Concerto de Dvorák - Affonso Romano de Sant’Anna


Soava na tela aquele concerto de celo de Dvorák:
eu via as imagens da orquestra
e as mãos e o rosto possesso Misha Misky abraçado ao
                                                                     instrumento
engalfinhado numa amorosa luta com o sublime.

Lá fora
           a intriga nos palácios,
           as buzinas e os insultos,
           a traição, a esperada, o luto.
Aqui
           a perfeição preenchendo a sala
           num momento de paz absoluta.

Hopper

  Hopper
e a solidão dos objetos na vitrina
Hopper
e a solidão dos corpos na varanda
na janela
na campina
Hopper
e a solidão silente.

Hopper.
Hope.
Hopeless.


Poema para Carlos Drummond de Andrade - João Maimona


No meio do caminho tinha uma pedra.
C.D.A.
É útil redizer as coisas
as coisas que tu não viste
no caminho das coisas
no meio de teu caminho.

Fechaste os teus dois olhos
ao bouquet de palavras
que estava a arder na ponta do caminho
o caminho que esplende os teus dois olhos.

Anuviaste a linguagem de teus olhos
diante da gramática da esperança
escrita com as manchas de teus pés descalços
ao percorrer o caminho das coisas.

Fechaste os teus dois olhos
aos ombros do corpo do caminho
e apenas viste apenas uma pedra
no meio do caminho.

No caminho doloroso das coisas.



Inquietude - Cecília Vilas Boas


Ouço-te silêncio.
Diz-me o que sinto
O que anseio
O que me sufoca!

Esta inquietude permanente
Sem razão aparente de ser
O vazio profundo
Do querer e não querer.
Estou aqui
Vou, não sei onde
De onde venho, não recordo!

Nas horas aladas do desencontro
Fecho as pálpebras da vida
Perfumo de tomilho a alma
E parto, nas pétalas dos lírios brancos.


Faróis - Álvaro de Campos (Fernando Pessoa)


Faróis distantes,
De luz subitamente tão acesa,
De noite e ausência tão rapidamente volvida,
Na noite, no convés, que conseqüências aflitas!
Mágoa última dos despedidos,
Ficção de pensar ...
Faróis distantes...
Incerteza da vida...
Voltou crescendo a luz acesa avançadamente,
No acaso do olhar perdido...

Faróis distantes...
A vida de nada serve...
Pensar na vida de nada serve...
Pensar de pensar na vida de nada serve...

Vamos para longe e a luz que vem grande vem menos grande.
Faróis distantes ...


Desejo - Elisa Lucinda

A lua míngua com elegância,
olho o seu formato meia lua,
um queijo a cara dela suspensa no céu.
Eu nua, sem mentiras, sem véus
ouço a conversa das estrelas sobre as ruas,
e também ouso com elas as palavras
que Bilac me ensinou com as suas.
O que digo é que nunca estou só de todo
por causa da Via Láctea e outros acontecimentos celestes.
Quando lá não me detenho e por isso,
sem ver outros planetas, ignoro o que acontece,
o mar, revolto ou calmo,
seja lá como for, não me obedece.
Sou pequena,
o que não sei é o que o meu poema tece
para me ensinar a ser flor.

Ó luminoso beija flor
vagalume dos meus desmundos,
dos meus desterros nos caminhos escuros de nublada visão.
Ó verso antigo e novo
que desde de adolescência
vem me trazendo pela mão,
me dê sempre clareza onde antes era confusão.
Lampadinha iluminada,
remove a camada da ilusão
e deixe - me de frente pra vida,
ela mesma, a vida pura,
em sua versão milagre e espanto.
Só isso, não estou pedindo muito,
não estou pedindo tanto.
Só milagre e espanto.




Caicó - Moacy Cirne


a cidade, de sol a sol,
principia pelo fim
no poço que, sant'ana, a protege

a cidade, de açude em açude,
afoga os minerais
nas pescarias noturnas transparências

a cidade, de sábado a sábado,
completa o sertão
com seus horizontes mágicos cordéis

a cidade, de rua em rua,
transborda de amor
nos becos bêbados botequins

a cidade, de ponte a ponte,
margeia os rios
da memória fluvial seridó

a cidade, de pedra em pedra,
constrói o branco
de seu silêncio limpo fugidio

a cidade, de festa a festa,
recolhe os frutos
da noite que, sant'ana, se faz julho





Não existe esquecer - Pablo Neruda

Se me perguntais onde estive
devo dizer “Ocorre”.
Devo falar do limo que escurece as pedras,
do rio que durando se destrói:
Nada sei além das coisas que os pássaros perderam,
o mar deixado atrás ou minha irmã chorando.
Por que tantas regiões, por que um dia
se junta a outro dia? Por que uma negra noite
se acumula na boca? Por que há mortos?

