias, o clamor
Do abandono em que me deixas...
Mas gritos, blasfémias, queixas,
Bem sabes que é tudo amor!

Bem sabes como é verdade
Que nada Te substitui,
Ou Te empana a claridade,
Em quem, por ver a Verdade,
Já tudo em volta lhe rui...

Ai, que os irmãos me não creiam,
É de crer! pois lhes advém
Que soletrem mas não leiam,
E só creiam, ou não creiam,
Consoante lhes convém.

Mas Tu, que me vês por dentro
Como eles vêem por fora,
Tu, em cujo amor eu entro
Nu até alma, por dentro
Dum banho lustral de aurora,

Tu, — não! não podes deixar-me
Sem Ti, nem nada no mundo!
Para quê todo este alarme?
Mas como é que ousas deixar-me
Sequer um breve segundo?

Pois não vês que já pertences
Ao amor com que me enleias?
Não me enleies, ou não penses
Que eu, sim, mas Tu não pertences
Às nossas comuns cadeias!

Livra-me de Ti de vez,
Se Te não queres cativo
Do meu amor! Ou não vês
Que isto é nem morrer de vez
Nem, também, sentir-me vivo?

Em Ti, por Ti amo tudo!
Se Te vais e em vão Te chamo,
Fico cego, surdo, mudo...
Faltas-me e falta-me tudo,
Que afinal só a Ti amo!

Pois bem, deitar-me-ei por terra,
Nu no chão nu, sem conforto
Senão o cinto que enterra
Seus férreos dentes na terra
De minha carne e meu corpo,

Deitar-me-ei dias e noites,
Não provarei água ou pão,
Fustigar-me-ei com açoites,
Encherei dias e noites
Gritando a Tua traição,

Até que venhas! até
Que, de novo, a Tua graça
Me dê calor, luz, ar, fé,
Me ressuscite! ou até
Tudo que sou se desfaça...


Adormecido no vale - Arthur Rimbaud

           É um vão de verdura onde um riacho canta
A espalhar pelas ervas farrapos de prata
Como se delirasse, e o sol da montanha
Num espumar de raios seu clarão desata.

Jovem soldado, boca aberta, a testa nua,
Banhando a nuca em frescas águas azuis,
Dorme estendido e ali sobre a relva flutua,
Frágil, no leito verde onde chove luz.

Com os pés entre os lírios, sorri mansamente
Como sorri no sono um menino doente.
Embala-o, natureza, aquece-o, ele tem frio.

E já não sente o odor das flores, o macio
Da relva. Adormecido, a mão sobre o peito,
Tem dois furos vermelhos do lado direito.


Tradução:  Ferreira Gullar