Adeuses - Cecília Meireles

Dia de cristal
cercado de vultos brancos:
pés descalços,
finas barbas,
longas vestimentas pregueadas.

Mulheres com olhos de deusas
transbordando um majestoso silêncio.
Luz em copos azuis.
Lábios em oração.
Mãos postas.
Dia de cristal
claro, dourado,
e óleo.
Foi muito longe,
num palácio de inúmeras varandas,
com árvores cheias de flores pela
colina.
O vento subia dos jardins para as
salas
com a fluidez de um visitante jovial.
E com que leveza dançava,
abraçado às cortinas, às sedas,
aos véus, à luz!...Sabíamos que os encontros jamais se
repetem,
nem a emoção do alto amor.
Éramos todos de cristal e vento,
de cristal ao vento.
E andavam nuvens de saudade por cima
dos jardins.
Tão grande, o mundo!
Tão curta, a vida!
Os países tão distantes!
E alma.
E adeuses.
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Cecília Meireles
Jogo noturno - Mauro Mota
Ilumina-se o campo
Para o futebol na aldeia.
Aparece a bola branca,
Feita de algodão e meia.
Meninos poetas jogam
Com a bola da lua cheia.
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Mauro Mota
Versos de entreter-se - Ferreira Gullar
À vida falta uma parte
- seria o lado de fora -
pra que se visse passar
ao mesmo tempo que passa
e no final fosse apenas
um tempo de que se acorda
não um sono sem resposta
À vida falta uma porta.
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Sorriso audível das folhas - Fernando Pessoa
Sorriso audível das folhas
Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.
Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.
Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou
E estamos os dois falando
O que se não conversou
Isto acaba ou começou?
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Adernagem da noite para o dia - Tomas Tranströmer
Quieta,
a formiga acorda, espreita para dentro do
nada. E para além das gotas da escura folhagem e
do murmúrio nocturno, profundo no desfiladeiro do
verão,
não se ouve mais nada.
O abeto ergue-se como o ponteiro de um relógio,
espinhoso. A formiga arde na sombra da montanha.
Gritos, pássaros! E por fim, vagarosamente, a carroça
das nuvens começa a rolar.
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O Chamado - Carlos Drummond de Andrade
Na rua escura o velho poeta
(lume de minha mocidade)
já não criava, simples
criatura
exposta aos ventos da cidade
Ao vê-lo curvo e desgarrado
na caótica noite urbana,
o que senti, não alegria,
era, talvez, carência humana.
E pergunto ao poeta,
pergunto-lhe
(numa esperança que não digo)
para onde vai - a que angra
serena,
a que Pasárgada, a que
abrigo?
A palavra oscila no espaço
um momento. Eis que,
sibilino,
entre as aparências sem rumo,
responde o poeta: Ao meu
destino.
E foi-se para onde a
intuição,
o amor, o risco desejado
o chamavam sem que ninguém
pressentisse, em torno, o
Chamado.
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Flores - Ricardo Reis (Fernando Pessoa)

