Para a fadiga dos homens - Tasso da Silveira


Em todos os perdidos portos do mundo, 
sob o crepúsculo
balouçam barcos mansamente.
A brisa é uma carícia lenta
nos mastros e nas velas.
A voz da água é um segredo baixinho.
É preciso não acordar os homens.
É preciso que se encha o mundo de doçura infinita,
de infinito silêncio,
porque os homens estão fatigados, fatigados...




Azul e branco - Vinícius de Moraes



Concha e cavalo-marinho
Mote de Pedro Nava

I
Massas geométricas
Em pautas de música
Plástica e silêncio
Do espaço criado.

Concha e cavalo-marinho.

O mar vos deu em corola
O céu vos imantou
Mas a luz refez o equilíbrio.

Concha e cavalo-marinho.

Vênus anadiômena
Multípede e alada
Os seios azuis
Dando leite à tarde
Viu-vos Eupalinos
No espelho convexo
Da gota que o orvalho
Escorreu da noite
Nos lábios da aurora.

Concha e cavalo-marinho.

Pálpebras cerradas
Ao poder violeta
Sombras projetadas
Em mansuetude
Sublime colóquio
Da forma com a eternidade.

Concha e cavalo-marinho.

II

Na verde espessura
Do fundo do mar
Nasce a arquitetura.

Da cal das conchas
Do sumo das algas
Da vida dos polvos
Sobre tentáculos
Do amor dos pólipos
Que estratifica abóbadas
Da ávida mucosa
Das rubras anêmonas
Que argamassa peixes
Da salgada célula
De estranha substância
Que dá peso ao mar.

Concha e cavalo-marinho.

Concha e cavalo-marinho:
Os ágeis sinuosos
Que o raio de luz
Cortando transforma
Em claves de sol
E o amor do infinito
Retifica em hastes
Antenas paralelas
Propícias à eterna
Incursão da música.

Concha e cavalo-marinho.

III

Azul... Azul...

Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco
Azul e Branco

Concha...

e cavalo-marinho.


Canto e Palavra - Affonso Romano de Sant’Anna



1. 

Todo homem é vário. 
Vário e múltiplo. Eu sou 
menos: sou um duplo 
e me contento com o que sou. 

Fosse meu nome legião, 
meu destino talvez fosse 
a fossa e o abismo onde 
a vara de porcos me emborcou. 

Não sou tantos, repito, 
sou um duplo 
e me contento com o que sou. 

2. 

Sou primeiro o canto 
e o que cantou 
e só depois – palavra 
e o que falou. 

Meu corpo testifica este conflito 
quando entre palavras e canto 
não se perde ou se dissipa, 
mas se afirma 
e me redime. 

O homem primeiro é o canto. 
só depois se organiza, 
se acrescenta 
se articula, 
se clareia de palavras 
e dissipa o que são brumas. 

Se o canto é o eu fluindo, 
a palavra é o eu pensado. 
na palavra eu sempre guio, 
mas no canto eu sou guiado. 

O canto é o que atinjo 
(ocultamente) sem me oferecer, 
e quando, de repente, 
eu me descubro 
– sem querer. 

A palavra, ao contrário, 
é o ato claro, 
o talho e o atalho 
– no objeto, 

embora seja como o corpo 
um ser concreto 
e como o mito 
– um ser incerto. 

3. 

Quereis saber 
como eu faço 
ou de mim como eu quero? 
É fácil: 
Cultivo em mim os meus contrários 
e a síntese dos termos cultivo, 
sabendo que o canto é quando 
e a palavra é onde , 
e que ela o ultrapassa 
mais que o complementa . 
E certo que o homem 
embora sinta e pense, 
cante e fale 
seus conflitos nunca vence, 
é que eu tranqüilo me exponho, 
em fala me traduzo, 
em canto me componho: 
pois um homem somente se organiza 
e completo se apresenta 
quando com seus contrários se acrescenta. 

4. 

Difícil é demarcar 
o limite, o dia, o instante 
em que o homem 
de seu canto se destaca. 
O limite, o dia, o instante 
em que o homem se desfaz 
da imponderável música-novelo-e-ovo 
e configura-se no gesso, 
e do que era um homem-canto 
emerge um homem-texto. 

Difícil é dizer como e onde, 
não o porque, 
um dia a gente se observa, 
Se admira, 
Mais que isto: 
um dia o ser do homem todo denuncia: 
já não se flui 
como fluía, 
nem se esvai 
como esvaía, 
e do organismo informe e vago 
emerge a vida organizada. 

Nada se perdeu 
nem jamais se perderia 
neste homem que de novo se formou. 
Algo duro nele se passa 
e em seu trajeto se passou, 
quando indo do canto à palavra 
a si mesmo ultrapassou. 