Se me perguntais de onde venho, terei que conversar
com coisas mortas,
com utensílios demasiado amargos,
com grandes bestas geralmente pútridas
e com o meu angustiado coração.
Não são lembranças daqueles que se foram
nem a pomba amarelecida que dorme no esquecimento.
Apenas rostos com lágrima,
dedos na garganta
e o que se desmorona das folhas,
a obscuridade de um dia transcorrido,
de um dia alimentado com nosso triste sangue.

Eis aqui violetas, andorinhas,
tudo o que nos apraz e que aparece
nesses cartões-postais de cauda longa
por onde passeiam o tempo e a doçura.
Além desses dentes, porém, não penetremos,
nem mordamos as cascas que o silêncio acumula.
Porque não sei que responder:
Há tantos mortos
 e tantos paredões que o rubro sol partia
e tantas cabeças batendo contra os barcos
e tantas mãos que encarceravam beijos
e tantas coisas que desejo esquecer.




Hora - Sophia de Mello B. Andresen


Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta --- por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.
E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.
Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.


E de novo caminho para o mar.


Karl Jenkins- Palladio

A música das almas - Vinícius de Moraes


"Le mal est dans le monde
comme un esclave qui fait monter l’eau."  Claudel

Na manhã infinita as nuvens surgiram
como a loucura numa alma
E o vento como o instinto desceu os braços das árvores
que estrangularam a terra...
Depois veio a claridade, o grande céu, a paz dos campos...
Mas nos caminhos todos choravam
com os rostos levados para o alto
Porque a vida tinha misteriosamente passado na tormenta.



O primeiro de todos os meus sonhos - E.E. Cummings


o primeiro de todos os meus sonhos era sobre
um amante e o seu único amor,
caminhando devagar (pensamento no pensamento)
por alguma verde misteriosa terra

até o meu segundo sonho começar—
o céu é agreste de folhas; que dançam
e dançando arrebatam (e arrebatando rodopiam
sobre um rapaz e uma rapariga que se assustam)

mas essa mera fúria cedo se tornou
silêncio: em mais vasto sempre quem
dois pequeninos seres dormem (bonecas lado a lado)
imóveis sob a mágica

para sempre caindo neve.
E então este sonhador chorou: e então
ela rapidamente sonhou um sonho de primavera
—onde tu e eu estamos a florescer


Anjo músico - Murilo Mendes


Eu canto o Anjo músico
Que me acompanha sereno,
Que tem asas de som.

Esse amigo não me larga
Desde as mais remotas eras
Nunca soube de outro Anjo...

Confabulamos os dois
Durante horas ou séculos?

Tira-me o peso da vida
Voa comigo nas nuvens
Largamos a todo o pano
E esse Anjo é tão fiel
Que torna a volta comigo.

Eu canto o Anjo sublime
O único Anjo da guarda
Cujas asas quando vibram
Fazem o ritmo nascer.



Como pode? - Paulo Leminski

Soa estranho, esta manhã,
tudo o que sempre foi meu, como pode?
Como pode que esse som lá fora,
os sons da vida, a voz de todo dia,
pareça ficção científica?

Como pode que esta palavra,
que já vi mil vezes e mil vezes disse,
não signifique mais nada,
a não ser que o dia, a noite, a madrugada,
a não ser que tudo não é nada disso?

Pode que eu já não seja mais o mesmo.
Pode a luz, pode ser, pode céu e pode quanto.
Pode tudo o que puder poder.
Só não pode ser tanto.



As aves - Nuno Júdice

Afluem às margens, jogam
como se a água lhes pertencesse,
pousam no meio dos arbustos
como se tivessem todo o tempo!

No entanto, sabem que as nuvens
vão encher o céu; e que o norte
irá enviar o vento frio que as
há-de arrastar para sul, deixando
atrás de si o silêncio
nos campos. Mas pouco lhes importa
isso, quando se juntam, e
cantam a efemeridade do
instante.




Desamor - Rosario Castellanos


Me vio como se mira al través de un cristal

o del aire
o de nada.

Y entonces supe: yo no estaba allí
ni en ninguna otra parte
ni había estado nunca ni estaría.

Y fui como el que muere en la epidemia,
sin identificar, y es arrojado
a la fosa común.


Entardeceres - Jorge Luís Borges


 A clara profusão de um poente
enalteceu a rua,
a rua aberta como um vasto sonho
para qualquer acaso.
O límpido arvoredo
perde o último pássaro, o ouro último.
A mão andrajosa de um mendigo
agrava a tristeza dessa tarde.

O silêncio que mora nos espelhos
forçou seu cárcere.
A escuridão é o sangue
das coisas feridas.
No ocaso incerto
a tarde mutilada
foi umas pobres cores.


Sem retorno - Helena Kolody


Nada se repete na travessia.
Longa despedida sem retorno.

Marcos de nunca mais
balizam o contínuo transformar-se.

Vivos desenhos de sombra
sublinham o passante
e se desvanecem
ao anoitecer.


Ano Novo - Ferreira Gullar


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).