Flores que colho, ou deixo,
Vosso destino é o mesmo.
Via que sigo, chegas
Não sei aonde eu chego.
Nada somos que valha,
Somo-lo mais que em vão.
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Ponta Seca - Miguel Torga
Remendo o coração, como a
andorinha
Remenda o ninho onde foi
feliz.
Artes que o instinto sabe ou
adivinha...
Mas fico a olhar depois a
cicatriz.
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A menina do olfato delicado - Adélia Prado
Quero comer não, mãe
(no canto do fogão o
caldeirão esmaltado)
quero comer não, mãe
(arroz com feijão,
macarrão grosso)
quero comer não, mãe
(sem massa de tomate)
quero comer não, mãe
(com gosto de serragem)
quero comer não, mãe
(com cheiro de carbureto)
quero comer não
(vi um gato no caminho,
fervendo de bicho)
quero comer não, mãe
(quando inaugurar a luz
elétrica e o pai
consumir com o gasômetro, eu
como).
Vamos ficar no escuro,
mãe. Põe lamparina,
põe gasômetro não, o azul
dele tem cheiro,
o cheiro entra na pele, na
comida, no pensamento,
toma a forma das coisas.
Quando a senhora tem raiva
sem xingar é igual a
ruindade do gasômetro,
a azuleza dele. Vomito,
mãe. Vou comer agora não.
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Solidão - Irene Lisboa
Cai chuva, chora.
Chora, chora.
Solidão, solidão!
Já não canta o pássaro.
Calou-se a voz, a alegre, a
rara.
A que se ouvia solitária.
Cai chuva.
Não sou freira e estou num
convento.
A paz, o silêncio, a chuva,
os claustros...
Ser freira!
O sequestro, cantar, rezar.
Cai chuva, rude e sem dor.
Tu não choras.
Sou eu que choro.
Que é do pássaro, como
cantava?
Voltou, voltou. Pia!
Bendito pássaro, onde estás?
Acompanha-me, já não chove.
Solidão, melancolia.
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Irene Lisboa
Escrito na Ponte Westminster, 3 de setembro de 1802 - William Wordsworth
Não tem a terra nada mais belo
para mostrar
Pobre de espírito seria
aquele que pudesse ignorar
esta visão tão comovente na
sua majestade
Como um traje veste agora
esta cidade
a beleza da manhã.
Silenciosas e nuas
torres cúpulas navios teatros
catedrais a prumo
erguem-se no céu e estendem-se
pelas ruas
brilhantes e reluzentes no ar
sem fumo
Nunca o sol se ergueu com
tanta alma
por sobre vales rochedos e
colinas
nunca vi nunca senti uma tão
profunda calma
O rio desliza consoante o seu
desejo
Meu Deus o casario parece que
dorme
Dorme também aquele coração
enorme
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Meio-dia - Li Po
As nuvens são leves,
o vento
é sereno,
aproxima-se o meio-dia.
Diante das flores,
um regato
corre, ao longo dos álamos.
Os homens não podem
compreender
a alegria que transborda do meu coração
e dizem que estou alegre
sem motivo,
como uma criança.
(Tradução: Cecília Meireles)
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Diz o meu nome - Mia Couto
Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas
te queimassem os lábios
sopra-o com a suavidade
de uma confidência
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus
cabelos
para que aconteça
Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno
Porque apenas para os teus
olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci
Porque a minha mão
infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos
No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me
desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome
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Os amantes sem dinheiro - Eugénio de Andrade
Tinham o rosto aberto a quem
passava.
Tinham lendas e mitos
e frio no coração.
Tinham jardins onde a lua
passeava
de mãos dadas com a água
e um anjo de pedra por irmão.
Tinham como toda a gente
o milagre de cada dia
escorrendo pelos telhados;
e olhos de oiro
onde ardiam
os sonhos mais tresmalhados.
Tinham fome e sede como os
bichos,
e silêncio
à roda dos seus passos.
Mas a cada gesto que faziam
um pássaro nascia dos seus
dedos
e deslumbrado penetrava nos
espaços.
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Não estejas longe de mim um dia que seja - Pablo Neruda
Não estejas longe de mim um dia que seja, porque,
porque, não sei dizê-lo, é
longo o dia,
e estarei à tua espera como
nas estações
quando em algum sitio os
comboios adormeceram.
Não te afastes uma hora
porque então
nessa hora se juntam as gotas
da insónia
e talvez o fumo que anda à
procura de casa
venha matar ainda meu coração
perdido.
Ai que não se quebre a tua
silhueta na areia,
ai que na ausência as tuas
pálpebras não voem:
não te vás por um minuto, ó
bem-amada,
porque nesse minuto terás ido
tão longe
que atravessarei a terra
inteira perguntando
se voltarás ou me deixarás
morrer.
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Do inquieto oceano da multidão - Walt Whitman
Do inquieto oceano da multidão
veio a mim uma gota
gentilmente
suspirando:
— Eu te amo, há longo tempo
fiz uma extensa caminhada
apenas
para te olhar, tocar-te,
pois não podia morrer
sem te olhar uma vez antes,
com o meu temor de perder-te
depois.
— Agora nos encontramos e
olhamos,
estamos salvos,
retorna em paz ao oceano, meu
amor,
também sou parte do oceano,
meu amor,
não estamos assim tão
separados,
olha a imensa curvatura,
a coesão de tudo tão
perfeito!
Quanto a mim e a ti,
separa-nos o mar irresistível
levando-nos algum tempo
afastados,
embora não possa afastar-nos
sempre:
não fiques impaciente — um
breve espaço
e fica certa de que eu saúdo
o ar,
a terra e o oceano,
todos os dias ao pôr-do-sol
por tua amada causa, meu
amor.
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Há doenças piores que as doenças - Fernando Pessoa
Há doenças piores que as
doenças,
Há dores que não doem, nem na
alma
Mas que são dolorosas mais
que as outras.
Há angústias sonhadas mais
reais
Que as que a vida nos traz,
há sensações
Sentidas só com imaginá-las
Que são mais nossas do que a
própria vida.
Há tanta coisa que, sem
existir,
Existe, existe demoradamente,
E demoradamente é nossa e
nós...
Por sobre o verde turvo do
amplo rio
Os circunflexos brancos das
gaivotas...
Por sobre a alma o adejar
inútil
Do que não foi, nem pôde ser,
e é tudo.
Dá-me mais vinho, porque a
vida é nada.
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