Rumores - Eugénio de Andrade


Acorda-me
um rumor de ave.
Talvez seja a tarde
a querer voar

A levantar do chão
qualquer coisa que vive,
e é como um perdão
que não tive.

Talvez nada.
Ou só um olhar
que na tarde fechada
é ave.

Mas não pode voar.


Dentre todas as Almas já criadas - Emily Dickinson


Dentre todas as Almas já criadas -
Uma - foi minha escolha -
Quando Alma e Essência - se esvaírem -
E a Mentira - se for -

Quando o que é - e o que já foi - ao lado -
Intrínsecos - ficarem -
E o Drama efêmero do corpo -
Como Areia - escoar -

Quando as Fidalgas Faces se mostrarem -
E a Neblina - fundir-se -
Eis - entre as lápides de Barro -
O Átomo que eu quis!


Os rios de um dia - João Cabral de Melo Neto


Os rios, de tudo o que existe vivo,
vivem a vida mais definida e clara;
para os rios, viver vale se definir
e definir viver com a língua da água.
O rio corre; e assim viver para o rio
vale não só ser corrido pelo tempo:
o rio o corre; e pois com sua água,
viver vale suicidar-se, todo o tempo.

Pois isso, que ele define com clareza,
o rio aceita e professa, friamente,
e se procuram lhe atar a hemorragia,
ou a vida suicídio, o rio se defende.
O que um rio do Sertão, rio interino,
prova com sua água, curta nas medidas:
ao se correr torrencial, de uma vez,
sobre leitos de hotel, de um só dia;
ao se correr torrencial, de uma vez,
sem alongar seu morrer, pouco a pouco,
sem alongá-lo, em suicídio permanente
ou no que todos, os rios duradouros:
esses rios do Sertão falam tão claro
que induz ao suicídio a pressa deles:
para fugir na morte da vida em poças
que pega quem devagar por tanta sede.


Luz e Sombra - Helena Kolody


Luz e sombra
lutam n'alma.

Só depois do sol ausente,
impera a noite.

Derrotadas
terra e treva,
reina a luz eternamente.


Angústia - J.G.de Araujo Jorge


Há uma estranha beleza na noite!
Há uma estranha beleza !
Oh, a transcendente poesia
que verso algum traduz...

A via-láctea, inteiramente acesa
parece a fotografia
de um tufão de luz !

- Quem seria,
quem seria
que pregou lá no céu aquela imensa cruz?

Que infinita serenidade...
Que infinita serenidade misteriosa
nesse infinito azul dos céus e em tudo mais:
nos telhados, nas ruas, na cidade...

( Só os gatos gritam na noite silenciosa
sensualíssimos ais !)

Meu Deus, que noite calma... E aquela trepadeira
feminina e ligeira
veio abrir bem na minha janela
uma flor - como uma boca rubra e bela
que não terei...

- E ainda sinto nos lábios um travo nauseante
do amor que faz bem pouco, há apenas um instante,
paguei...

E o céu azul assim... E essa serenidade!
Silêncio - A noite, o luar ... Tão claro o luar lá fora...
Juraria que há alguém, não sei onde que chora...

Oh, a angústia invencível que me prostra
invade
e me devora ...


Rosto com dois perfis - Lya Luft

Renuncio às palavras
e às explicações.
Ando pelos contornos,
onde todos os significados
são sutis, são mortais.

Não quero perder o momento belo.
Quero vivê-lo mais,
com a intensidade que exige a vida:
desgarramento e fulguração.

Então me corto ao meio e me solto de mim:
a que se prende e a que voa,
a que vive e a que se inventa.
Duplo coração:
a que se contempla e a que nunca
se entende,
a que viaja sem saber se chega
- mas não desiste jamais.


Chet Baker & Bill Evans - This autumn

Sinto-me só como um seixo de praia - Vinícius de Moraes


Sinto-me só como um seixo de praia
Vivendo à busca no cristal das ondas,
Não sei se sou o que não sou. Pressinto
Que a maré vai morar no fundo d’alma.

Calo-me sempre se te escuto vindo
Marulho de incerteza e de agonia;
Há crenças deslizando nos meus traços,
Molhando a estátua do meu sonho antigo.

Declino-me nas frases dos rochedos
Nas pérolas de som do inesquecer
Na incrível sombra da montanha adulta.

E ao me curvar ao peso da memória,
Descubro meu reflexo obscuro
Num soneto de espumas inexatas.



Discurso - Cecília Meireles


E aqui estou, cantando.

Um poeta é sempre irmão do vento e da água:
deixa seu ritmo por onde passa.

Venho de longe e vou para longe:
mas procurei pelo chão os sinais do meu caminho
e não vi nada, porque as ervas cresceram e as serpentes
andaram.

Também procurei no céu a indicação de uma trajetória,
mas houve sempre muitas nuvens.
E suicidaram-se os operários de Babel.

Pois aqui estou, cantando.

Se eu nem sei onde estou,
como posso esperar que algum ouvido me escute?
Ah! Se eu nem sei quem sou,
como posso esperar que venha alguém gostar de mim?


O Inútil Luar - Manuel Bandeira

É noite. A Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .

Dormem as sombras na alameda
Ao longo do ermo Piabanha.
E dele um ruído vem de seda
Que se amarfanha . . .

No largo, sob os jambolanos,
Procuro a sombra embalsamada.
(Noite, consolo dos humanos!
Sombra sagrada!)

Um velho senta-se ao meu lado.
Medita. Há no seu rosto uma ânsia . . .
Talvez se lembre aqui, coitado!
De sua infância.

Ei-lo que saca de um papel . . .
Dobra-o direito, ajusta as pontas,
E pensativo, a olhar o anel,
Faz umas contas . . .

Com outro moço que se cala,
Fala um de compleição raquítica.
Presto atenção ao que ele fala:
— É de política.

Adiante uma senhora magra,
Em ampla charpa que a modela,
Lembra uma estátua de Tanagra.
E, junto dela,

Outra a entretém, a conversar:
— "Mamãe não avisou se vinha.
Se ela vier, mando matar
Uma galinha."

E embalde a Lua, ardente e terna,
Verte na solidão sombria
A sua imensa, a sua eterna
Melancolia . . .



Equivocou-se a pomba - Rafael Alberti

Equivocou-se a pomba.
Equivocava-se.
Por ir ao norte, foi ao sul.
Acreditou que o trigo era água.
Equivocava-se.

Acreditou que o mar era o céu:
que a noite, a manhã.
Equivocava-se.

Que as estrelas, orvalho;
que o calor; a nevasca.
Equivocava-se.

Que tua saia era tua blusa;
que teu coração, sua casa.
Equivocava-se.

(Ela dormiu na beira
tu, no topo de um ramo).



Trenzinho Caipira - Ferreira Gullar


Lá vai o trem com o menino
Lá vai a vida a rodar
Lá vai ciranda e destino
Cidade e noite a girar
Lá vai o trem sem destino
Pro dia novo encontrar


Correndo vai pela terra
Vai pela serra
Vai pelo mar
Cantando pela serra o luar
Correndo entre as estrelas a voar
No ar, no ar...


A Terra Desolada - T. S. Eliot


Abril é o mais cruel dos meses, germina
Lilases da terra morta, mistura
Memória e desejo, aviva
Agônicas raízes com a chuva da primavera.
O inverno nos agasalhava, envolvendo
A terra em neve deslembrada, nutrindo
Com secos tubérculos o que ainda restava de vida.
O verão; nos surpreendeu, caindo do Starnbergersee
Com um aguaceiro. Paramos junto aos pórticos
E ao sol caminhamos pelas aleias de Hofgarten,
Tomamos café, e por uma hora conversamos.
Big gar keine Russin, stamm' aus Litauen, echt deutsch.
Quando éramos crianças, na casa do arquiduque,
Meu primo, ele convidou-me a passear de trenó.
E eu tive medo. Disse-me ele, Maria,
Maria, agarra-te firme. E encosta abaixo deslizamos.
Nas montanhas, lá, onde livre te sentes.
Leio muito à noite, e viajo para o sul durante o inverno.
Que raízes são essas que se arraigam, que ramos se esgalham
Nessa imundície pedregosa? Filho do homem,
Não podes dizer, ou sequer estimas, porque apenas conheces
Um feixe de imagens fraturadas, batidas pelo sol,
E as árvores mortas já não mais te abrigam,
nem te consola o canto dos grilos,
E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca. Apenas
Uma sombra medra sob esta rocha escarlate.
(Chega-te à sombra desta rocha escarlate),
E vou mostrar-te algo distinto

De tua sombra a caminhar atrás de ti quando amanhece
Ou de tua sombra vespertina ao teu encontro se elevando;

Vou revelar-te o que é o medo num punhado de pó.


És música e a música ouves triste? - William Shakespeare


És música e a música ouves triste?
Doçura atrai doçura e alegria:
porque amas o que a teu prazer resiste,
ou tens prazer só na melancolia?
se a concórdia dos sons bem afinados,
por casados, ofende o teu ouvido,
são-te branda censura, em ti calcados,
porque de ti deviam ter nascido.
Vê que uma corda a outra casa bem
e ambas se fazem mútuo ordenamento,
como marido e filho e feliz mãe
que, todos num, cantam de encantamento:
      É canção sem palavras, vária e em
      uníssono: "só não serás ninguém".